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O resultado dos diálogos, como aqueles que aconteceram nas entrevistas, estão muito mais impregnados do domínio da subjetividade do que da objetividade. Oferece ao cientista mais dados qualitativos que quantitativos. Nesse contexto, nem sempre, o que se diz é o que se entende, mesmo que, de alguma forma romântica, eu desejasse tal possibilidade. Como defendo, o que consegui nessas entrevistas tem o status de fonte, mesmo que o historiador mais tradicional assim não o perceba. Como disse Danièle Voldman (2005, p. 249),

afonte oral, seja provocada por aquele que irá servir-se dela para sua pesquisa, seja utilizada por um outro historiador, tem a priori um status de fonte. Essa

30 Meireles, Cecília. O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. O título desse trecho corresponde ao mesmo de um livro e uma crônica da poetisa Cecília Meireles. Ao término da crônica ela diz: “[...] o meu assombro é pensarem que eu sempre quero dizer outra coisa. Não! Eu sempre quero dizer o que digo.” (p.57-8)

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diferença radical não dispensa, contudo um tratamento crítico (contexto geral e particular, data, forma, natureza etc.) do testemunho solicitado. Na comparação da fidedignidade respectiva do escrito secundário e do oral primário (podemos englobar na reflexão o testemunho escrito, que participa do segundo pela intencionalidade e do primeiro pela forma do suporte), o essencial é portanto a atenção dada às características intrínsecas do documento.

Convicto de que são fontes, seguindo essa perspectiva acima proposta, debrucei-me nas características do documento e não deixei de seguir Chantal de Tourtier-Bonazzi (2005, p.237), no que diz respeito ao roteiro da entrevista:

À medida que a entrevista prosseguir o roteiro terá às vezes que ser modificado; algumas questões se revelarão pertinentes, outras improcedentes. Certas respostas fornecerão novas pistas e possibilitarão completar o questionário. Por outro lado, o entrevistador deverá adaptar-se à testemunha e nunca dar por encerrada uma entrevista antes de acabar o questionário. (Re)lendo várias vezes as entrevistas, sintetizei cada uma delas, sem que perdessem alguns temas comuns que transversalizaram os diálogos, a saber: (1) o ensino de História; (2) a educação do campo; (3) a questão da participação; (4) a transposição didática e (5) a formação continuada. Passando por esses temas, sem deixar de levar em consideração subtemas que estão inseridos neles, no capítulo seguinte, expus a problemática da tese de que a teoria produzida no conhecimento histórico não se concretiza na prática, em sala de aula e que, no ambiente rural, esforços existem para aproximar esses dois mundos, mas são atravancados por um modelo social conservador, rigidamente hierárquico, baseado na troca de favores, que sufocam os desejos (de mudança?) dos professores.

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4 (DES)VELANDO OS DIÁLOGOS: PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS NOS SABERES E NAS PRÁTICAS DO ENSINO DE HISTÓRIA

Nossa civilização está em crise. E o sinal mais convincente é sem dúvida a falência da nossa educação. Pela primeira vez na história, talvez, o homem se reconhece incapaz de educar seus filhos. Oliver Reboul Quer as autoridades queiram ou não, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Miguel Filgueira Filho – assim como as outras escolas que estão localizadas no setor do Tabuleiro e do Caboclo – está inserida no processo de renovação pelo qual passa a educação brasileira. Poder-se-ão tomar medidas paliativas para continuar reproduzindo um modelo arcaico, mas haverá de chegar o momento em que professores, aprendentes e comunidade não aceitem mais a política discriminatória em que vivem, porque, na luta por uma educação do campo, as propostas precisam emergir da cultura local. Dito isso, o ensino de História também não poderia estar apartado da dinâmica dos novos tempos, frutos de um longo passado de luta. Trago a problemática para perto da atualidade – a década de 1990 – importante por ser um marco na educação brasileira e, não menos, para o ensino de História, que já vinha se sobressaindo com mudanças na década anterior, e para a educação do campo, na medida em que são gestadas novas configurações através de várias formas, como movimentos sociais, encontros e publicações de pesquisadores na área. Acontece que as mudanças na história da humanidade ocorrem de forma compassada, muitas vezes, até mitigada, como vemos nas lutas homéricas da classe trabalhadora, do movimento feminista e dos próprios camponeses.

Considero como mais importantes para educação, de forma geral, e, não menos, para a especificidade da minha tese, os fatores seguintes: a elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB N° 9.394/96; a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino fundamental e o médio, e a I Conferência Nacional: por uma Educação Básica do Campo, nos dias 27 a 30 de julho de 1998, promovida pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), pelo MST, pela Unicef, pela Unesco e pela UnB. Essas entidades assumiram compromissos importantes, conforme apresentaram Edgar Jorge Kolling, Irmão Israel José Nery e Mônica Castangna Molina (1999, p.5):

Entre os vários compromissos assumidos, as cinco entidades promotoras decidiram pela criação de uma coleção de cadernos. Eles têm como finalidade alimentar a reflexão, motivar a mobilização das bases e favorecer o

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intercâmbio de experiências. A coleção abre-se com o desdobramento de alguns temas já trabalhados ao longo de 1998. O espaço, portanto, está criado para a divulgação de pesquisas, experiências e estudos sobre a educação básica do campo.

As cinco entidades promotoras dispõem da memória completa da conferência (estudos, relatórios, fotos, etc.), desde o momento de sua criação, 1996, a qual está à disposição dos pesquisadores e de outros interessados em consultá-la.

Esses três pilares para a educação brasileira são verdadeiros fomentos para a área do ensino. Sei que as leis são garantias, mas, com elas, vem o respaldo do dever de luta para que sejam postas em prática. Especificamente para a educação do campo, somam-se aqueles, a Resolução CNE/CEB1, de 3 de abril de 2002, que são as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, como consta em seu Art. 2°:

Essas Diretrizes, com base na legislação educacional, constituem um conjunto de princípios e de procedimentos que visam adequar o projeto institucional das escolas do campo às Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil, o Ensino Fundamental e Médio, a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Especial, a Educação indígena, a Educação Profissional de Nível Técnico e a Formação de professores em Nível Médio e modalidade Normal. (BRASIL, 2002)

Sem desmerecer alguma das mudanças ocorridas quanto à educação, de forma geral, pedagogicamente falando, acredito que, entre outras questões, o que há de novo e de relevante para o ensino-aprendizagem são as propostas periféricas, como as dos movimentos sociais, porque as projetadas no centro, que vêm de cima para baixo, parecem caducas para a realidade da maioria da população brasileira e precisam se abrir para o que emerge de novo, com força, da mesma marginalidade social que intenta impor. As universidades estão se sensibilizado com essas novas questões, mas ainda falta muito para que a amplitude do seu público se abra ao verdadeiro diálogo em condições de igualdade. Como nem tudo está dentro do ideal, existem grupos de diversas esferas que se aproximam apenas para se destacar socioeconomicamente. Em contrapartida, o que vale é a mudança que vem ocorrendo na forma de compreender o que antes era tido como inferior.

A própria história tradicional se preocupou com os ditos grandes homens, figuras ilustres, heróis de uma época. Essa mesma história só considerou os grandes fatos como objeto de estudo e deixou de lado a maioria da população mundial, as margens sociais, as mulheres, as minúcias cotidianas e as questões localizadas. Já passou da hora de reverter o quadro discriminador, que se transformou num jogo histórico doentio e perverso, amparado pelo modo de produção vigente, pelas práticas neoliberais e pelos reveses da globalização,

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que só deixaram migalhas para o que se posicionaram socialmente como diferentes: as etnias negra e indígena, os guetos e as favelas criadas pelo desenvolvimento urbano e qualquer manifestação de sexualidade que não seja heterossexual. Migalhas para as populações campesinas, para os seringueiros, para as populações ribeirinhas, para os despossuídos de alguma propriedade, os sem-terra.

Quanto às propostas curriculares para o ensino de História, elas antecedem um pouco o que ocorreu na educação brasileira, mais precisamente, na segunda metade da década de 1990, ou seja, as mudanças já vinham ocorrendo durante os anos 80. Ao contrário do que aconteceu na economia brasileira, chamada de década perdida, para a História, aconteceu o inverso. Acredito que as transformações que começam a tomar corpo nesse período atingem sua efervescência justamente na transição do Século XX para o Século XXI. Bittencourt (2004, p.99) volta um pouco mais no tempo e apontando que, antes dessas duas décadas citadas,

nos anos 70 do Século passado, [...] prevaleceram mudanças relativas aos métodos e técnicas de ensino que visavam adequar-se a determinado e reduzido conhecimento histórico, sem que essencialmente os conteúdos fossem alterados, mas apenas simplificados e resumidos.

Já na década de 80, quando havia várias propostas dos estados e dos municípios disseminadas pelo país, que diziam respeito ao ensino de História, elas não comungavam dos mesmos ideais, ao contrário, havia correntes de pensamento que, claramente, dividiam-se:

[...] havia os defensores da ideia de que a escola deveria fornecer os mesmos conteúdos das demais escolas da elite, servindo o domínio desses conteúdos tradicionais como instrumento para o exercício da plena cidadania.

Em oposição a essa linha conteudista, defensores da “educação popular”, baseados em Paulo Freire. [...] Esses incorporavam parte do conteúdo tradicional, mas enfatizam temas capazes de proporcionar uma leitura do mundo social, econômico e cultural das camadas populares, para que os conteúdos possam se transformar em instrumentos de ações políticas no processo de democratização do país. (BITTENCOURT, 2004, p.105)

Não se pode esquecer que, na década de 80, o desmoronamento de um paradigma refletiu sobremaneira. “O paradigma que dominou inteiramente os anos que vão de 1950 a 1975 é o paradigma estruturalista” (DOSSE, 2002, p. 397). Assim também se explicam as mudanças que ocorreriam no domínio da História, visto que ela estava amparada por uma nova conjuntura que terminaria por influenciar a própria forma de o homem conceber o

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conhecimento de si e dos fenômenos. No que diz respeito à identidade histórica e à competência das pessoas comuns, François Dosse (2002, p.397-8) assevera:

Durante a década de 1980, esse paradigma sofreu uma espécie de desmoronamento, o que resultou num novo paradigma, marcado por uma organização intelectual totalmente diferente, na qual o tema da estrutura foi substituído pelo da historicidade. Esse novo período, é marcado como notou muito bem Marcel Gauchet, pela reabilitação da parte explícita e refletida da ação. Não se trata, entretanto, de um simples retorno do sujeito tal como ele era outrora encarado na plenitude de sua soberania postulada e numa possível transparência. Tratava-se, dessa vez, de um deslocamento na pesquisa rumo ao estudo da consciência, uma consciência problematizada graças a toda série de trabalhos, como, por exemplo, os da pragmática, do cognitivismo ou os dos modelos da escolha racional. O procedimento consiste então em salvar os fenômenos, as ações, o que aparece como significante, para explicar a consciência dos atores. Essa parte explícita e refletida da ação que voltou ao primeiro plano tem como efeito a colocação da identidade histórica no centro das interrogações, no âmbito de um triplo objeto privilegiado pelo historiador: uma história política, conceitual e simbólica renovada.

O deslocamento rumo à parte explícita e refletida da ação põe em causa o corte radical determinado pelo paradigma crítico entre competência científica e competência comum. Ele permite levar a sério as competências das pessoas comuns, cujos propósitos eram anteriormente assimilados à expressão de uma simples ilusão ideológica.

Percebo que, para a História, os anos 80, necessariamente, tomariam proeminência, pois a visão de mundo e a concepção fenomenológica mudaram, e isso promoveu a renovação da historiografia. Não foi à toa que, na transição daquela década para a de 90, encontrava-me no Curso de História, na UFRN, com professores dentro de uma redoma conservadora do ensino de História. Por outro lado, posteriormente, na mesma universidade, no Curso de Especialização, questionava sobre os novos rumos da História, sobre os frutos do desenvolvimento da História cultural e de todas as contextualizações possíveis e impossíveis da nova história. Por isso, insisto na possibilidade de ver, na série de acontecimentos distintos, paralelos e interligados, a oportunidade de ver um novo local, regional, Planeta e Universo, porque há uma mudança de olhar e, com esse redirecionamento, a mudança do próprio mundo.

Na década de 1990, a nova LDB, os PCN e a divulgação sobre como se encontrava a educação do campo, editadas em uma série de livros intitulados, Por uma educação básica do campo e, posteriormente, Por uma educação do campo, ampliaram a discussão e trouxeram novos temas. Percebo que não se trata de reformulações de cunho apenas nacional, como escreve Bittencourt (2004, p.100):

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A série de reformulações curriculares na década de 90 do Século XX não foi um fenômeno nacional. Outros tantos países também sofreram mudanças em seus currículos oficiais, e muitas dessas propostas curriculares, como as dos países integrantes do Mercosul, a de Portugal e a da Espanha, possuem a mesma estrutura na organização dos documentos oficiais e a mesma terminologia pedagógica.

Os nossos currículos [...] têm seguido modelos externos, especialmente os da França, para o ensino de História.

Tomando as três décadas citadas no cômputo geral da educação, em Bananeiras, nas instituições escolares, na década de 1970, o Colégio Sagrado Coração de Jesus, criado em 1917, foi fechado, “[...] possivelmente por sucumbir à concorrência dos colégios modernizantes dos grandes centros urbanos surgidos na crista da onda da industrialização da era pós-Juscelino” (MONTENEGRO, 1996, p.41-2). Na década de 1980, em 1982, foi instalada a Escola Normal Estadual, em 1985, começa a funcionar a E.M.E.F Miguel Filgueira Filho e, em 1990, o Educandário Imaculada Conceição. Em contrapartida a esses poucos marcos citados na educação, Antônio Montenegro (1996, p.53), no capítulo Bananeiras hoje – vale salientar que esse hoje corresponde exatamente à década de 1990, em que o livro foi publicado – faz um questionamento e dá uma resposta para o descompasso que existe na cidade:

A quantidade dos serviços urbanos de Bananeiras contrasta violentamente com as deficiências do setor primário da economia e com a baixa qualidade de vida da grande maioria da população. De que maneira ou até que ponto as repúblicas dos coronéis e dos generais são responsáveis por essa populosa república de aspirantes à cidadania, essa enorme massa de analfabetos e desempregados que apenas sonham com comida, com a moradia e com o trabalho?

E esse descompasso parece ser mais uma consequência da esperteza das elites dirigentes do que sinal da incompetência popular.

Acredito que, apesar de passada bem mais de uma década de quando o livro foi publicado, as palavras de Antônio Montenegro (1996), de quem ouvi falar ser uma pessoa excêntrica e, no mínimo, interessante, ainda são bem atuais. Até mesmo porque numa localidade como Bananeiras o tempo se desenrola de forma diferenciada de outras localidades, inclusive urbanizadas. Os valores da tradição ainda modelam o movimento das pessoas: conversas e histórias que tomam forma nas calçadas; o cultivo de uma hortaliça no fundo do quintal; fogueiras para cada santo. Aspectos como estes lhe dão uma dinâmica própria. Nesse contexto, considerando na própria Paraíba, que João Pessoa e Campina Grande

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são centros urbanos, imagine, através de uma comparação demográfica, o centro de uma cidade como Bananeiras, de acordo com o exposto (Tabela 07) abaixo:

TABELA 7: Índice populacional de João Pessoa, C. Grande e Bananeiras.

Cidade População

2000

Pop. Urbana Pop. rural População 2010 João Pessoa 597.934 hab. 720.789 hab. 2.725 hab. 723.514 hab. C. Grande 355.331 hab. 367.278 hab. 17.998 hab. 385.276 hab. Bananeiras 21.810 hab. 8.667 hab. 13.187 hab. 21.854 hab.

Fonte: Elaborada pelo autor, de acordo com dados do IBGE – 2010

Percebo que, através do índice populacional das três cidades, João Pessoa cresce com 125.580 habitantes, Campina Grande, com 29.945, e Bananeiras, com 44. Somente o crescimento de habitantes, em cada uma das primeiras cidades, já supera a população total de Bananeiras. No capítulo 2, tinha mostrado que o percentual de habitantes na zona rural, em Bananeiras, superava os da zona urbana. Portanto, qualquer discurso que queira colocar a cidade em questão, no ranque das urbanizadas, terá descrédito de acordo com os números.

Apresentados, mais uma vez, em números, não se justifica que as escolas dos setores do Tabuleiro e do Caboclo continuem recebendo livros que não dão conta da realidade dos aprendentes; que não haja uma formação adequada para os professores que trabalham nas escolas do campo e que não se pratique uma educação diferenciada nas escolas inseridas no meio rural. Dito isso, passo, agora, a discutir sobre o ensino de História e outros aspectos que formam uma teia de descaso, desatenção e reprodução de um modelo estúpido de se formarem pessoas submissas.