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Pergunta de pesquisa, escolha de depoentes

Toda pesquisa requer um planejamento prévio, e por “planeja- mento prévio” entendemos que ninguém se lança a investigar deter- minado fenômeno se não tiver constituído suas intenções a respeito dessa investigação. Com o desenrolar do trabalho, essas intenções vão sendo reformuladas, complementadas, refeitas, mas há que se ter uma configuração inicial para que o trabalho se desenvolva: todo projeto de pesquisa é uma fantasia que vai se tornando realidade à medida

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que a pesquisa se desenvolve. Por intenções de uma pesquisa enten- demos a explicitação da questão que dirigirá o estudo. Essa questão diretriz, que muitas vezes, de modo equivocado, é tomada como uma mera sentença interrogativa, vai direcionar os esforços do pesqui- sador, a elaboração de suas estratégias de ação. Do planejamento ini- cial da pesquisa, portanto, constam não só o esboço de uma pergunta diretriz, mas também uma listagem prévia dos depoentes que o pes- quisador julga importantes para auxiliá-lo nessa empreitada, e a ela- boração de um roteiro das perguntas para as entrevistas.

Deve-se esclarecer ao depoente, além da natureza da investigação e dos procedimentos, a possibilidade de ele ter em mãos, previamente, o roteiro das entrevistas. Pode-se imaginar que esclarecer mais pro- fundamente ao depoente a natureza de suas intenções (indo além da disponibilização prévia, ao colaborador, do roteiro da entrevista) in- viabiliza as análises, pois envieza as narrativas. Defendemos o oposto: além de ter necessariamente que se pautar pela ética da pesquisa, deixar claras, aos depoentes, essas intenções, fará com que os depoi- mentos também possam ser analisados pelas “ausências” (sabendo, em linhas gerais, as cercanias que o pesquisador pretende visitar, por que o depoente não trata daquele assunto? Por que trata do tema se- gundo uma tal abordagem e não outra?, etc.).

Entrevistas

Entrevistas são diálogos acerca de algo (o objeto da pesquisa) e são tanto mais ricas quanto mais ocorrerem num clima de cumplici- dade entre entrevistador e entrevistado. Essa cumplicidade, via de regra, exige que o pesquisador conheça aspectos daquilo que o de- poente narra. A fluência da narrativa demanda interlocução e essa interlocução demanda um horizonte comum a partir do qual um tema é focado. Ainda que seja possível uma entrevista em que o de- poente “ensine” ou “explique” algo a um entrevistador totalmente ignorante acerca do que lhe é ensinado ou explicado, mais ricas são as situações nas quais o pesquisador interage com o depoente, pergun-

tando, complementando, valorizando as experiências que a ele são relatadas.

É equivocado supor que uma pessoa não possa narrar, para outra, algo que vivenciaram juntas. As experiências são vividas par- ticularmente, e mesmo dois interlocutores que tenham participado das mesmas situações, passado pelas mesmas experiências, poderão elaborar e narrar essas vivências segundo uma perspectiva nova, desconhecida do outro. Sempre há entre dois interlocutores um es- tranhamento visceral, primário, fundado na impossibilidade da co- municação plena do que foi experienciado e na particularidade desse modo de experienciar. Mesmo nos casos mais específicos, portanto, a entrevista é um momento em que se tenta ultrapassar a incomuni- cabilidade da experiência, com o que detalhes, percepções e focos são reconstituídos e partilhados.

Uma entrevista pode ser, também, um momento de embate, no qual, por conhecer o ambiente sobre o qual o depoente narra, o entre- vistador a ele se contrapõe, exigindo, por exemplo, uma explicitação mais clara de seus pressupostos ou uma tomada de posição. Certa- mente há, nessa perspectiva, a possibilidade de interrupção da interlo- cução e, por isso, o pesquisador deve avaliar cuidadosamente essa opção. De todo modo, há que se negar veementemente a neutralidade do pesquisador, quer no momento da entrevista, quer em outras ins- tâncias do processo de investigação. O pesquisador não é neutro e não deve mostrar-se neutro para seu colaborador: deve interagir com ele, cativá-lo para tê-lo como interlocutor; deve ouvi-lo, podendo contestá- -lo ou não, mas nunca – e isso é fundamental – manter em relação ao seu depoente uma postura de afastamento silencioso que, querendo manifestar neutralidade e imparcialidade (com o que já contamina negativamente os parâmetros que situam sua abordagem como quali- tativa), demonstra também desinteresse, implicando, via de regra, a quebra da interlocução.

Afirmam alguns autores que os pressupostos do pesquisador insi- nuam-se quando ele se prepara previamente para sua imersão na pes- quisa. É certo que nossas convicções e pressupostos insinuam-se no nosso modo de ver o mundo e, certamente, em nosso modo de conduzir

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as investigações. Está baseada nessa constatação nossa afirmação de que o processo de análise não é um momento estanque na pesquisa, mas um movimento que atravessa todo o processo, desde suas intenções ini- ciais. É também a partir dessas considerações que assumimos não serem os “dados” de uma pesquisa coletados como se estivessem disponíveis, em uma forma estável, independente daquele que vai coletá-los. Mas é equivocado pensar que – devido a nossas intenções já dispararem um processo hermenêutico – nossos pressupostos determinam nossa traje- tória de investigação, que, assim “determinada”, não pode passar por um processo de contínuas reformulações e sofrer alterações significa- tivas. Ainda que haja uma insinuação de nossos pressupostos no enca- minhar da investigação, é ingênuo pensar que não haja possibilidade de que outros fatores, não aventados por nós, surjam. A aceitação desses “surgimentos” não programados (que levarão a reconfigurações no de- senho de pesquisa inicialmente proposto) faz parte da postura neces- sária para conduzir investigações de natureza qualitativa. Assim, se por um lado devemos evitar a ingenuidade de que nossos encaminhamentos são neutros, devemos também evitar o determinismo da afirmação de que, linearmente, nossos pressupostos impedem o surgimento de situa- ções que não tenham sido “pré-programadas”.

Outras estratégias podem disparar as narrativas de nossos de- poentes: fotografias, outros relatos, livros, lembranças comuns a entre- vistador e entrevistados, pequenas fichas com termos ou expressões deixadas à mão para “guiar” a rememoração/narração, etc., podem ser elementos fundamentais para a quebra de barreiras do primeiro con- tato, trazendo à tona algumas lembranças, criando uma atmosfera para o diálogo. O depoente organiza lembranças, ideias, expõe pontos de vista. No decorrer da entrevista, conforme a sensibilidade e a ha- bilidade do entrevistador, a conversa poderá adquirir um caráter in- formal e desinibido, levando o depoente a discorrer de modo mais livre. Nessas nuances da linguagem pode estar o objeto de análise do pesquisador, pois um depoimento, além de dados, manifesta as cer- canias de um discurso que não só reconstitui o que está sendo nar- rado, mas é, ele próprio, instância de constituição de situações e sujeitos. Narrando-se, os depoentes explicitam plenamente a subjeti-

vidade que o pesquisador deve respeitar ao tramar suas análises. É exatamente por isso que, nas pesquisas conduzidas segundo os parâ- metros da história oral, as questões de anonimato – salvo raríssimas exceções1 – não se impõem, como é usual ocorrer às demais modali-

dades qualitativas de pesquisa. Na verdade, as intenções do pesqui- sador em esconder sob pseudônimos seus colaboradores, em quaisquer modalidades de pesquisa qualitativa, frequentemente resvalam para um pseudoanonimato, dado que as características gerais do depoente devem sempre ser tornadas públicas, já que as percepções do nar- rador estão vinculadas às suas experiências e aos lugares que ocupam no mundo. Explicitar – de uma forma ou outra – quem são os de- poentes é necessário até para avaliar a pertinência desses depoentes no processo de construção solidária das compreensões que a pes- quisa busca.