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4.1 O ensino de História

4.1.2 História: o que era e o que é?

Segundo Edgar Morin (2002), “a história é a ciência que situa no tempo tudo o que é humano” e “é na história que existimos. Não podemos nos compreender fora da história”. Acredito que, após as mudanças que se passaram no domínio da própria Ciência natural, desde aquelas que já vinham conhecendo na segunda metade do Século XIX, ocorridas na Física, especificamente na termodinâmica. No início do Século XX, depois de criadas a Teoria da Relatividade e a da Incerteza, posteriormente à Teoria do Caos, a concepção de tempo não poderia ser mais a mesma para os físicos e, muito menos, para os historiadores. A própria concepção de estrutura, na primeira metade do Século XX, não na perspectiva antropológica, mas histórica, anunciava novos tempos para a periodização, ainda hoje, quando, em sala de aula, desenho dois pontos no quadro e os uno com uma flecha (a flecha do tempo), o primeiro marcando uma data, e o segundo, outra posterior, como o Professor Astrogildo fez no primeiro dia de aula. A concepção, mesmo que seja didática, não deixa de ser linear (Figura 06), pois não transmite a ideia de retroação, de recursividade.

FIGURA 6: Concepção linear de tempo histórico.

Fonte: Esquema simplificador, baseado em desenho (MORIN, 2010, p.14).

A figura passa a lógica mais tradicional de que um fato determina outro sucessivamente, sob o ponto de vista histórico. Essa maneira de olhar a flecha do tempo vê a interdependência do passado-presente-futuro como causa e efeito, sempre um fato determinando outro. Sobre isso, Morin (2010, p.11) escreve:

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A prospectiva dos anos sessenta afirmava que o passado era arquiconhecido, que o presente era evidentemente conhecido, que o alicerce de nossas sociedades era estável, e que, sobre esses fundamentos assegurados, o futuro se forjaria no e pelo desenvolvimento das forças dominantes da economia, da técnica e da ciência. Dessa forma, o pensamento tecnoburocrático acreditava que podia prever o futuro.

Morin (2010, p.11) prossegue descrevendo a concepção simplista do processo histórico:

O que aqui ainda e, sobretudo, é necessário, para conceber o vir a ser histórico, é substituir por uma visão complexa a reinante concepção simplista. A concepção simplista acredita que o passado e presente são conhecidos, que a causalidade é linear, e, por conseguinte, que o futuro pode ser predito. A concepção complexa se reveste de interações, retroações e recursividade entre passado, presente e futuro. Essa visão se choca com a ideia de História firmada no tradicionalismo, em que o dever do historiador é de dominar o passado em si mesmo. Como Walter Benjamim (1985), incorpora a alegoria da História em um anjo de costas para o futuro e com o olhar para o passado. No livro de ensino médio, História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais, a História é um profeta com os olhos voltados para trás. Nessa visão, entram não apenas os três tempos, mas também o profeta, a representação de futuro previsível, que cai no modelo simplificador.

Para o ensino de História, esse passado pelo passado se configura como um dos fatores de desestímulo para o aprendente porque perde significado para sua própria vida. Nas séries iniciais do ensino fundamental, ainda mais, pois a criança se encontra desvinculada das suas raízes, da sua comunidade, dos seus pares, e isso impossibilita a construção da sua identidade. Através da complexidade de tempo histórico (Fig. 07), os elos entre os diversos

FIGURA 7: Concepção complexa de tempo histórico.

Fonte: Esquema complexo, baseado em desenho (MORIN, 2010, p.14)

períodos se revestem de importância e se aproximam mais da realidade temporal em que se vive. Como escreve Morin (2010, p. 14),

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[...] decorre que o conhecimento do passado e do presente tem lacunas, como o é o conhecimento do futuro, e que tais conhecimentos são interdependentes: o conhecimento do passado está subordinado ao presente, cujo conhecimento está subordinado ao futuro.

Na UNITAB, em vários momentos, predominou a crença de que a História é o estudo do passado para se compreender melhor o presente e de que o passado é básico para que o aluno se reconheça no momento presente. No entanto, não me recordo que os entrevistados tenham demonstrado uma visão elaborada da complexidade da recursão que existe entre passado, presente e futuro. Também não mostraram alguma possibilidade de prognosticar o futuro através do saber histórico. Aspectos como esse me impelem a acreditar que existem mudanças e permanências no ensino de História e que essas duas características convivem sem que uma subtraia a outra.

O importante é que se conceba que os modelos partem de realidades concretas, mas são esquemas que, uns mais e outros menos, melhor dão conta da realidade vivenciada pelos sujeitos. Durante o Século XX, a maioria dos estudiosos, na área de História, não pôde negar o desenvolvimento sofrido por essa área de conhecimento e que sua aplicabilidade é difícil. Por outro lado, História não é mais o que era e, se isso é um fato, pode até predominar certo tradicionalismo em seu ensino, de forma geral, e na especificidade do Miguel Filgueira. Mas os profissionais não só percebem a mudança, como também se questionam sobre a própria prática em sala de aula, como aconteceu com Débora, ao olhar outros professores e repensar sua prática, e com Gileade, que não quer ser o professor de História igual aos que passaram por ele e não lhes deixaram alguma marca.

Posso expor, de forma sintética, acontecimentos importantes durante o Século XX que colhemos nos dias atuais, através do historiador André Burguière (2002), ao escrever Da história evolucionista à história complexa, em que ele explicita três aspectos que são herdeiros da École des Annales: a ideia de uma pluralidade de desenvolvimentos históricos associada ao pluralismo das culturas; a contemporaneidade do conhecimento histórico; e, como mais importante, a ampliação do campo de exploração histórica e as tentações de uma história total. Este último ele considera o mais espetacular legado da École des Annales: “apego às estruturas profundas e não mais apenas às decisões ou reações políticas; insistência sobre as limitações materiais, sobre as bases econômicas e sociais [...]” (BURGUIÈRE, 2002, p.367). Apesar de ser o mais importante aspecto gerado, incorria em dois riscos: de uma diluição no campo político e uma pré-construção rígida da história feita pelo historiador. Levando em consideração os dois riscos, Burguière (2002, p. 368) conclui:

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Identificar esses modos de articulação encontra-se na base do raciocínio histórico. Mas a noção de complexidade tal como ela foi desenvolvida, por Edgar Morin especialmente, também pode ajudar muito o historiador e levar em conta a heterogeneidade do movimento da história, a pensar em conjunto não somente o tempo curto e a longa duração, mas ainda os fenômenos retroativos (que podem criar a ilusão de uma história imóvel). Em suma, pode ajudá-lo a reencontrar na abertura do futuro a retomada de um passado aberto, ele próprio, e aleatório, capaz de dar todas as chances ao engajamento responsável dos homens no interior de sua própria história.

O pensamento acima foi fruto de trabalhos das Jornadas Temáticas idealizadas e dirigidas por Edgar Morin, em março de 1998. Especificamente na Sexta Jornada, além do historiador supracitado, estiveram nomes reconhecidos, no campo da História, como Paul Ricoeur, Emmanuel Le Roy Ladurie, Serge Gruzinski, François Dosse, François Caron, Alfred Grosser e Dominique Borne. Muito do produzido nessa jornada passa por questões que tangem a concepção francesa de História, mas não deixa de ver a identidade planetária, não leva em consideração a França como centro, muito menos, a Europa. Consiste na possibilidade de repensar e de agir para não repetirmos os equívocos que ainda repercutem em nossa realidade.