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I – Circunstâncias: acasos e intenções

A ideia dessa primeira possibilidade de intervenção que aqui apresentamos nasceu de um projeto de pesquisa desenvolvido como doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP/Rio Claro (Souza, 2011) cujo objetivo foi avaliar a organi- zação de uma trama de investigação e intervenção que, tendo a his- tória oral como metodologia norteadora, visava a integrar várias comunidades e, ao mesmo tempo, fazer funcionar vários projetos. O dinamismo e a pluralidade de situações e subprojetos envolvidos nessa proposta exigem um detalhamento.

Em nossas práticas de pesquisa temos priorizado a história oral como perspectiva metodológica. Isso não implica, entretanto, reduzir nossas fontes àquelas coletadas oralmente nem que essa pesquisa tenha um tema “propriamente historiográfico”.1 Ao contrário, implica “pro-

duzir” uma gama diversificada de fontes e situações a partir das quais um determinado objeto possa ser focalizado e, consequentemente, in-

1. Isso significa que podemos conduzir uma investigação usando a história oral como metodologia, sem necessariamente ter a intenção de disparar uma ope- ração historiográfica. Valer-se da história oral, entretanto, sempre implicará al- guns cuidados historiográficos – posto que uma das funções do oralista é criar fontes que são, potencialmente, queira ou não o pesquisador, historiográficas. “Criar fontes” ou “torná-las documentos” – disso também já tratamos no capí- tulo 1 – é uma expressão simplificada, já que todo documento é, em essência, uma criação. Ou seja, documentos não são objetos materiais – pedras, papel, fitas magnéticas –, são leituras, atribuições de significados, apropriações intencionais das informações inscritas em determinados suportes materiais ou manifestações. Um documento só nasce da interrogação.

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vestigado. A essa opção subjazem vários princípios dos quais trata- remos ao longo deste livro. No momento, interessa saber que todo trabalho com história oral, segundo os teóricos que temos usado como referência, deve ser compartilhado, de algum modo,2 com a comu-

nidade de colaboradores que o tornou possível. Tentando compreender as possibilidades dessa tarefa que se impunha a todo um grupo de pes- quisa – a saber, criar mecanismos para que uma determinada pesquisa, seu processo e seus “resultados” pudessem ser compartilhados não apenas entre os membros da comunidade acadêmica, mas também com o grupo de colaboradores das pesquisas que realizamos –, decidimos tomar como tema de investigação exatamente essa necessidade e suas potencialidades. Isso exigia, portanto, a escolha prévia de um tema espe cífico a ser investigado de modo que, durante a investigação, fossem gerados registros não apenas para a investigação, mas também sobre o processo de investigação. A pesquisa visava, então, investigar a investi- gação, o que implicava tematizar o modo como a comunidade de cola- boradores foi (ou poderia ter sido) envolvida nesse processo e como os resultados da pesquisa “retornaram” (ou poderiam ter “retornado”, ou poderiam retornar) à comunidade de colaboradores.

Nossa opção foi por conduzir um estudo sobre grupos escolares,3

em especial sobre o Grupo Escolar Eliazar Braga, que funcionou na

2. Desde que seja um modo exequível, que vise à aproximação autêntica com o ob- jeto e não ao mero cumprimento de uma exigência formal.

3. Já tratamos, ainda que brevemente, no capítulo 1, dos grupos escolares e alguns elementos da história dessas instituições de ensino. Entretanto, não custa reiterar que os grupos escolares surgiram como promessa de superação de uma determi- nada situação de ensino e foram instituídos segundo as ideias e métodos de ensino que orientavam a organização do ensino primário no país no final do século XIX e início do século XX. Os grupos escolares foram criados com a proposta de su- perar as “classes isoladas” em que vários professores tinham que improvisar, em sua própria casa, um espaço para ministrar suas aulas em troca de uma ajuda de custo em seu aluguel. Além de espaço próprio e comum a diversos alunos e pro- fessores, a criação desses grupos escolares levou à distribuição de alunos em séries anuais com conteúdos específicos a serem trabalhados em cada uma delas e à constituição de um corpo de professores, trazendo à tona a necessidade de coor- denação de atividades no âmbito das unidades escolares. Para Saviani (2004), a implantação dos grupos escolares a partir de 1890 representou o início da escola

cidade de Pederneiras, interior (centro-oeste) do Estado de São Paulo, de 1920 a 1975. Como toda opção, essa também dependeu de algumas circunstâncias, além do interesse de estudar o “modelo” educacional dos grupos escolares. São elas:

• o porão do antigo grupo escolar da cidade de Pederneiras – hoje a Escola Municipal Eliazar Braga4 – abrigava um consi-

derável arquivo inativo do qual soubemos casualmente;

pública no Brasil. Cabe ressaltar que a pedagogia jesuítica, as aulas régias e movi- mentos descontínuos até 1890 caracterizam-se como antecedentes da organização pública do ensino no país. Os grupos escolares, logo após sua criação, foram iden- tificados como um “fenômeno tipicamente urbano”, já que, na zona rural, ainda prevaleciam as escolas isoladas. Estas últimas, entretanto, por serem de caráter provisório, tenderiam a desaparecer, ao passo que os grupos escolares passariam a ser identificados como escolas primárias propriamente ditas. Implantada no Brasil a partir do Estado de São Paulo, como parte da reestruturação do ensino que se iniciou pela reforma da escola normal em 1890 (Souza, 1998), a estrutura dos grupos escolares foi extinta em meados da década de 1970. Adotando o mé- todo intuitivo, revelando uma influência americana nos primeiros momentos das reformas educacionais, os grupos escolares seguiam princípios racionais, pau- tados na divisão do trabalho e no atendimento a um grande número de crianças dos centros urbanos que se agitavam e prometiam um crescimento sob o novo modelo político. O governo, sempre estimulando “a contribuição dos particu- lares em troca da homenagem pública”, em poucos anos concretizou diretrizes pedagógicas bastante diferenciadas daquelas vigentes no Império para suas es- colas urbanas. O projeto da República não foi um projeto popular (Carvalho, 2006) e era necessário levar os ideais republicanos para além da elite que o havia possibilitado: nisso, o modelo educacional projetado para os grupos escolares teria muito a contribuir. A ordem; a defesa aos preceitos de higiene; a divisão ra- cional do tempo; as atividades sequenciais e ininterruptas atendendo a um mesmo tempo, num mesmo espaço (agora racionalmente subdividido em séries e salas), um grande contingente de alunos; o esforço por consolidar um “imaginário socio- político republicano” com “os exames, as festas de encerramento, as exposições escolares e as comemorações cívicas” (Souza, 1998, p.23); a arquitetura eloquente dos prédios especialmente projetados têm essa função de afirmar a República, divulgando um ideário que tenta afastar as práticas da República das do Império, tidas então como obscurantistas.

4. Com a extinção dos grupos escolares em meados da década de 1970, os prédios ocupados por essas instituições passaram a ser controlados pelos governos esta- duais ou, mais recentemente, pelos municípios, que neles fizeram funcionar es- colas de ensino fundamental.

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• a cidade de Pederneiras, além de próxima a Rio Claro (cidade sede do Programa de Pós-Graduação no qual a pesquisa foi desenvolvida) e a Bauru (cidade em que há uma unidade da UNESP à qual estão vinculados membros do grupo de pes- quisa no qual este trabalho se inscreve) é onde nasceu (e o grupo escolar a instituição em que estudou) o orientador do trabalho (um fator em nada desprezível, posto que, com isso, o acesso às autoridades educacionais do município foi facili- tado);

• o município prontamente aceitou firmar conosco uma par- ceria: devolveríamos integralmente recuperados todos os do- cumentos do arquivo inativo relativo ao período de vigência do grupo escolar5 desde que tivéssemos acesso livre ao acervo

e pudéssemos transferi-lo para a cidade de Bauru para recu- peração e pesquisa;6

• ao mesmo tempo, a atual direção da escola municipal per- mitiu que desenvolvêssemos projetos com seus alunos. Um estudo inicial desse acervo permitiu que selecionássemos in- formações que apoiariam as entrevistas com antigos professores e di- retores do grupo escolar; os alunos que ocupam as salas do antigo prédio puderam contribuir formulando questões que foram inte- gradas ao roteiro das entrevistas; as antigas fotografias e edições do jornal escolar foram recuperadas e estudadas; uma campanha para resgatar materiais dispersos foi criada e divulgada pelas emissoras de

5. O porão do edifício em questão servia como depósito para uma infinidade de re- gistros escolares e outros materiais posteriores à década de 1970.

6. Os trabalhos duraram cerca de três anos, e o arquivo, integralmente restaurado, foi devolvido ao município. Uma descrição básica de todos os documentos e um roteiro de identificação – por etiquetas – acompanha, hoje, o conjunto de docu- mentos recuperados. O processo de recuperação envolveu cinco pesquisadores e os materiais do arquivo serviram de base para o desenvolvimento de quatro in- vestigações paralelas, de iniciação científica. Todos os documentos foram higieni- zados página a página; clipes, grampos e fitas adesivas foram substituídos; encadernações foram refeitas; novas pastas e fichários foram adquiridos; e os li- vros de registros foram encapados e etiquetados.

rádio e periódicos da cidade e da região, depoimentos de antigos pro- fessores e diretores do grupo escolar foram textualizados,7 passaram a

integrar – complementando – o arquivo inativo recuperado e hoje dis- ponibilizado à comunidade; e alguns projetos de intervenção foram desenvolvidos com os alunos do ensino fundamental daquela escola. Um desses projetos visou a aproximar os estudantes do “conceito” de historicidade: pretendíamos que os alunos se percebessem seres histó- ricos, situados num espaço marcado pela historicidade (seja sua es- cola, sua família, sua cidade, sua vizinhança). Foi, portanto, a ideia de “historicidade próxima” que conduziu esse projeto realizado com cerca de cinquenta crianças de 7 a 10 anos de idade, das salas de ter- ceiro, quarto e quinto anos que, à época, estudavam nas salas do prédio do antigo grupo. O projeto – pensamos – levou os alunos a transformar suas curiosidades em roteiros de busca e possibilitou que se percebessem capazes de produzir e contar histórias ligadas à sua escola, à sua família, à sua comunidade. Foi, portanto, esse o cenário que possibilitou a intervenção da qual trataremos neste capítulo.

Professores de Matemática desenvolvendo projetos cujo tema não é necessariamente o conteúdo matemático ou o ensino de Matemática podem causar – e certamente causaram, nessa nossa experiên cia – cer- ta perplexidade. Algumas vezes essa perplexidade paralisa, outras ve- zes motiva. Esse estranhamento pode revelar-se de pronto caso o professor tente, em sua escola, desenvolver os pequenos projetos que são o tema central deste texto, já que a proposta de algumas dessas intervenções não foi, propriamente, ensinar Matemática – ainda que alguns dos projetos apresentados tenham a Matemática como tema de fundo e que a Matemática possa ser mobilizada, primária ou secunda- riamente, em vários deles –, mas propor situações em que a historici- dade possa ser problematizada, criando um “clima” em que a criança possa conscientemente conceber-se como ser histórico, transitando por lugares praticados, reconhecendo seu presente – e reconhecendo-

7. Uma textualização – disso trataremos mais detalhadamente em outro momento deste livro – é uma edição do texto escrito elaborado a partir de uma entrevista.

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se no presente –, tanto em sua singularidade quanto em sua coleti- vidade, como fruto de uma trama que se compõe, contínua e cotidianamente, entre a memória de um passado e a perspectiva de um futuro, já que a História “é uma prática social interpretativa e pro- blematizadora, e não deveria ser vista propriamente como uma ciên- cia do passado, mas como aquela que procuraria estabelecer um diálogo do presente com o passado, no qual o presente tomaria e con- servaria a iniciativa”.

Os projetos aqui propostos, portanto, podem ser desenvolvidos por uma equipe de professores de distintas disciplinas, se houver in- teresse destes. Não havendo, esses projetos podem ser tranquila- mente coordenados por professores de Matemática, desde que estes tenham a intenção de conhecer e dominar certos conceitos e perspec- tivas que, infelizmente, poucas vezes estão presentes em sua formação. De qualquer modo, essas propostas são essencialmente interdiscipli- nares, pois, ao mesmo tempo, mobilizam diversos conceitos e per- mitem problematizar diferentes objetos, situações, disciplinas escolares e posturas.

Este capítulo pretende tanto discutir essa proposta de fato reali- zada quanto a possibilidade de efetivar outras propostas, e para isso vem dividido em três seções. A primeira – esta introdução – tem a função de apresentar as circunstâncias que permitiram a criação e a aplicação de um projeto específico; a segunda é composta por um texto sobre o projeto efetivamente desenvolvido com os alunos do an- tigo Grupo Escolar Eliazar Braga;8 a terceira foca a possibilidade de

elaborar projetos relacionados ao trabalho de recuperação de arquivos escolares e discute (em linhas gerais) um referencial teórico que pode ser mobilizado para estudar materiais escolares.

8. Nesse projeto, a metodologia da história oral tem presença marcante. Na segunda seção deste capítulo, outras abordagens metodológicas estão presentes. Posto que a história oral é a principal metodologia com a qual os autores têm trabalhado, um capítulo específico será reservado a discussões mais detalhadas sobre esse modo de fazer pesquisa.

II – Crianças e oralidade: iniciativas e possibilidades