• Nenhum resultado encontrado

História oral e pesquisa qualitativa

Como história oral, entendemos a perspectiva – essencialmente híbrida e multifacetada – de, diante da impossibilidade de constituir fontes que recriem “a” história, registrar algumas das várias versões possíveis, aos olhos de atores sociais que vivenciaram certos contextos e situações, considerando como elementos essenciais nesse processo as memórias desses atores – via de regra negligenciados pelas aborda- gens oficiais – sem desprestigiar, no entanto, os dados “oficiais”, sem negar a importância das fontes escritas primárias, dos arquivos, dos

monumentos, dos tantos registros possíveis, os quais consideramos uma outra versão, outra face dos “fatos”.

A História é, como sentencia Cohen (2000), apenas um outro texto em uma procissão de textos possíveis e não uma garantia de qualquer significação singular. Entendemos, portanto, a história oral como método de pesquisa qualitativo que nos permite compreender e constituir registros historiográficos não apenas para pesquisas pro- priamente “historiográficas”.

Ainda que correndo o risco de sermos repetitivos, essa afirmação deve ficar bem marcada, por isso a dizemos de outro modo: o que sig- nifica afirmar que “este trabalho é um trabalho que tem como meto- dologia a história oral?”. Significa, antes de qualquer coisa, que o trabalho cuida de constituir fontes das quais ele próprio – e outros – podem nutrir-se para focar determinados objetos de pesquisa. Essa caracterização, entretanto, não é suficiente para distinguir o “tra- balho que mobiliza a história oral” de outros tantos trabalhos que, para serem desenvolvidos, coletam entrevistas, transcrevem-nas e utilizam-nas para tecer um emaranhado analítico do qual resultam compreensões sobre determinados temas. Boa parte dos trabalhos de pesquisa em Educação Matemática, abraçando uma ou outra perspec- tiva qualitativa de investigação, faz isso. Qual, então, a distinção pos- sível? Nos trabalhos que mobilizam a história oral, alguns parâmetros específicos são seguidos, e tais parâmetros são, basicamente, a série de procedimentos que cuida da constituição das fontes, aliada a uma fundamentação específica desses procedimentos. Onde e como, então – pode-se perguntar – a História participa disso? A História – ou a Historiografia – participa desse processo dada a intenção clara e explí- cita que o oralista tem, a de registrar memórias, relatos de experiências vividas e, a partir delas, intencionalmente, constituir fontes históricas, registrando experiências vividas. O surgimento da história oral, por- tanto, tem sentido numa certa época e em certas condições – que Hartog chamaria de “o Regime de Historicidade contemporâneo” –, em que se torna legítimo registrar subjetividades que passam – os re- gistros – a ser fontes para a constituição de narrativas que podem cir- cular no meio acadêmico, por exemplo. Se a constituição intencional

ELEMENTOS DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA 97

de fontes define o esforço do oralista, é preciso que esse oralista se cerque de cuidados, tendo clara, por exemplo, uma concepção sobre o que é, para ele, praticar Historiografia, o que são fontes, quais suas potencialidades, qual o alcance e a legitimidade dos discursos possí- veis a partir das fontes que ele disponibiliza, em que perspectiva de ciência suas intenções e suas atividades se inscrevem, quais as ideolo- gias e como se manifestam, tanto na criação como na divulgação e apropriação das fontes criadas, etc. Por que, quando ingressa na Edu- cação Matemática como forma potencial de promover pesquisa, essa nomenclatura não foi alterada? Exatamente para realçar o fato de que a história oral em Educação Matemática é uma apropriação (criativa) de histórias orais já desenvolvidas em outros campos, como a Antro- pologia, a Sociologia, os Estudos Culturais, a própria História, etc. Ressalte-se que a incorporação da história oral à Educação Matemá- tica, ao mesmo tempo que explora criativamente tradições de outros campos, mantém uma tradição bastante consolidada na área: a de mo- bilizar parâmetros qualitativos de investigação que também se apoiam na oralidade, na coleta de depoimentos que, de um modo ou de outro, são analisados segundo perspectivas várias. A história oral cria fontes que diversas tramas qualitativas de pesquisa permitem explorar. Assim, pode-se usar a história oral concebendo-a apenas como uma técnica de constituir fontes a partir da oralidade. Essa, entretanto, não é a perspectiva que defendemos. Para nós, a história oral é metodo- logia de pesquisa que envolve a criação de fontes a partir da oralidade e compromete-se com análises coerentes e sua fundamentação (que pode envolver ou não procedimentos usados em outros tipos de pes- quisa). O diferencial é essa “criação intencional” de fontes a partir da oralidade e a fundamentação que se estrutura para essa ação. Essa mesma fundamentação orienta, inclusive, práticas de análise na pes- quisa. Assim, nossos pressupostos indicam, sim, como construir fontes, mas também por que construí-las e como valer-se delas. In- dicam, ainda, questões geradoras de pesquisa e abordagens de análise. Quando cria fontes, o oralista não está, necessariamente, impondo-se a desenvolver uma operação historiográfica em sua plenitude, mas deve conhecer os trâmites gerais de uma operação historiográfica, já

que ele a possibilita, ao prover, seja para a pesquisa, seja para alguma forma possível de intervenção prática, registros que podem iniciar um outro movimento de registro, narrativas que implicam a possibilidade de constituir outras narrativas. Quando cria fontes, o oralista pode, inclusive, dispor-se a partir delas para a constituição de uma narrativa historiográfica. A elaboração da fonte, apenas ela, não é o todo de uma operação historiográfica. A fonte pode alimentar uma operação histo- riográfica, nunca confundir-se com ela. Assim, as fontes criadas ao mobilizarmos a história oral podem servir aos mais diversos fins. Re- gistros de experiências vivenciadas ou fantasiadas, relatos de “factuali- dades” vividas ou desejadas, expressões de como o passado comportava outros futuros – que se consolidaram ou não no presente –, recursos para a busca de referências as mais diversas possíveis, as fontes criadas poderiam ser apropriadas por cineastas que, a partir delas, preten- dessem compor roteiros; poderiam ser usadas por fenomenólogos que, a partir delas, poderiam lançar-se a análises ideográficas e nomo- téticas, voltados a compreender determinados temas; poderiam servir a uma análise de discurso; ser usadas no ensino fundamental e médio como inspirações para composições escolares ou para trabalhos em sala de aula que tivessem como intenção, por exemplo, levar os estu- dantes a compreender sua cidade, sua escola, sua família, sua “histori- cidade próxima”; poderiam apoiar a reflexão de profissionais (dentre os quais, obviamente, estudantes e pesquisadores) sobre suas prá- ticas; ser objeto de estudo dos gerenciadores de políticas públicas in- teressados em conhecer como determinados atores sociais enfrentam cotidianamente temas como violência, segurança, escolaridade, etc. As fontes – cuidadosa e legitimamente constituídas – podem servir a inúmeras finalidades, participando, inclusive, de trabalhos acadêmicos voltados a compreender a História da Educação Matemática no Brasil. Basta que se mobilize a história oral para constituir fontes cujo foco temático permita a leitura de aspectos que um determinado uso delas quer realçar.

Nesse panorama, os “memorialistas” são constituidores de regis- tros: constroem, com o auxílio de seus depoentes-colaboradores, fontes que são “enunciações em perspectiva”, “versões” que com-

ELEMENTOS DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA 99

põem cenários possíveis e preservam vozes muitas vezes alternativas e dissonantes aos “fatos” históricos.

Considerar a história oral como método qualitativo de pesquisa implica também inscrevê-la como uma possibilidade diante das ca- racterísticas do que Lyotard define como pós-modernismo, momento em que se declara uma “morte aos centros” e uma “desconfiança das metanarrativas”. Como afirma Jenkins (2005), os antigos quadros de referência anglocentrados, eurocentrados, sexistas, etc. já não são mais considerados legítimos ou naturais e não há consenso quanto às verdades radicadas nas metanarrativas teológicas, nas metanarrativas científicas ou filosóficas, nem quanto aos programas unidirecionados de progresso, reforma e emancipação do homem. O passado – preen- chido ontologicamente pelos homens do passado – pode também ser redescrito infinitamente.

De um lado, o passado podendo ser lido nesse campo de inte- resses diversos, cada um desses interesses produzindo seus textos e suas leituras (estabelecendo, portanto, o passado “em si” como uma ausência); do outro lado, o passado assentado como a verdade defi- nida e definidora da história autorizada. No “entre”, a possibilidade de mais pessoas e mais grupos produzirem suas próprias histórias – uma prática discursiva que possibilita a mentalidades do presente ir ao passado para sondá-lo e reorganizá-lo de maneira mais adequada às suas necessidades – para que possam dar visibilidade a aspectos do passado antes ocultos ou dissimulados, que foram desconsiderados ou postos de lado (Jenkins, 2005), uma história que mostra que o passado comportava outros futuros além daquele que se processa no presente (Souza, 2005).