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A Cannabis sativa foi uma das primeiras plantas cultivadas pela humanidade. Nos rituais espirituais e na medicina indiana e ayurvédica, há registros do uso da planta desde o ano 1000 a.C. Seu poder medicinal vinculado à medicina chinesa, para tratar diversas enfermidades, está descrito na mais antiga farmacopeia do mundo, a “Sheng-nung Pen-Ts'ao Ching” (RIBEIRO, 2014). Na medicina ocidental, a partir do século XIX, o uso medicinal difundiu-se pela Europa até chegar à

América, sendo prescrita e comercializada sem

restrições por um longo período (CARLINI, 2006).

Acredita-se que os escravos africanos traficados para o Brasil trouxeram a planta para cá, escondendo as sementes em bonecas de pano amarradas às suas tangas (CARLINI, 2006). Mais tarde, os indígenas brasileiros também passaram a cultivar a maconha, cujo consumo se disseminou ao longo do tempo entre as

camadas socioeconômicas menos favorecidas,

especialmente entre a população negra, sem despertar, a princípio, outro interesse das elites que não fosse o comercial, ligado à indústria têxtil. Foram essas populações de algum modo discriminadas socialmente que promoveram a preservação das sementes e o repasse do conhecimento tácito no cultivo e consumo da planta às gerações seguintes, através da transmissão

oral e da cultura. Porém também ficaram

definitivamente marcadas como alvo das ideias e ações proibicionistas ligadas à maconha, que se expandiram no país e em todo o continente americano a partir do início do século XX.

Após os EUA associarem ostensivamente a

maconha aos imigrantes indesejados no país,

estigmatizando-a como droga iniciatória da violência e criminalidade, a repressão à planta ganhou força no Brasil, sendo comparada ao ópio e à cocaína por um delegado brasileiro na II Conferência Internacional do Ópio, realizada em Genebra em 1924, um equívoco que, embora comprovado ainda na época, nunca foi desfeito. A total proibição pelo Governo Federal do plantio, co-

lheita e exploração da maconha em todo o território brasileiro ocorreu em 1938, por meio do Decreto-Lei nº

891 (CARLINI, 2006). Teve início, assim, a

criminalização da cannabis no nosso país, que perdura até os dias atuais, independente da finalidade a que se destina.

Além disso, a partir do século XIX, a preocupação do Estado e da comunidade médico-científica com substâncias popularmente chamadas de drogas se

fortaleceu quando o consumo foi ficando mais

independente de qualquer elemento vinculado à

tradição cultural, religiosa ou terapêutica, no mesmo período em que se consolidavam novas práticas medicinais, baseadas no conhecimento farmacológico e bioquímico capaz de isolar, extrair ou reproduzir princípios ativos. As substâncias psicoativas passaram a ser classificadas e separadas, de forma um tanto arbitrária, em medicamentos lícitos, substâncias tóxicas e/ou ilícitas e produtos alimentares ou recreativos, como álcool, café e tabaco (ELWANGER, 2016). Com isso, gradualmente, passou-se a dar primazia aos

compostos isolados quimicamente ou mais bem

conhecidos farmacologicamente, produzidos em larga escala, facilitando o uso, a disponibilidade e o controle da dosagem.

Contudo, do ponto de vista medicinal, a cannabis

foi durante muitos séculos conhecida por suas

propriedades curativas. As estruturas químicas dos dois

mais importantes princípios ativos da cannabis, o canabidiol (CBD) e o delta9-tetra-hidrocanabinol (THC — único componente da cannabis que possui ação psicoativa), foram identificadas pelo químico Raphael Mechoulam, em 1963, cerca de 30 anos após esses canabinoides terem sido isolados (MECHOULAM et al.,

2014). Os estudos posteriores identificaram

quimicamente outros fitocanabinoides (canabinoides produzidos pela planta), além de diversos outros componentes da cannabis, como terpenos e flavonoides, que agindo em conjunto produzem maior eficácia terapêutica do que isoladamente.

Apesar desses avanços, apenas em meados dos anos 1990, passados mais 30 anos, começou-se a compreender o mecanismo de ação do THC e do CBD

com a descoberta do sistema endocanabinoide

(MECHOULAM et al., 2014), próprio da maioria dos seres vivos vertebrados e alguns invertebrados. O

sistema endocanabinoide desempenha papel

fundamental em processos bioquímicos e metabólicos envolvidos na homeostase fisiológica. É por causa desse sistema que os fitocanabinoides (CBD, THC) e demais

compostos da cannabis possuem propriedades

terapêuticas para diferentes doenças, sendo já

conhecido seu potencial de neurogênese, anticonvulsivo, neuroprotetivo, anti-inflamatório, analgésico, ansiolítico, antidepressivo e de regulação da imunidade.

Há comprovação da eficácia dos extratos ricos em fitocanabinoides (usados via oral, por vaporização ou na forma de pomadas e adesivos) para muitas doenças, como epilepsia refratária (DEVINSKY et al., 2017; PORTER; JACOBSON, 2013), mal de Parkinson (LOTAN et al., 2014), dor crônica neuropática ou oncológica (MICHAEL ALLAN et al., 2018), câncer (BADOWSKI, 2017) e autismo (SCHLEIDER et al., 2019). Além dessas doenças, a cannabis vem sendo explorada para tratar Alzheimer, lúpus, síndrome do intestino irritável, doença de Crohn, artrite reumatoide, fibromialgia, glaucoma, distúrbios mentais (tais como esquizofrenia, estresse pós-traumático, transtornos de humor e de ansiedade), dependência química de álcool e outras substâncias. Tudo isso demonstra o potencial impacto que a cannabis pode ter sobre a saúde pública ao ser utilizada no

tratamento de doenças crônicas, raras e/ou

incapacitantes, tanto pela redução de custos financeiros

com procedimentos complexos e caros, como

internações em UTIs, quanto pela promoção da qualidade de vida e reinserção social.

Apesar das históricas proibições legais em países influentes e da hipervalorização dos seus efeitos

adversos para a saúde, os estudos sobre as

propriedades medicinais da cannabis nunca pararam de ser produzidos. As publicações científicas relacionadas

aos canabinoides cresceram muito nas últimas

décadas2, especialmente no cenário internacional. Em-

bora nem sempre valorizados no país, o Brasil tem feito contribuições importantes para esse tema utilizando

metodologias reconhecidas e validadas

academicamente. Exemplo são as pesquisas lideradas pelo professor Elisardo Carlini (UNIFESP), que ainda em 1981 publicou um ensaio clínico randomizado, duplo cego, identificando benefícios do canabidiol no controle das crises epilépticas.

Tão perto, tão longe: acesso e