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Histórias de sentido: parte 1 a escrita de vestibulandos

4.2 CONTRIBUIÇÕES DE UMA ABORDAGEM DIALÓGICA DA LINGUAGEM

4.2.1 Heterogeneidade e não erros: um outro olhar sobre a escrita

4.2.1.1 Histórias de sentido: parte 1 a escrita de vestibulandos

“O processo de escrita do vestibulando começa muito antes do produto final levado à avaliação.” (CORRÊA, 2004, p. 39). É na relação dialógica do sujeito escrevente e seu discurso com outros sujeitos e discursos que a escrita do vestibulando se constitui. As práticas sociais, as histórias de experiências com a linguagem desse sujeito, são captadas pelo autor por meio de marcas/pistas – regularidades - impressas no material lingüístico. Esse encaminhamento de análise reforça o modo heterogêneo de constituição da escrita como o encontro entre práticas sociais do oral/falado e do letrado/escrito, considerada a dialogia com o já falado/escrito e ouvido/lido.

Apoiado em abordagens acerca do dialogismo mostrado, Corrêa (2004, p. 249) explica que “inúmeros textos só fazem sentido quando entendidos em relação a outros textos, que funcionam como seu contexto.” Outras relações também ajudam a explicar esse dialogismo – propriedade constitutiva da escrita. A relação com o objeto, com o discurso do outro a respeito do objeto e com o interlocutor, o qual pode estar fisicamente presente ou representado, são circunstâncias que podem contribuir para a constituição heterogênea da escrita dos vestibulandos. Um fator decisivo nas análises do autor é a relação escrevente- texto: o como o escrevente se insere neste processo, ao dar andamento a ele, ou seja, os papéis sociais inscritos no discurso e que os vestibulandos demonstram assumir ao realizarem o processo de textualização.

As análises de Corrêa (2004), referenciadas nesta seção, sobre como a dialogia com o já falado/escrito se mostra nos textos, simboliza apenas um dos três eixos de trabalho do autor com a constituição heterogênea da escrita. Opta-se por indicar, aqui, apenas um eixo, pois exemplifica especificamente uma contribuição ao trabalho com a escrita na esfera acadêmica, a partir da concepção dialógica da linguagem, bem como às análises dos dados que se farão presentes na subseção 6.3.3 da tese.

Como já referenciado, as regularidades lingüísticas, as quais permitem recuperar as pistas deixadas pelos escreventes, referente à dialogia com o já falado/escrito, são os elementos em foco para se tentar reconstruir o processo de textualização. Seis grandes

agrupamentos, elaborados por Corrêa (2006, p. 254), denotam essa dialogia, por meio dos quais se manifestam as seguintes regularidades lingüísticas: a) quanto ao enunciador; b) quanto à língua (um outro discurso, uma outra modalidade de sentido, uma outra palavra, uma outra língua); c) quanto ao registro discursivo; d) quanto ao leitor; e) quanto às citações da coletânea; f) quanto às remissões ao próprio texto. As três regularidades mais recorrentes foram respectivamente: quanto às citações da coletânea; quanto ao enunciador e quanto à língua. Este conjunto total de seis regularidades indica o reconhecimento e compreensão da relação que o sujeito mantém com a linguagem e desqualifica categorias amplas de análise, como reprodução de modelos, falta de leitura e interferência da oralidade, as quais evidenciam um não conhecimento desta relação do sujeito com a linguagem na sua constituição como sujeito escrevente-leitor.

As regularidades referentes ao primeiro agrupamento - presença de outro enunciador no texto do escrevente – apresentam-se por meio de variados movimentos: i) assimilação da voz da instituição; ii) remissão a outros enunciadores com pretensão de ironia e/ou de atribuição negativa; iii) remissão explícita ou não mediante discurso direto, a autor citado na coletânea ou a um outro qualquer; iv) indecisão quanto à identificação ou não da fala do locutor com a do discurso citado; v) sustentação do dizer no que se estabelece como a voz do senso comum. As diversas pistas que são deixadas pelos sujeitos escreventes, como aspas, discurso direto, nomes de autores, fragmentos de jornais e revistas, palavras que atestam tratamento moral religioso ou científico indicam, de acordo com Corrêa (2004, p. 263), “tipos de leitura [...] nem sempre bem-sucedidas”, que podem se manifestar e conviver, num mesmo texto, de forma mais ou menos sofisticada. Dessa forma, em vez de se cair na restrição de acusar os vestibulandos da falta de leitura, as pistas deixadas por eles nos textos são compreendidas como sendo resultados da posição relativa que ocupam quanto ao já falado/escrito.

O segundo agrupamento de regularidades - referentes à língua – se manifesta nos textos dos vestibulandos por meio de: i) um outro discurso, uma outra modalidade de sentido, uma outra palavra; ii) uma outra língua. Destaca-se o uso da polissemia, que dá saliência à palavra e procura se adequar a um certo tipo de interlocutor.

Quanto ao registro discursivo, as pistas deixadas pelos sujeitos escreventes apontam: i) recusa à informalidade e ii) recusa à formalidade. O primeiro, no uso da escrita culta formal, apresenta-se como requisito necessário pelo escrevente na produção da dissertação do vestibular e o segundo - recusa à formalidade – como “a relação com o assunto

e com o interlocutor [...] tendo em vista o diálogo com o já falado/escrito.” (CORRÊA, 2004, p. 270).

Regularidades relativas ao leitor (relacionadas mais diretamente com a situação de avaliação em que se constitui o evento vestibular) se mostram através de dois movimentos: i) antecipação de uma outra leitura pelo interlocutor; ii) entrecruzamento da leitura da coletânea e da situação imediata de enunciação, pressupondo conhecimento total por parte do leitor Nesse agrupamento, as pistas deixadas pelos vestibulandos revelam ser recursos sofisticados, pois não se referem diretamente ao leitor concreto e mostram conhecimento sobre o modo de construção desse texto.

As citações da coletânea apresentam-se através dos seguintes usos: i) no título; ii) na colagem; iii) na remissão, por tentativa de paráfrase; iv) na remissão crítica ao conteúdo de um dos fragmentos da coletânea. Como destaca Corrêa (2004), o que se observa é um descompasso no contato que o escrevente cria entre os empréstimos da coletânea e o que representa como seu. “Nesse descompasso, foram detectadas várias formas de emergência do modo heterogêneo de constituição da escrita.” (CORRÊA, 2004, p. 283).

O último agrupamento de regularidades lingüísticas – remissões ao próprio texto – explora a construção do texto pelo próprio escrevente, através da referência à horizontalidade e verticalidade do espaço gráfico e ao evento prova de vestibular.

Estas seis regularidades lingüísticas propostas por Corrêa (2004) indicam tipos de leituras diferentes realizadas por vestibulandos que revelam, por sua vez, histórias com a linguagem também muito diversas. Ainda, marcam a relação dialógica com o já falado/escrito, lugares de constituição de sujeitos escreventes, que se apropriam da escrita nas negociações com outros sujeitos e outros discursos. No tocante ao trabalho escolar/acadêmico, a forma de tratamento dessas regularidades lingüísticas pode contribuir, em grande amplitude, para que os alunos reconheçam seus percursos letrados e reflitam sobre eles. Um grande benefício a eles é se assumirem sujeitos de seus dizeres e terem a possibilidade de interagir de maneira mais consciente e autônoma com seus textos, seus discursos e de outros autores.

A fim de apresentar como os alunos de Letras lidam com a dialogia, com o já falado/escrito, em destaque para as relações intergenéricas, serão enfocadas, na subseção seguinte, as respostas destes sujeitos a uma questão discursiva em situação avaliativa.