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1.1 Confissões de um historiador ou o historiador que escreve sobre o ensino de História

1.2.1 Um professor cujo nome é Astrogildo

Professor Astrogildo acordou no mesmo horário dos outros dias e começou o seu ritual diário. Eram cinco horas, como sempre, e a única diferença era que chovia muito. Calçou as velhas alpercatas, que havia ganhado da mãe há algum tempo. Direcionou-se ao banheiro, despejou sua urina da noite anterior no vaso, olhou-se no espelho, que herdara da bisavó e, semelhante às outras vezes, nem percebera mais uma ruga que apontava na face. Sabia apenas que envelhecera. Constatada a velhice, tomou seu banho de água fria, que o despertaria para um longo dia de trabalho. Chegando à cozinha, como num passe de mágica, seu café matinal estava posto. Como era de praxe, nas segundas-feiras, dona Rosalba havia preparado ovos mexidos, cuscuz e café preto. Nunca Astrogildo parara para pensar que, antes dele, a esposa sempre estava de pé para lhe servir. O cotidiano, geralmente, esconde coisas que não vemos, exceto se pararmos, ampliarmos nosso olhar e nele depositarmos a atenção de um cientista. De outra forma, os fatos diários se perderão numa das salas de nossa memória, até que uma situação inusitada, um cheiro, uma cor, ou outro pedacinho de cotidiano resgatem os dias passados e abram essas salas antigas. Pois bem, Astrogildo pegou o guarda-chuva, cheio de mofo, poeira e mais bolor. Depois de alguns espirros, lembrou que nunca mais havia beijado a esposa, mas não ousou fazê-lo. Pegou seu protetor contra chuvas, deu um suspiro, depois, um até-logo-frio, e sumiu no meio da chuva.

No caminho para o trabalho, ficou ruminando as últimas leituras que fizera. Eram conteúdos atestados por um doutor no assunto. E ele passaria toda essa informação, é claro, numa linguagem acessível, compreensível para os discentes. Eles iriam adquirir mais informações e conteúdos atestados por um especialista no assunto.

Enfim, chegou à Escola. Era o movimento comum do primeiro dia de aula. Passou rápido pela recepção e, mais rápido ainda, pela sala dos professores. Mal conversou com os

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amigos de trabalho e correu para a sala de aula, pois seu objetivo estava ali, naquele lugar onde se relacionaria com os alunos. Chegando à turma, identificou-se, disse a matéria que lecionaria durante o ano e correu para a lousa. Traçou uma linha no quadro e dividiu-a em partes. Cada parte representava um período da História (sim, ele era professor de História). Pré-história, Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Ele queria, com esse esforço, colocar na cabeça dos alunos o conteúdo introdutório do Renascimento europeu. Primeiramente, localizou a Idade Moderna no tempo. Ela havia, segundo o professor, iniciado exatamente quando os turcos otomanos, povos asiáticos, invadiram a cidade de Constantinopla, capital do Império Romano Oriental. Seu término, ainda nas palavras do professor, ocorreu na França, com a famosa Revolução de 1789, quando houve a Queda da Bastilha. Nesse período, localizava-se o Renascimento, com todos os seus artistas e suas obras. Assim, nosso professor citou uma série de nomes de heróis, sempre reis ou eclesiásticos, nunca uma criança, um jovem, uma mulher, eram sempre homens e homens, feitos e feitos. E assim foi o primeiro bimestre.

Logo no primeiro dia, a maioria da turma fez propaganda do professor. Diziam assim: "ele sabe demais!", "tem muita inteligência", "não tem quem fale na sua aula" e outros comentários. João Paulo, considerado um dos mais inteligentes, amou o professor, é tanto que conseguiu memorizar todos os nomes, todas as obras, todas as datas. Era maravilhoso para ele apenas ter que decorar para tirar boas notas. José Maria, desde o primeiro momento, não conseguia entender como, no Império Romano do Oriente, de um dia para o outro, havia acabado a Idade das Trevas e iniciado aquele movimento humanista. Como é que podia Deus mandar num dia e o homem mandar no outro. Questionava-se como é que aquilo havia repercutido na França, já que o professor citara o nome logo depois. O que era a Bastilha? Por que uma época começa no Oriente e termina no Ocidente? Por que dizer que revolução foi um fato em que a burguesia passara a perna nos camponeses e nos demais trabalhadores? Tinha mais mil perguntas, mas aprendera a se calar diante do perigo e a ficar em silêncio como forma de respeito. Chegou da escola e começou a estabelecer relações entre as pinturas de Leonardo da Vinci e outros artistas do Renascimento; observava a figura do homem sempre presente nas representações, que os artistas eram exímios desenhistas. Comparou as pinturas dos renascentistas com as abstratas pintadas pelo pai. Não entendia como as duas podiam ser consideradas obras arte se eram tão diferentes. Mas o pai explicou bem direitinho sua dúvida. Porém pouco ou nada adiantou para que seu filho tirasse uma boa nota com o Professor Astrogildo. Inversamente a José Maria, João Paulo fechou a prova, nota dez, como sempre.

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Relacionou os artistas que se encontravam na primeira coluna com as obras que estavam na segunda, e os nomes, com os fatos. Sabia expressar os fatos de forma linear, fragmentados, tudo preso a causas e consequências, começo, meio e fim – era o modelo aprendido através do mestre, sempre um fato após o outro, o primeiro determinando o posterior.

A história de José Maria foi outra, bem diferente daquela de João Paulo. Por pouco, José Maria não foi reprovado em História, apesar de estudar sempre. Acontece que sua cabeça estava cheia de relações, pontes, conexões, ligações. Mas as avaliações do Professor Astrogildo eram sempre a mesma coisa: “Marque a primeira coluna de acordo com a segunda”, “Assinale verdadeiro ou falso”, “Marque a questão correta”, “Sublinhe os nomes dos heróis”. Isso deixava o coração de José Maria partido, pois ele queria contar das suas viagens, dos seus passeios imaginários, enfim, do seu mundo. Mas se via preso, tão preso que, só em sonho, podia compreender os ideais humanistas tão pregados no Renascimento.