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História das concepções psicológicas sobre psicoativos

A Psicologia científica, no século XIX, centrava sua atenção no estudo da consciência e dos processos psicológicos básicos (Abib, 2009), sendo as substâncias com propriedades alteradoras da consciência retratadas como dispositivos com potencial para auxiliar no estudo científico da consciência e motivo de curiosidade científica (James, 1902/1991). Nesse contexto, foram

produzidas reflexões filosóficas sobre o ópio

(“Confissões de um comedor de ópio”, do filósofo kantiano Thomas De Quincey, 1821), o haxixe (“O haxixe e a alienação mental”, do psiquiatra Jacques-

- Joseph Moreau, 1845) e alucinógenos (“Os efeitos

subjetivos do óxido nitroso”, do empirista radical William James, 1882) e suas aplicações na investigação em psicopatologia e na geração de experiências místicas e transcendentais (James, 1902/1991).

A preocupação com o uso prejudicial de psicoativos emergiu, para a Psicologia, a partir da influência de

outros campos do saber que identificavam as

substâncias alteradoras da consciência como ameaças à saúde pública e à ordem pública: o saber religioso, o saber médico e o saber jurídico (Costa, 2007; Silva, 2013; Bucher; Oliveira, 1994). O saber religioso promo-

vido pela teologia cristã retratava tais substâncias alteradoras de consciência como influenciadoras de más decisões e degradadoras do caráter e dos valores morais, sendo interpretadas a partir das categorias de “vício” e “perdição” e prescrevendo a necessidade de expiação e purificação a fim de percorrer um caminho de redenção (Bucher, 1986). O saber médico promovido pelo Alienismo e pela Medicina Higienista retratava tais substâncias como o objeto catalisador do quadro clínico da toxicomania, que consistia em atos maníacos e impulsivos motivados pelo consumo compulsivo de “tóxicos”, tratada por meio do distanciamento do objeto e da dissipação do comportamento compulsivo pela inibição do desejo/impulso, sendo o foco da intervenção a própria busca pelo prazer por meio dos narcóticos “entorpecentes” a ser neutralizada pela internação (Silva, 2013). O saber jurídico, por meio do movimento higienista, retratava a relação com tais substâncias

pelos tipos penais de “embriaguez”, “vadiagem”,

“delinquência” e tráfico, sendo alvo de intervenção policial e medidas punitivas (Silva, 2013).

As concepções psicológicas refletidas em discursos religiosos pautados nos valores de moralidade e sobriedade e em discursos jurídicos pautados nos valores de crescimento econômico, ordem pública e

interesse nacional balizaram as primeiras medidas

institucionais de normatização das relações com

substâncias alteradoras de consciência por meio da proibição, apontando impactos das substâncias aditivas na convivência social e na produtividade laboral. A proibição do ópio indo-anglicano na China no século XIX

foi justificada a partir de critérios estritamente

econômicos e geopolíticos, sendo proibido o comércio de ópio por não ser de interesse nacional abrir a economia para produtos ingleses, em especial para um produto que prejudicava a própria produtividade nacional (Escohotado, 1992; Duarte, 2005). Já a proibição das bebidas alcoólicas nos EUA, pautada durante todo o século XIX e institucionalizada no início do século XX, foi justificada a partir de critérios morais, em função de um entendimento de que a embriaguez prejudicava o funcionamento saudável dos núcleos familiares e levava à corrupção moral e política, e critérios econômicos,

relacionados tanto à produtividade perdida pela

embriaguez quanto à possibilidade de expansão de

novos mercados substitutivos, como chás e

refrigerantes (Escohotado, 1992; Rodrigues, 2001). O debate público sobre a proibição do álcool foi fundamentado em argumentos morais de base religiosa, usados tanto pelos proponentes da proibição de maioria protestante — que defendiam a abstinência e a temperança — quanto pelos oponentes da proibição de

maioria católica ou do cristianismo litúrgico — que se

opunham à intervenção estatal na dimensão

moral/íntima e à “demonização” da liturgia cristã. Embora a proibição do álcool fosse justificada também por critérios de saúde pública, a classe médica nos EUA se manifestava contrária à proibição do álcool, pois era comum a prescrição médica de licores terapêuticos para

tratamento de diversas enfermidades — até a

institucionalização de uma regulamentação que

autorizava a prescrição de licores medicinais em 1921 (Aaron; Musto, 1981). Posteriormente, a proibição do álcool nos EUA foi suspensa também a partir de critérios morais e econômicos, centrados no direito à escolha individual e no incentivo ao comércio. A Proibição, apesar de apresentar reduções nos índices de agravos em saúde e de perda de produtividade laboral, foi avaliada como negativa por promover a marginalização e criminalização dos consumidores de álcool e a consequente fragilização dos laços familiares, além de facilitar o enriquecimento do crime organizado e enfraquecer a economia e a arrecadação pública

(Escohotado, 1992; Rodrigues, 2001). Com a

experiência da Proibição do álcool nos EUA, o economista Irving Fisher formulou um argumento econômico em favor da proibição com base em três indicadores — impactos na saúde pública, nos índices de criminalidade e na produtividade laboral — a ser aplica-

do para a proibição de demais substâncias alteradoras da consciência (Fisher et al., 1927).

Outras substâncias alteradoras de consciência com usos tradicionais nos campos médico e industrial também foram objeto de regulações proibitivas ao longo do século XX, em função de seus usos recreativos e efeitos “narcóticos” considerados ameaças à “ordem pública”, com destaque para a cannabis, a cocaína e as anfetaminas (Escohotado, 1992). A produção de Cannabis sativa foi incentivada pelos governos coloniais em todo o continente americano para aplicação nos setores têxtil e naval durante séculos — e utilizada como aplicação medicinal no tratamento de convulsões a partir do século XIX —, sendo seu uso recreativo como “narcótico” identificado como problema à ordem pública a partir da disseminação do haxixe indiano no contexto urbano nos EUA, no início do século XX. Nesse período, nos EUA, foram formuladas diversas legislações que estabeleciam proibições à importação do haxixe indiano e regulamentavam de maneira restritiva os fármacos com prescrição autorizada, reduzindo as aplicações médicas da Cannabis sativa como estratégia de prevenção aos seus usos “intoxicantes”. Com o fim da Proibição ao álcool nos EUA, o Escritório Federal de Narcóticos direcionou recursos para a proibição em larga escala dos usos da maconha, justificada a partir da compreensão de que a maconha induzia à

irracionalidade da hipersexualização e da violência descontrolada mediada pela perda da memória e do

controle consciente — compreensão esta que

fundamentou posteriormente os tratados

regulamentadores das políticas de drogas em nível internacional (McWilliams, 1990).

Regulamentação internacional: tratados