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4. CAMINHOS PARA UMA CENA CORPORIFICADA

4.1 ENCAMINHAMENTOS DIRECIONAIS NO TREINAMENTO CORPORAL

4.1.1 Menos é Mais: Mestre Harildo Déda

O professor, ator e diretor Harildo Déda, atualmente aposentado pela Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sistematicamente realiza cursos de interpretação teatral tendo por base autores ou períodos emblemáticos na história das Artes Cênicas como as Tragédias Gregas, o Realismo, a obra de Shakespeare ou o Método de Stanislávski.

Passei por vários destes cursos, logo depois do Curso Livre da UFBA e ao longo do tempo de formação. Uma das características destes cursos centra-se inicialmente em uma proposta na qual o texto funciona como ponto de partida, e este é aleatoriamente distribuído pelo professor aos atores.

Na verdade acredito que, para os atores que ele previamente conhece, a escolha passa por um crivo de diretor relacionado ao physique du role compatível com a personagem a ser representada ou pela necessidade de trabalhar elementos teatrais específicos com o ator em questão, quando discutidos diretamente com o professor.

No entanto, por vezes, o texto era o que menos importava e apenas servia como elemento primário da estruturação dos arquétipos a serem inicialmente utilizados, mas normalmente desconstruído pelo professor que trazia novas propostas com objetivo de obter uma maior expressividade dos atores envolvidos.

Isto porque, em muitos momentos, as ações, movimentos e expressões corporais dentro do contexto da encenação a ser desenvolvida ou apenas de parte do texto, eram trabalhados com suas falas, pausas, preenchimento corporal destas pausas e variadas dinâmicas que levassem o ator a se aproximar do conteúdo discutido pelo autor.

Nesta perspectiva, o professor Harildo propõe ao ator que, ao estudar seu texto, encontre o que chama de frase-núcleo, e, ao partir desta, comece a pensar de que maneira o seu corpo deve pensar e se moldar para responder ou exprimir o conteúdo desta frase-núcleo

com movimentos cênico-corporais que poderão ser utilizados na cena trabalhada ou em alguma parte da peça em questão. Em livro publicado sobre o professor Harildo Déda, MARFUZ (2011) 17, em entrevista com o mesmo, assinala que:

A frase-núcleo é simultaneamente um meio e um fim. É um procedimento que busca encontrar na cena, na peça, às vezes, em falas e monólogos extensos, a frase que define a ação norteadora do texto. Neste caso, a frase-núcleo da peça orienta o trabalho geral do ator – equivalente ao superobjetivo em Stanislávski ou à supertarefa em Brecht (MARFUZ, 2011, p.163).

Sempre que fui instigado a pensar na frase-núcleo direcionei minha busca para algo que estimulasse a personagem a se mover. Algo que justificasse sua constância ou, principalmente, sua inconstância. Algo que disparasse a sua necessidade de projetar o seu discurso priorizando a forma de efetuar este relato.

O propósito era estimular o ator a perceber o que o faz se movimentar no espaço e, acima de tudo, como e com o que se movimentar para conseguir transmitir a essência de uma proposta cênica. E a frase-núcleo traz em si este objetivo, esta direção, este encaminhamento.

Não acredito que o conhecimento aqui desenvolvido acerca da frase-núcleo e sua possível associação com a alocação de ações físicas pertinentes a situação proposta sirvam apenas ao teatro apoiado na construção da personagem a partir do texto. O próprio Harildo Déda afirma que para o trabalho do ator, definir a necessidade da personagem é mobilizador:

O ator deve encontrar a sua querência, qual a sua necessidade. Isso fica muito mais claro, mais ativo para o ator do que o objetivo (de Stanislávski). E aí você descobre, encontra um verbo de ação que complementa a frase-núcleo; ou seja, eu quero, mais um verbo de ação em relação à outra que está na peça, que é sua antagonista ou protagonista em conjunto com você. Isto vai significar muito para seu parceiro de cena (DÉDA apud MARFUZ, 2011, p.168).

Discurso similar é encontrado nos estudos de Constantin Stanislávski sobre as ações físicas ao citar no Manual do Ator:

Não há ações físicas dissociadas de algum desejo, de algum esforço voltado para alguma coisa, de algum objetivo, sem que se sinta, interiormente, algo que as justifique. (...) No teatro, toda ação deve ter uma justificativa interior, deve ser lógica, coerente e verdadeira e, como resultado final, temos uma atividade verdadeiramente criadora (STANISLÁVSKI, 1997, p.2).

Sempre fez parte do treinamento do professor Harildo, principalmente quando o ator não conseguia atingir o caminho orientado pelo texto ou pelo diretor, recorrer à frase-núcleo e trabalhá-la à exaustão, porém solicitando ao ator que “movimentasse” a frase. Não era incomum o professor parar a encenação e solicitar ao ator que mostrasse cada palavra do texto

17

A publicação Harildo Déda: a matéria dos sonhos, de autoria de Luiz Marfuz e Raimundo Matos de Leão, faz parte do projeto Mestres da Cena, uma iniciativa da Secretaria Cultural do Estado da Bahia que pretende reconhecer e homenagear os mestres de todas as artes e, neste exemplar, celebra e presta um tributo ao grande mestre, ator e encenador Harildo Déda.

com o seu corpo ou uma parte dele. Surge daí a proposta sempre frequente do menos é mais, do mais é menos, na qual o ator era levado a crescer ou diminuir movimentos de acordo com a exigência da cena ou das emoções a serem representadas.

O objetivo era fazer com que o ator desenvolvesse mecanismos corporais diferentes dos habituais para exprimir as intenções do texto, possibilitando a transposição do discurso do livro, do autor, para a peça em si. Isso permitiria uma melhor troca com seu colega de cena, e também consigo mesmo, ao levar o ator a compreender seus limites e principalmente a necessidade de atingir, transpor ou não, os limites do seu corpo. E, além disso, utilizar conscientemente seu construto corporal como veículo de ações que muito podem dizer ao seu interlocutor mesmo sem um texto como ponto de partida.

Stanislávski relata atitude similar para facilitar que os atores vivenciem estas situações em A Preparação do Ator (1999):

Devido à presença de uma grande plateia, o ator, quer queira, quer não, sente-se obrigado a produzir uma grande quantidade desnecessária de esforço e de movimentações que pretendem representar sentimentos. Entretanto, por mais que faça, enquanto estiver ante as luzes da ribalta, isso lhe parecerá ainda insuficiente. E a consequência é vermos um excesso de atuação que chega a 90%. Por isto mesmo, durante os meus ensaios vocês me ouvirão muitas vezes repetir: Cortem 90% (STANISLÁVSKI, 1999, p.170).

Desde que comecei a usar estes elementos, o menos é mais, a frase-núcleo, pensei no desejo, na justificativa em realizar algo. Neste momento em especial, a frase-núcleo assume esta responsabilidade de direcionar o motivo que desperta a possibilidade de mover ou não. De atuar. De estar corporalmente presente. É uma grande justificativa que funciona como pretexto para dialogar por meio das ações e utilizar cada parte do corpo para se expressar. Creio que a frase núcleo pode surgir como um estímulo interno, um motivo que dispare a necessidade de executar uma ação.

Grotowski sugere que antes da ação física existe o impulso, que está enraizado profundamente dentro do corpo, e que o empurra, e depois se estende para fora, relacionando- o à intenção em realizar:

Um impulso aparece em tensão. Quando temos a intenção de fazer alguma coisa, dentro de nós existe uma tensão certa dirigida para fora. Não há intenção se não há uma mobilização muscular apropriada. Isso também faz parte da intenção. A intenção também existe em um nível muscular no corpo, e está ligada a um objetivo que está fora de você (GROTOWSKI apud RICHARDS, 2012, p.110).

Esta é uma sugestão que aponta para a necessidade de o ator pensar em como se mover e atingir seu objetivo da maneira mais precisa. Porém, percebo que isso requer treinamento e estudo da estrutura corporal aliados ao contexto da preparação corporal. Neste sentido, elementos como a frase-núcleo, que podem traçar um paralelo sobre como emitir o discurso

que a frase escolhida representa, como um motivo, que justifique o movimento, a ação física que será realizada e assim, associar ao corpo que irá expressar seu conteúdo.