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DA AUTOBIOGRAFIA ÀS NARRATIVAS DE VIDA AUTO/BIOGRÁFICAS

2.1. AUTOBIOGRAFIA E A TEORIA AUTOBIOGRÁFICA

2.1.1. O PERCURSO HISTÓRICO DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Comecemos por fazer uma breve análise do percurso histórico da Autobiografia, focando-nos no contexto Ocidental. Importa referir que a escrita autobiográfica não é uma criação exclusiva do Ocidente, sendo conhecidos vários exemplos, nomeadamente na China, Japão, Índia e Norte de África (SMITH, WATSON, 2010, p. 104). Contudo, por motivos de economia de espaço, iremo-nos debruçar apenas pelo estudo da Autobiografia no contexto Ocidental.

Segundo Robert Folkenflik, o termo ‘Autobiografia’ foi empregue pela primeira vez em 1786, por Ann Yearsley, embora a literatura científica referir, regra geral, o nome de Robert Southey enquanto fundador do termo, em 1809, ou de William Taylor, em 1797 (FOLKENFLIK, 1993, p. 1-2). Apesar do termo ‘Autobiografia’ surgir apenas no século XVIII, é sabido que a escrita autobiográfica remonta à Antiguidade Clássica, aspecto que Georg Misch trabalhou de modo exaustivo na sua obra A history of autobiography in Antiquity, originalmente publicada em 1907 em alemão e traduzida para o inglês, pela primeira vez, em 1950 (MISCH, 2002).

45 Poderemos então denominar a escrita autobiográfica que veio a ser desenvolvida em vários pontos do globo desde a Antiguidade Clássica de Autobiografia? James Olney ataca esta questão de modo provocador:

«The first autobiography was written by a gentleman named W. P. Scargill; it was published in 1834 and was called The Autobiography of a Dissenting Minister. Or perhaps the first autobiography was written by Jean-Jacques Rousseau in the 1760s (but he called it his Confessions); or by Michel de Montaigne in the latter half of the sixteenth century (but he called it Essays); or by St. Augustine at the turn of the fourth-fifth century A.D. (but he called it his Confessions); or by Plato in the fourth century B.C. (but he wrote it as a letter, which we know as the seventh epistle; or… and so on» (OLNEY, 1980, p. 5-6).

Embora o critério para que um exemplo de escrita autobiográfica corresponda a uma Autobiografia não resida no facto do termo ‘autobiografia’ estar inserido no seu título, e embora a génese da Autobiografia remeter para a escrita autobiográfica desenvolvida pelos autores citados por James Olney (entre outros cânones), tratando-se de um género literário, a Autobiografia segue um conjunto de princípios que vieram a ser constituídos somente a partir do século XVIII.

Afirmámos no início deste capítulo que pensar em Autobiografia significa pensar em livro, prosa, narrador e personagem corresponderem ao mesmo indivíduo, e numa narração da própria vida de modo retrospectivo. A maioria destas características encontram-se plasmadas na definição de Autobiografia proposta por Philippe Lejeune: «récit rétrospectif en prose que quelqu'un fait de sa propre existence, quand il met l'accent principal sur sa vie individuelle, en particulier sur l'histoire de sa personnalité» (LEJEUNE, 2010, n.p.). Destacamos o facto de o autor identificar como definidor de Autobiografia o facto de esta remeter para um relato retrospectivo da vida de um indivíduo, cujo enfoque reside na história da sua personalidade.

Apesar de referirmos a definição de Autobiografia proposta por Lejeune, esta serve a função de guiar o leitor nesta fase inicial da pesquisa, uma vez que, embora esta seja uma definição amplamente citada, iremos procurar demonstrar que a definição de Autobiografia (ou de qualquer outro acto autobiográfico) não pode ser percepcionada segundo um conjunto de características lineares, tal como as propostas por Lejeune, no contexto actual da teoria autobiográfica.

A realidade dos actos e práticas auto-referenciais é demasiado complexa e imersa em subjectividade para ser reduzida a um conjunto de características redutoras (prosa

46 retrospectiva, relato da vida individual, foco na história da personalidade) excluindo, deste modo, manifestações que saiam do perímetro delineado por Lejeune. Nas palavras de James Olney, o género literário da autobiografia «is both the simplest of literary enterprises and the commonest», mas simultaneamente, «the most elusive of literary documents» (1980, p. 3).

Analisemos agora algumas das características estilísticas e formais da Autobiografia identificadas por Robert Folkenflik, que, estando organizadas segundo um conjunto de normas, e não de regras absolutas, tendem a assumir uma forma, não só flexível, como híbrida, numa acepção de Autobiografia na qualidade de realidade complexa, não linear e instável: (1) corresponde a uma escrita na primeira pessoa, apesar de existirem excepções escritas em segunda ou terceira pessoa; (2) assume uma escrita em forma de prosa, mas por vezes surge em verso; (3) encontra-se alicerçada na verdade vivida pelo narrador, embora por vezes seja ficcionada; (4) é, regra geral, escrita durante a meia-idade do narrador, mas também por jovens adultos; (5) é publicada na forma de livro, ou em vários volumes; (6) corresponde, geralmente, a uma retrospectiva da vida do narrador (FOLKENFLIK, 1993, p. 13-15).

Passemos agora a sintetizar sucintamente o percurso histórico da escrita autobiográfica23 desde a Antiguidade Clássica, época em que se encontram os primeiros vestígios de uma escrita auto-referencial, até aos séculos XX e XXI, responsáveis por inaugurar as condições necessárias a uma auto-referencialidade conscientemente subjectiva e não limitada à forma escrita, abrindo espaço para actos autobiográficos que extravasam o suporte em papel. Após o mapear do percurso histórico da escrita autobiográfica, iremos debruçar-nos sobre o modo como esta foi teorizada, para que nos seja possível traçar a forma como actualmente as criações auto-referenciais são percepcionadas, e quais as suas problemáticas.

Embora existam vestígios de escrita autobiográfica datados do período da Antiguidade Clássica fixos em inscrições funerárias, narrativas de viagens e poemas, entre os quais, os da poetisa Safo da Ilha de Lesbos (c. 600 a. C.), a escrita autobiográfica da Antiguidade Clássica é especialmente marcada por aquela que é considerada a primeira narrativa autobiográfica, referimo-nos às Confissões de Santo Agostinho (c. 400) (SMITH, WATSON, 2010, p. 104-105).

Já na Idade Média, período profundamente marcado pelo misticismo e espiritualidade como metrónomos do funcionamento da sociedade, mas também pela afirmação da razão – como revela o desenvolvimento da filosofia escolástica, fortemente influenciada pelas figuras de Platão e Aristóteles – surge uma escrita autobiográfica decorrente de uma pesquisa espiritual materializada em relatos de visões, como é o caso da Memoriale de Angela da Foligno (c. 1292).

23 Relembramos que com ‘escrita autobiográfica’ referimo-nos a uma escrita que, embora auto-

referencial, não se circunscreve exclusivamente à ‘Autobiografia’ (enquanto género literário), uma vez que esta cumpre princípios e objectivos particulares que iremos analisar mais à frente nesta pesquisa.

47 Esta indagação espiritual plasmada na escrita autobiográfica verificou-se presente também no Renascimento através de figuras como Santa Teresa de Ávila. Contudo, sob a influência do Humanismo, o Renascimento é marcado por uma indagação interior que sai da esfera espiritual e entra na secular através do estudo da subjectividade interior. Esta indagação interior encontra-se presente nos Essais de Michel de Montaigne (1580), em que o autor se questiona sobre o problema de ser simultaneamente sujeito e objecto da sua escrita, bem como na obra de Girolamo Cardano, De propria vita liber (1576), considerada a primeira narrativa de vida psicológica (SMITH, WATSON, 2010, p. 109).

Num salto para o século XVIII, verifica-se que este século correspondeu a um período particularmente importante para o desenvolvimento da escrita autobiográfica, assistindo ao nascimento do género literário da ‘Autobiografia’. O desenvolvimento da Autobiografia surge na sequência dos valores iluministas da acção movida pela razão em direcção a uma acção autónoma, liberta de qualquer força opressora. Deste modo, a Autobiografia surge como veículo directo ao auto-conhecimento que, como veremos mais à frente, será uma postura criticada pelos teóricos sitos no contexto pós-moderno.

O século XIX, por seu turno, foi marcado por duas vertentes autobiográficas. Por um lado, no pós-Revolução Industrial surge o movimento artístico e literário do Romantismo, centrado num individualismo profundo, numa fuga à actualidade e à cidade industrial, que conduz o Homem em busca de uma fusão com a natureza, num acto embebido pelo conceito de sublime, em que o Homem aceita a sua fragilidade face ao poder avassalador da natureza, e nela se dilui. Encontramos enquadrado com o Romantismo inicial a obra de Johann Goethe Os sofrimentos do jovem Werther (1774), e já no Romantismo pleno do século XIX, a pseudo- Autobiografia de Lord Byron em Don Juan (1824) (SMITH, WATSON, 2010, p. 118).

A segunda vertente da escrita autobiográfica desenvolvida durante o século XIX diz respeito ao género literário Bildungsroman que corresponde a uma pseudo-Autobiografia, na medida em que procura revelar a jornada de uma personagem desde jovem à sua idade adulta, demonstrando o desenvolvimento das suas características psicológicas, ideológicas, morais e todas aquelas que a caracterizam. São exemplo deste género de pseudo-Autobiografia as obras Jane Eyre: An Autobiography (1847) da autoria de Charlotte Brontë, e David Copperfield (1850) de Charles Dickens, assumindo no seu título original, a seguinte designação: The Personal History, Adventures, Experience and Observation of David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery (which he never meant to be published on any account) (SMITH, WATSON, 2010, p. 119-120).

Ao entrarmos no século XX assistimos a um crescimento exponencial no número de Autobiografias publicadas e a uma explosão de novos géneros de escrita autobiográfica (como

48 é o caso das narrativas de prisão, de imigrantes, de minorias étnicas e sexuais) em que as vozes marginalizadas passam a ter a capacidade de serem ouvidas. Esta proliferação de Autobiografias e de novos géneros de escrita autobiográfica encontra-se justificada por vários factores, dos quais, destacamos o desenvolvimento da Teoria Psicanalítica de Sigmund Freud, o aumento da literacia junto das populações (SMITH, WATSON, 2010, p. 194) e as críticas à teoria da história dos grandes homens, fenómeno que iremos explorar mais à frente.

Importa referir que até ao século XX o termo memoir foi empregue enquanto sinónimo daquilo que aqui designamos por escrita autobiográfica (SMITH, WATSON, 2010, p. 2), isto é, enquanto narrativa auto-referencial expressa sob a forma escrita. Contudo, o termo memoir (ou memória) é actualmente considerado como um género de narrativa de vida, tal como o é a Autobiografia. Embora os termos ‘memória’ e ‘Autobiografia’ sejam frequentemente utilizados de modo indiscriminado, importa salientar que existem diferenças entre ambos os géneros. Em primeiro lugar, Autobiografia assenta num tom confessional por parte do narrador, focada, por isso, no seu eu. A memória, por seu turno, situa o narrador num contexto social, posicionando- o enquanto participante ou observador, sendo o enfoque colocado, não no eu do narrador, mas nas acções dos indivíduos que com ele interagiram no contexto social delimitado. Em segundo lugar, enquanto a Autobiografia, por norma, abarca a totalididade da vida do narrador, a memória centra-se num segmento da sua vida (SMITH, WATSON, 2010, p. 274-275)

Chegamos finalmente ao século XXI em que as manifestações auto-referenciais extravasam os limites do suporte em papel e da forma da escrita, surgindo uma multiplicidade de géneros de actos autobiográficos capazes de abranger as tecnologias digitais, artes visuais e performativas, vídeo, entre outras. Sidonie Smith e Julia Watson ilustram a complexidade e o elevado número de géneros de actos autobiográficos que surgem no século XXI num levantamento, realizado pelas autoras, durante o qual foram capazes de reunir um total de 60 géneros diferentes de actos autobiográficos (2010, p. 253-286).