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A HISTÓRIA E SEU LUGAR ENTRE AS CIÊNCIAS

Em 1901, Alexandru Xénopol publicou um texto intitulado La classification des

sciences et l’Histoire (A classificação das ciências e a História), o qual pode ser visto

como um resquício de seu debate com Lacombe, por tratar de problemas envolvidos nessa peleja intelectual. Nessa publicação, buscou apresentar sua visão acerca da base da classificação das ciências, a qual, em seu entendimento, deveria ser diferente. Para ele, “a classificação das ciências responde a uma necessidade lógica de nosso espírito que exige colocar ordem nos nossos conhecimentos, ordenar nossas ideias de acordo com os princípios da coordenação e da subordinação”129 (XÉNOPOL, 1901b: 264). As pesquisas realizadas até esse momento, por filósofos da ciência ou outros pensadores, eram insuficientes para dar conta desse problema. Porém, o historiador romeno defendeu que não queria promover uma outra classificação, mas mudar a própria base sobre a qual ela se organizava. A partir dessa mudança, seria possível vislumbrar a característica da História e, atribuir-lhe seu verdadeiro lugar na hierarquia dos conhecimentos humanos (XÉNOPOL, 1901b).

A principal dificuldade de se realizar tal operação seria o de encontrar qual o princípio em que a ciência deve se apoiar e, a partir disso, realizar um novo arranjo. A ciência teria dois princípios: um primeiro, os fenômenos que elas estudariam; o segundo, a maneira na qual adquirimos conhecimento e como nos apropriamos dele (XÉNOPOL, 1901b). A classificação destas deveria, de acordo com Xénopol, se pautar no objeto dos fenômenos, já que a ciência, diferentemente da religião e das artes não seria uma criação de nosso espírito, mas sim “o reflexo da realidade no

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129 No original. “[…] la classification des sciences répond à un besoin logique de notre esprit qui exige de mettre de l’ordre dans nos connaissances, de ranger nos idées d’après les principes de la coordination et de la subordination.”. (Tradução nossa).

entendimento, a projeção da razão das coisas na razão humana”130 (XÉNOPOL, 1901b: 265). Por isso, ela não variaria de acordo com as raças e os povos, mas seria única. Isso levaria, então, a mostrar que o critério para a classificação teria sido mal escolhido e que autores como Bacon, d’Alambert, Auguste Comte, Herbert Spencer e Ampère estariam equivocados, pois teriam realizado essa divisão a partir de características físicas ou psíquicas de seus fenômenos ou, ainda, por seu nível de complexidade e de generalidade (XÉNOPOL, 1901b). Xénopol se propôs, então, a buscar um novo fundamento lógico para estabelecer uma classificação racional, entre fatos de sucessão e fatos de repetição.

Os fatos do universo contidos no espaço infinito, quaisquer que eles sejam, físicos ou psíquicos, simples ou complexos, se manifestam de duas maneiras distintas na corrente do tempo. As forças que os impulsionam ao dia, ou só os reproduzem, sem mudanças importantes, ou elas os transformam continuamente. No primeiro caso, nós temos os fatos de

repetição; no segundo, os de sucessão131 (XÉNOPOL, 1901b: 269).

Como exemplificação dos fatos de repetição, para os fenômenos físicos, poderiam ser citados: as estações do ano, a rotação da Terra, entre outros. Para as questões dos seres humanos: os fatos lógicos do pensamento, as relações entre certos fenômenos sociais, como a relação entre o preço do trigo e o custo dos casamentos ou ainda a relação entre mortalidade infantil com o número de concubinatos (XÉNOPOL, 1901b).

Os fatos de sucessão, por sua vez, nada mais seriam do que fatos de repetição que mudam a cada instante, em uma cadeia que tem um sentido. Como exemplo para os fatos de sucessão, foram citados “a sucessão das batalhas em uma guerra, de artistas em uma escola de pintura, de poetas no desenvolvimento de uma forma literária etc.”132 (XÉNOPOL, 1901b: 270). Todas essas operações ocorreriam através da repetição, mas uma repetição cada vez mais diferenciada conforme ela fosse acontecendo. O elemento característico, então, não seria mais a semelhança das formas repetidas, mas justamente a diferença que os distinguiria _______________

130 No original: “[…] le reflet de la réalité dans l’entendement, la projection de la raison des choses dans la raison humaine.”. (Tradução nossa).

131 No original: “Les faits de l’univers contenu dans l’espace infini, quels qu’ils soient d’ailleurs, physiques ou psychiques, simples ou complexes, se manifestent dans le courant du temps de deux façons distinctes. Les forces qui les poussent au jour, ou bien ne font que les reproduire, sans changements importants, ou bien elles les transforment continuellement, Dans le primer cas, nous avons les faits de répétition ; dans le second ceux de succession.”. (Tradução nossa).

132 No original: “[…] la succession des batailles dans une guerre, des artistes dans une école de peinture, des poètes dans le développement d’une forme littéraire, etc.”. (Tradução nossa).

uns dos outros (XÉNOPOL, 1901b). Por conta disso, os fatos de repetição poderiam ser identificados por leis, como por exemplo que o ângulo de reflexão de um raio luminoso é igual ao ângulo de incidência. Entretanto, quando as circunstâncias mudam a todo instante e a força atua diferentemente nos fatos, uma fórmula geral de sua produção, ou seja, uma lei, se tornaria impossível de ser identificada (XÉNOPOL, 1901b). “Segue-se disso que os fatos de repetição podem ser formulados por leis gerais, enquanto os fatos de sucessão se encadeiam em séries únicas e particulares que exigem para cada um deles uma fórmula especial”133 (XÉNOPOL, 1901b: 271-272). Com isso, Xénopol (1901b) indicou também as diferenças entre os fatos de repetição e os de sucessão em sua relação com o tempo. O primeiro, os de repetição, por sempre se repetirem, o tempo não exerceria nenhuma influência sobre eles. Por sua vez, os fatos de sucessão seriam sempre individualizados em relação ao tempo.

Com base nessas diferenças entre os fatos de repetição e os fatos de sucessão, Xénopol propôs sua nova classificação das ciências. O historiador romeno optou por se aprofundar mais na ciência dos fatos de sucessão, por enxergar ali o local principal da atuação da História.

Essas últimas [as ciências dos fatos de sucessão], as únicas das quais nos ocuparemos, se aplicarão ou bem aos fatos que mudam a si mesmos ou bem a nossos conhecimentos relativos aos fatos, imutáveis ou cambiáveis. Assim, nós teremos de um lado as ciências do desenvolvimento da terra (geologia), essa dos seres que vivem sobre a superfície do globo; a do desenvolvimento humano, em suas diversas ramificações, como história social e política, história das religiões, das artes, das linguagens, dos costumes, do direito, da literatura etc.; do outro lado, nós teremos a história das teorias e das descobertas astronômicas, físicas, químicas, biológicas e mesmo a história das teorias históricas. Essas duas subdivisões da ciência dos fatos de sucessão, nós a designaremos pelos termos de ciências

históricas reais e ciências históricas ideais. Enfim, esses dois ramos se

dividirão, por sua vez, em tantos grupos quanto ramos diferentes134 (XÉNOPOL, 1901b: 274).

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133 No original: “Il suit de là que les faits de répétition peuvent être formulés par des lois générales, pendant que les faits de succession s’enchaînent dans des séries uniques et particulières qui exigent pour chacune d’elles une formule spéciale.”. (Tradução nossa).

134 No original: “Ces dernière, les seules dont nous nous occuperons, s’appliqueront ou bien aux faits qui changent eux-mêmes ou bien à nos connaissances relatives aux faits, immuables ou changeants. Ainsi nous aurons d’un côté les sciences du développement de la terre (géologie), celles des êtres qui vivent sur la surface du globe ; celle du développement de l’humanité, dans ses diverses ramifications, comme histoire sociale et politique, histoire des religions, des arts, du langage, des mœurs, du droit, de la littérature, etc., etc. ; de l’autre nous aurons l’histoire des théories et des découvertes astronomiques, physiques, chimiques, biologiques et même l’histoire des théories historiques. Ces deux sous-divisions de la science des faits de succession, nous les désignerons par les termes de sciences historiques réelles et sciences historiques idéales. Enfin ces

Interessante observar, então, que ciências usualmente concebidas como “da natureza”, como a geologia, estariam incluídas nessa parte dos fatos de sucessão que, como visto na citação, seriam divididas entre ciências históricas reais e ciências

históricas ideias, ou seja, com uma preponderância da disciplina histórica. A imagem

(Figura 1) a seguir apresenta de forma esquematizada essa divisão e, também, as subdivisões ali inclusas.

FONTE: Tradução e Adaptação de Xénopol (1901b).

Haveria uma diversidade de ramificações nas ciências dos fatos de sucessão, abordando desde o desenvolvimento do universo, da Terra e dos organismos, chegando até aos conhecimentos sobre os fenômenos que mudam, ou seja, a história das ciências. De acordo com Xénopol,

essa tabela [Figura 1] nos dá uma ideia do entendimento das ciências dos fatos de sucessão e, como resultado, o direito de sustentar que a história, no amplo sentido da palavra, não é uma ciência especial, como gostávamos de considerar até o presente, ciência que deveria ser colocada ao lado da

deux embranchements se diviseront à leur tour en autant de groupes qu’il y a de rameaux différents.”. (Tradução nossa).

biologia, da psicologia ou da sociologia; mas que ela constitui um dos dois

modos universais de concepção de mundo, o modo de sucessão em relação ao mundo da repetição. Essa concepção de história mostra a

importância de nossa disciplina, na qual o princípio, aplicado à natureza material, regenerou o estudo dessa divisão pela ideia tão fecunda de evolução. Longe de ter que se defender contra as imputações que lhe endereçam certos pensadores, de não ser nem mesmo uma ciência, a história se desvela diante de nossos olhos como tendo direitos iguais ao cetro da razão humana, com sua irmã gêmea, a ciência dos fatos de repetição135 (XÉNOPOL, 1901b: 276).

A partir disso, é possível compreender essa defesa de Xénopol em criar uma classificação das ciências, mudando a própria base na qual ela se apoiaria. Suas ideias de fatos de repetição e fatos de sucessão seriam uma forma de se afastar de outras classificações baseadas em ciências da natureza e ciências da humanidade. Tal proposição de ciência se afasta daquela proposta pelo criador da RSH. Como visto, para Henri Berr (1946 [1911]), a ciência deveria ter um foco no geral e não em fatos particulares, ponto em comum com Lacombe (1900a; 1900b), ao contrário do que defendeu Xénopol, em focar nos fatos de sucessão. Além disso, Berr também acreditava ser possível encontrar leis históricas, desde que elas designassem fatos humanos de caráter geral. Para tanto, o caminho a seguir deveria ser o da síntese científica, preocupada em compreender a causalidade136. Em textos posteriores, Xénopol (1904a; 1904b; 1913) também tratou desse assunto em particular, onde apresentou sua visão acerca da causa em História a partir de sua proposta de Teoria da História.

Nesse momento de formação de um campo científico da História, discutir a partir de quais bases essa ciência deveria se organizar mostra uma disputa pelo que Pierre Bourdieu (1983) chamou de autoridade científica, capital específico do campo científico. Essa luta para impor uma definição de ciência, como visto nos textos de Berr (1946 [1911]), Xénopol (1900a; 1900b; 1901) e de outros pesquisadores nesse momento, explicitam essa disputa em que cada um procurou se colocar numa _______________

135 No original: “Ce tableau nous donne une idée de l’étendue de la science des faits de succession et par suite le droit de soutenir que l’histoire, au sens large du mot, n’est pas un science spéciale, comme on s’est plu à la considérer jusqu’à présent, science que devrait âtre rangée à côté de la biologie, de la psychologie ou de la sociologie ; mais qu’elle constitue un de deux modes universels

de conception du monde, le mode de la succession en regard du mode de la répétition. Cette

conception de l’histoire montre l’importance de notre discipline, dont le principe, appliqué à la nature matérielle, a régénéré l’étude de cette division par l’idée si féconde de l’évolution. Loin d’avoir à se défendre contre les imputations que lui adressent certains penseurs, de ne pas même être une science, l’histoire se dévoile à nos yeux comme ayant des droits égaux au sceptre de la raison humaine, avec sa sœur jumelle, la science des faits de répétition.”. (Tradução nossa).

posição de destaque dentro desse campo e apresentar suas propostas teóricas como mais interessantes do que as outras. Segundo Bourdieu,

na luta em que cada um dos agentes deve engajar-se para impor o valor de seus produtos e de sua própria autoridade de produtor legítimo, está sempre em jogo o poder de impor uma definição da ciência (isto é, a de limitação do campo dos problemas, dos métodos e das teorias que podem ser considerados científicos) que mais esteja de acordo com seus interesses específicos. A definição mais apropriada será a que lhe permita ocupar legitimamente a posição dominante e a que assegure, aos talentos científicos de que ele é detentor a título pessoal ou institucional, a mais alta posição na hierarquia dos valores científicos (por exemplo, enquanto detentor de uma espécie determinada de capital cultural, como ex-aluno de uma instituição de ensino particular ou então como membro de uma instituição científica determinada etc.) (BOURDIEU, 1983: 127-128).

Com isso, uma das formas com que A.-D. Xénopol buscou impor uma definição de ciência foi através da proposição de sistemas conceituais próprios, por exemplo: ciência dos fatos de repetição e ciência dos fatos de sucessão. Como apontamos, o historiador romeno se inspirou largamente em uma tradição intelectual alemã. Contudo, como sua atuação principal era na Romênia, a qual não possuía um sistema de ensino e pesquisa forte e estabelecido, em comparação com outros países europeus, podemos imaginar que seu aporte teórico-metodológico fosse inovador em seu país de origem. Ademais, seu investimento na publicação de textos na França, onde gerou uma certa repercussão, contribuiu para que suas ideias circulassem fora de seu ambiente intelectual. Apesar disso, sua posição na França era marginal e limitada, gerando pouca interação com outros pesquisadores.

Essas disputas acerca da História e de sua cientificidade não estavam presentes somente na RSH, mas também em outras revistas e na forma de livros. Além de aparecerem na França, também ocorria na Alemanha, como demonstram os textos de Heinrich Rickert (1863 – 1936), Karl Lamprecht (1856 – 1915), e na Itália, com contribuições na RSH de autores como Benedetto Croce (1866 – 1952) e Pasquale Villari (1827 – 1917). Além disso, tal debate não se restringiu somente a questão da cientificidade da História, mas versou também sobre suas teorias e metodologias próprias. Alexandru Xénopol, em três textos, se propôs a tratar do problema da causalidade em História, assim como Berr trabalhou com isso em sua obra de 1911.