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Práticas emergentes de humanização da política de drogas

As principais iniciativas de humanização da política de drogas emergiram dos coletivos e movimentos de

usuários de substâncias psicoativas pautando a

necessidade de ofertar ações de cuidado em saúde de modo acolhedor e não punitivo. Desses coletivos e movimentos, emergiram estratégias de redução de danos conduzidas pelos pares, recorrendo a práticas de promoção ao acesso à informação em saúde, troca de insumos de modo a prevenir comorbidades e incentivo ao autocuidado (Marlatt, 1999; Wodak; Cooney, 2006).

A Redução de Danos emergiu como um paradigma de atenção em saúde para usuários de substâncias psicoativas a partir da perspectiva da Saúde Coletiva,

visando à construção da autonomia e à atenção integral à saúde e valorizando a experiência do usuário, orientando políticas, programas e práticas de atenção em saúde por todo o mundo (Passos; Souza, 2011).

Todavia, os movimentos de usuários de substâncias psicoativas reivindicando estratégias de redução de danos na atenção em saúde não são as únicas vozes a pautar a construção de uma política de drogas humanizada e não violenta. Além de promover a marginalização dos usuários, a política global de guerra às drogas penaliza de modo ostensivo as comunidades periféricas por meio de operações policiais e militares, em nome do “combate ao tráfico” (Jensen et al., 2004). O “combate ao tráfico” incide de modo predominante sobre o comércio varejista das drogas nas periferias, pouco intervindo nos níveis mais altos da hierarquia do tráfico internacional e nas outras etapas da cadeia de produção e distribuição (Rybka et al., 2018). Tal política tem como resultado agressões promovidas pelo Estado contra habitantes de comunidades periféricas, em especial contra jovens negros — expressando o caráter seletivo por critérios socioeconômicos, territoriais e raciais das ações do sistema penal e indicando que a “guerra às drogas” se configura, concretamente, como uma guerra aos pobres. Nesse processo, no qual comunidades inteiras são vitimadas pela própria ação do Estado, por meio da política de guerra às drogas, sofrendo com estigma, silenciamento e repressão, as

comunidades periféricas são sistematicamente e ostensivamente excluídas do debate público e das decisões sobre as políticas que incidem sobre a periferia. Com a finalidade de modificar esse quadro, têm surgido iniciativas e movimentos que posicionam as perspectivas de habitantes de comunidades periféricas no centro do debate sobre drogas, como a Marcha das Favelas Pela Legalização e a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas.

Ainda, a política global de guerra às drogas prejudica — além de pessoas com problemas associados ao uso de drogas e pessoas vivendo em comunidades de periferia atingidas pelas operações de “combate ao tráfico” — também as pessoas que podem se beneficiar do uso terapêutico e medicinal de algumas substâncias consideradas ilegais, como é o caso das pessoas beneficiárias do óleo medicinal derivado da Cannabis sativa — ou maconha medicinal — para o tratamento de quadros refratários de epilepsia, dor crônica e outras neuropatias (Pamplona, 2014; Lessa et al., 2016). Em função da proibição, as pessoas beneficiárias de cannabis medicinal permanecem em uma condição de insegurança jurídica e sob o risco da criminalização, além da ausência de serviços públicos especializados e escassez de conhecimento sobre cannabis medicinal por parte de profissionais da saúde, construindo soluções através do desenvolvimento de uma “expertise leiga”

que subsidia profissionais de saúde e formuladores de políticas públicas (Oliveira, 2017).

Além do uso de cannabis para o tratamento de

quadros neurológicos complexos, também são

emergentes estudos investigando a aplicabilidade de psicodélicos clássicos em tratamentos psicológicos, em especial para quadros refratários de estresse pós-

-traumático, depressão e dependência química — desenvolvendo um campo transdisciplinar denominado “Medicina Psicodélica” ou “Terapias Psicodélicas” (Nutt et al., 2013; Lieberman; Shalev, 2016; Sessa, 2012; Sessa, 2018). Os estudos no campo das “Terapias Psicodélicas” têm encontrado potenciais terapêuticos significativos de algumas substâncias e riscos baixos a moderados — que podem ser reduzidos com a aplicação de protocolos de segurança — indicado a possibilidade de reclassificação dessas substâncias de modo a autorizar suas aplicações científicas e terapêuticas (Johnson et al., 2008; Nutt et al., 2013; Dos Santos et al., 2018). Ainda em fase de pesquisa científica e sem autorização para a prática profissional independente, os achados de tais estudos têm contribuído para a reflexão sobre as diversas consequências da política global de

guerra às drogas e informado diálogos sobre

possibilidades de reformulação da política de drogas orientadas pelos valores do cuidado humanizado e da saúde coletiva.

sujeitos protagonistas, essas práticas emergentes não só questionam a atual política global de guerra às drogas e seus processos de penalização e militarização

da vida, como também apontam para outras

possibilidades de organização das políticas e de regulamentação orientada para a promoção da saúde e

do cuidado integral. Essas diferentes práticas

emergentes partem de aspectos específicos e diversos das políticas de drogas e saúde, não consistindo em uma proposta integrante e totalizadora de reforma da política de drogas, ainda a se construir. A linha comum, nessas práticas emergentes, é a postura humanizada — contrária às diferentes expressões da violência — de beneficência e não maleficência — que orientam por princípio as práticas em saúde — e o protagonismo das pessoas e comunidades mais afetadas. Nesse sentido, cabe à Psicologia, como ciência e profissão, promover espaços de escuta e construção de diálogo a partir das vivências das pessoas mais afetadas pelas diferentes expressões da política de drogas e contribuir para a criação de práticas de cuidado.