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DA AUTOBIOGRAFIA ÀS NARRATIVAS DE VIDA AUTO/BIOGRÁFICAS

2.1. AUTOBIOGRAFIA E A TEORIA AUTOBIOGRÁFICA

2.2.1. HISTÓRIAS DE VIDA NO CONTEXTO DA AUTO/BIOGRAFIA

Para uma análise do conceito de ‘histórias de vidas’ importa, desde logo, assinalar que o seu entendimento encontra-se dificultado pelo desadequado processo de tradução do inglês para português dos termos life story e life history, assumindo ambos a mesma grafia, numa tradução para ‘histórias de vida’. Embora ambos se encontrem enquadrados nos estudos autobiográficos, correspondem a conceitos diferentes cuja diferenciação verifica-se essencial para o verdadeiro entendimento do conceito que nos interessa, para o entendimento de life story.

O conceito de life story é particularmente trabalhado por Ken Plummer que o considera na qualidade relato da vida de um indivíduo, contado por si próprio ou por terceiros, podendo por isso assumir várias formas:

«biographies, autobiographies, letters, journals, interviews, obituaries. They can be written by a person as their own life story (autobiography) or as fiction by themselves; they can be the story coaxed out of them by another, or indeed their ‘own story’ told by someone else (as in biography)» (PLUMMER, 2001, p. 19).

55 Note-se que apesar dos exemplos dados por Plummer assumirem todos uma natureza escrita, torna-se necessário enquadrar a sua obra, Documents of life, para o facto da primeira edição datar de 1983. Embora actualmente a teoria autobiográfica recorra ao conceito de life story, esta foi responsável por ampliar o seu escopo a outras formas (dança, música, performance, etc.) e suportes (pintura, o próprio corpo, espaço digital, etc.).

Verifica-se, deste modo, que actualmente life stories correspondem a relatos de vida, auto ou hetero-referenciais, independentemente da forma ou suporte que assumam. Como veremos mais à frente, o conceito de narrativas de vida assume os mesmos princípios de histórias de vida, correspondendo a uma subdivisão responsável por circunscrever as histórias de vida do tipo auto-referenciais, excluindo, por esse motivo, as hetero-referenciais.

Independentemente da forma ou suporte que assumam, as life stories encontram-se intimamente ligadas ao conceito de ‘documentos de vida’ proposto por Ken Plummer. Embora o autor não trabalhe em detalhe a definição do mesmo, adopta a proposta abrangente de Robert Redfield, considerando documento de vida como:

«a human or personal document (…) which the human and personal characteristics of somebody who is in some sense the author of the document find expression, so that through its means the reader of the document comes to know the author and his or her views of events with which the document is concerned» (Robert Redfield, 1942, vii, apud PLUMMER, 2001, p. 18).

Plummer recorre ao conceito de documentos de vida de modo a nele enquadrar as life stories. Através deste enquadramento, Plummer visa reivindicar para as life stories o estatuto de mais do que um recurso de investigação, em que o investigador as percepciona na qualidade de ‘dado’, mas antes, como tópico de investigação, isto é, como verdadeiro objecto de estudo (2001, p. 41).

Ainda sobre a relação entre documentos de vida e life story, se, por um lado, a life story pode em si se materializar num documento de vida (ex.: gravação de uma entrevista ou a publicação de uma Autobiografia), por outro, a própria constituição da life story pode ser conduzida a partir da análise de diferentes documentos de vida. Veja-se o seguinte exemplo: o biógrafo X, interessado em realizar a biografia do coleccionador Y, terá necessariamente de construir a sua biografia assente na consulta de diferentes documentos de vida do coleccionador Y, nomeadamente, a sua correspondência pessoal, as fotografias guardadas pelo sujeito biografado e as fotografias que, mesmo que tiradas por outros, o retratem, o seu diário, as colecções que o coleccionador Y reuniu ao longo da sua vida, etc.

56 Analisámos até aqui o conceito de life story. Mas, como referimos anteriormente, este conceito estabelece uma relação problemática com o conceito de life history na sua tradução para a língua portuguesa. Como vimos, life story corresponde a um relato de vida hetero ou auto-referencial. Life history, por seu turno, corresponde a um método de investigação em que o investigador relata o percurso de vida de um indivíduo, sendo que a recolha de dados se centra em entrevistas ao sujeito biografado nas quais este relata a sua life story, sendo esta posteriormente editada, interpretada e apresentada pelo investigador. Este é um método que estabelece relações com as tradições da história oral e da análise narrativa, em que o investigador é responsável por mediar a life story do sujeito biografado para a construção da sua life history (FIELDING, 2006, p. 159-160; SAMUEL, 2009, p. 4-5).

Devidamente identificados os conceitos, iremos continuar a nossa pesquisa, atribuindo ao conceito de life story a designação de ‘história de vida’, e, a life history, a designação de ‘método de histórias de vida’.

Voltando à análise do conceito de história de vida (life story), verificámos que este remete para qualquer relato auto ou hetero-referencial de uma vida, adquirindo, deste modo, o estatuto de termo abrangente capaz de abarcar uma multiplicidade de géneros enquadrados no espectro que vai da biografia à autobiografia. Chamamos à atenção para este ‘espectro’ ser mais complexo do que a noção de que uma biografia corresponde ao relato de um indivíduo face à vida de outro, e de Autobiografia na qualidade de uma biografia construída pelo próprio sujeito biografado. Esta concepção cria fronteiras estanques que autores no contexto da terceira geração da teoria autobiográfica têm vindo a diluir, sendo de destacar o papel de Liz Stanley, autora que, à luz da abordagem feminista, procurou esbater as fronteiras entre biografia e autobiografia, propondo por isso o termo que iremos adoptar de ‘auto/biografia’.

A adopção do termo auto/biografia procura evidenciar uma série de complexidades inerentes às práticas auto e hetero referenciais, procurando diluir as fronteiras aparentemente estanques que separam as noções de biografia e de autobiografia, ao problematizar a noção dual factual/fictício destas práticas:

«both biography and autobiography lay claim to facticity, yet both are by nature artful enterprises which select, shape, and produce a very unnatural product, for no life is lived quite so much under a single spotlight as the conventional form of written auto/biographies suggests» (STANLEY, 1995, p. 3-4).

A auto/biografia debruça-se sobre os problemas da subjectividade das práticas auto e hetero-referenciais, identificando nestas uma natureza profundamente instável e volátil,

57 justificada por vários factores, dos quais: (1) a dificuldade em diferenciar a vida experienciada e o relato dessa mesma vida, seja contada pelo próprio ou por terceiros; (2) a impossibilidade de alcançar o verdadeiro eu autobiográfico através da leitura da sua narrativa; e, decorrente deste último, (3) a dificuldade da prática ‘escrita’ e da ‘leitura’ da narrativa autobiográfica, na medida em que o leitor apenas pode aceder a uma narrativa construída, não podendo pois, reconstruir a vida tal como experienciada pelo narrador (PLUMMER, 2001, p. 86-88).

A adopção do termo auto/biografia sugere uma aproximação às histórias de vida, segundo o prisma de que estas correspondem não ao relato naïve, neutro ou autêntico de uma vida, mas a uma construção do narrador29. Contudo, falamos agora de uma construção da qual o narrador não é um sujeito passivo, mas sim activo. A construção contida na narrativa auto/biográfica é uma construção da qual o narrador se encontra consciente, motivo pelo qual ele próprio contamina e se deixa contaminar pelo acto da construção, dando então origem às histórias de vida que Ken Plummer identifica como reflexivas e recursivas (2001, p. 34). Isto é, histórias de vida em que o narrador se encontra consciente de que ele próprio é um sujeito activo na construção subjectiva do relato da própria vida.

Enquadrar as histórias de vida no conceito de auto/biografia significa considerar que estas correspondem a relatos marcados por uma profunda subjectividade, não só por parte do narrador, mas da relação deste com o seu contexto, do modo como ele constrói a sua narrativa e para quem a constrói. Segundo esta perspectiva, as histórias de vida correspondem a relatos de vida instáveis e voláteis estruturados através de uma narrativa marcada por questões associadas ao modo como esta é construída e organizada.

2.2.2. A SUBJECTIVIDADE DA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA, DO NARRADOR E DO