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4. CAMINHOS PARA UMA CENA CORPORIFICADA

4.1 ENCAMINHAMENTOS DIRECIONAIS NO TREINAMENTO CORPORAL

4.1.2 História em Quadrinhos: Quadro a Quadro com a Voz de Hebe

A perspectiva do treinamento e composição corporal com base nas ações físicas e que, de algum modo, partilha das ideias aqui discutidas, foi abordada sob a ótica do curso O Ator e o Espaço da Cena ministrado pela atriz, professora e diretora teatral Hebe Alves, em 2010, no Teatro Vila Velha, dentro do projeto Oficinas Vila Verão.

O curso tinha por objetivo desenvolver no ator a noção de flexibilidade da estrutura cênica por meio do jogo da partitura de pontos, a história em quadrinhos e seus desdobramentos. A oficina pretendia elaborar um quadro referencial e instrumental dos processos da criação cênica, além de desenvolver no ator o estado de prontidão como receptor e condutor de sentimentos e impulsos volitivos com sutileza e vigor.

Para o treinamento eram realizados prática cênica, estudo da geografia do palco, segmentação do movimento, elaboração de partituras cênicas e o desenvolvimento de cena a partir da técnica de História em Quadros. Por meio desta abordagem, que chamava de História em Quadrinhos, a diretora propunha que uma história fosse contada, inicialmente sem texto, muito embora posteriormente utilizássemos textos de Nelson Rodrigues ou ao menos o seu universo como ponto de partida.

Cada ator deveria se relacionar com o outro e estruturar uma cena que seria complementada de maneira subsequente à medida que cada ator que ingressasse no local do trabalho, e fazer quadros em sequência como em uma história em quadrinhos a ser contada. A sala era dividida em dois pequenos espaços, como se fossem duas páginas de uma revista. Um ator iniciava a história, colocando-se na primeira página com um determinado movimento; depois, um segundo ator entrava e se colocava com outro movimento que partilhasse da ideia do primeiro e assim por diante, montando fotos, ações cênicas, até a diretora solicitar que a página fosse trocada e tudo começaria novamente ou a história seria continuada.

Deste modo, cada ator, antes de entrar na cena, deveria analisar toda a disposição dos demais componentes, as ações realizadas pelos seus corpos, bem como o propósito a ser discorrido e pensar como poderia se adequar corporalmente, uma vez que a cena em questão não tinha textos ou vocalizações, apenas ações físicas que se transformariam em uma encenação quando interligadas pelos atores subsequentes.

E foi justamente este ponto que despertou o que ainda era um embrião da pesquisa: analisar o corpo e a construção corporal do outro para conseguir estimular a concepção sobre a sua própria encenação poderia ser um ponto de partida facilitador. Para o ator entrar em cena, era necessário observar o corpo do outro e assim, tentar se acoplar a uma proposta previamente definida, ora se ajustando a esta e, às vezes, desconstruindo a ideia central por não analisar completamente os corpos em cena ou o âmbito geral da cena ou possivelmente por não saber usar o seu próprio corpo e não conseguir se colocar simplesmente por não dominar a sua própria estrutura corporal.

Dentro deste processo, quando a proposta não era atingida pelo fato de este ou aquele movimento não ser compatível, ou não ser adequado ao propósito dos demais atores, da cena e do conteúdo discutido, a professora frisava a necessidade de pensar e observar as ações físicas colocadas em questão e a sua pertinência. Os atores eram estimulados a repensar a ação desenvolvida de acordo com a necessidade diante do que fora estabelecido como jogo cênico. Para tanto, era necessário analisar os fatos desenvolvidos, os movimentos postos, interpostos e sobrepostos para se colocar diante e dentro da situação. Todos, de alguma maneira, eram estimulados a exercitar a observação e conceber as nuances que o seu corpo e o corpo dos outros desenhavam no discurso a ser propagado.

Ao propor a análise do movimento como premissa que estimula e permite a criação e interação do ator com as sensações trazidas pela personagem por meio das ações físicas, Stanislávski (1997), no Manual do Ator, sinaliza:

A análise disseca, desvenda, examina, estuda formas de procedimento, rejeita e confirma; revela a orientação e concepção básicas de uma peça e de um papel, o superobjetivo e a linha contínua de ação. Este é o material com que ela alimenta a imaginação, os sentimentos, as ideias e a vontade (STANISLÁVSKI, 1997, p.10).

Ainda segundo o autor, a análise auxilia a estudar as circunstâncias e os fatos externos na vida de um espírito humano, ao buscar, na própria alma do ator, as emoções, sensações e experiências e quaisquer elementos que estabeleçam ligação entre ele e o papel. Isto permitiria o domínio das ações físicas protegendo o ator com relação a inserções motoras desnecessárias, acionando a corporeidade e atingindo sua organicidade cabendo, portanto, estimular o aprofundamento nas estruturas que compõem e determinam o movimento (STANISLÁVSKI, 1997).

Burnier (2001) apresenta a corporeidade como um modo no qual informações de ordens diversas, referentes a um indivíduo, são operacionalizadas e articuladas por meio do corpo, ao afirmar que:

Para observar e transpor, para seu corpo, as corporeidades, o ator deve estar atento às ações físicas e vocais do sujeito observado. E por sua vez, para estar atento às ações físicas, o ator deve observar simultaneamente o todo e o detalhe com precisão. Isso implica uma observação não somente da ação como um todo, mas também dos componentes constitutivos desta ação observada (BURNIER, 2001, p.185).

A observação, como ponto de partida para estimular a composição e posterior realização da ação, sugere o conhecimento da estrutura corporal como mais uma vertente de construção e desenvolvimento das ações físicas em um processo de encenação por permitir ao ator uma análise mais próxima dos objetivos. Acredita-se aqui, aprofundar a compreensão desse instrumento corporal e todos os seus caminhos por meio do treinamento através de exercícios, técnicas corporais e/ou estudos anatômicos, pode promover a verificação de sinais, como possíveis pistas, que levam o ator a estabelecer contato mais próximo entre o seu corpo e a forma de expressar os propósitos da encenação.

Jackie Snow (2012), em sua obra Movement Training for Actors, relata que as técnicas de treinamento do movimento permitem ao ator adquirir uma linguagem corporal e habilidades não verbais para claramente expressar suas ideias sugerindo diversos exercícios. Ela aborda também a observação corporal como proposta de compreensão do próprio corpo pelo ator:

Uma vez que o ator tenha dominado o corpo universal, eles podem começar a observar personagens e situações e aprender sobre o impacto na fisicalização. No início do treinamento, é útil para os estudantes experimentar copiar a forma de caminhar do outro. Uma das maiores descobertas é perceber que quanto mais tensões, bloqueios e idiossincrasias tiver no seu corpo, mais difícil será para se transformar em outro corpo (SNOW, 2012, p.119).

Em diversos momentos do curso, a professora Hebe Alves tentava explicitar os componentes corporais e relacioná-lo com as ações físicas propostas, o que elucidava aos atores as assertivas ou negativas, frente às situações representadas. Esta inserção era um facilitador ao processo de construção do jogo e funcionava como elemento construtivo para a próxima cena, tendo em vista a possível dificuldade dos participantes em analisar os movimentos e posteriormente acoplar o corpo dentro do jogo.

Esta abordagem, já neste momento, levou-me a questionar o quanto nós, os atores, conhecemos da nossa estrutura corporal e como esta concepção acerca do próprio corpo pode ou não facilitar a composição corporal dentro do processo de encenação. A visualização prática de importantes referenciais propostos pelas artes cênicas como a partitura de ações e a construção da linha das ações físicas, aliado ao contexto da compreensão e análise do corpo humano, fez-me pensar nestes conceitos como argumentos que poderiam facilitar o trabalho corporal do ator e a construção da encenação, ao estimular a consciência sobre si mesmo.

O curso tinha um caráter mais experimental do que academicamente formativo, até porque se tratava de uma oficina. No entanto, conceitos como ações físicas, partitura de ações, análise corporal, anatomia emocional eram constantemente discutidos ou chamados à atenção durante a concepção e realização de cada cena com objetivo de fazer o ator transpor este discurso para o seu processo de construção pessoal.

A verificação dos sinais corporais justificava a relação com os outros atores, com a próxima cena e com todo o discurso a ser encenado, o que era bastante facilitado por meio do emprego de técnicas corporais e teatrais, bem como com a análise da estrutura corporal tanto dos atores em cena, quanto dos que iriam entrar em cena. No entanto cabe discutir o quão intuitivas, pela necessidade da interação, eram as atitudes dos atores; ou, até que ponto estes estavam imbuídos de um conhecimento do seu corpo e do corpo do outro para realizar as ações físicas de maneira consciente.

Pude, enfim, perceber que o ato de observar pode edificar uma relação com o biológico e auxiliar no processo de construção do corpo criado para a personagem, levando- me a pensar em propor ao ator um treinamento corporal que parta da consciência sobre a própria estrutura como delimitador de um processo de construção da encenação.