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APÊNDICE F:

(RE)CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DE VIDA DO ARQUIVO PESSOAL GODOFREDO

FERREIRA

Godofredo Ferreira (1886-1981) foi um indivíduo cuja vida foi vivida em profunda ligação e identificação à vertente cultural dos CTT, empresa da qual foi funcionário entre os seus 18 e 70 anos, em particular, no que diz respeito à investigação e divulgação da história desta empresa, e, intrinsecamente associada a esta, também da história das comunicações em Portugal. O modo como Godofredo Ferreira se identificou com os CTT levou-o, mesmo após aposentado por limite de idade (aos 70 anos), a continuar as suas investigações numa sala da Biblioteca da Administração Geral dos CTT; sala esta que foi cedida a Godofredo Ferreira por Luís de Albuquerque Couto dos Santos, Administrador Geral desta empresa, para que nela pudesse instalar o ‘Gabinete de Estudos de História e Bibliografia dos CTT’, serviço criado por Godofredo Ferreira em 1950 (sendo que no mesmo ano criou o ‘Arquivo de Reservados’, mais tarde denominado por ‘Arquivo Histórico’, ambos dependentes da Biblioteca da Administração Geral dos CTT).

Durante o período da sua aposentação, Godofredo Ferreira debruçou-se sobre a tarefa de construir no ‘Gabinete de Estudos de História e Bibliografia dos CTT’ um conjunto informacional composto por informação relativa à história dos CTT, informação esta que Godofredo Ferreira reuniu ao longo da sua vida, quer a título pessoal, quer em serviço para os CTT, procurando reunir e organizar um conjunto informacional de carácter histórico, com o objectivo de futuros investigadores o poderem consultar e, a partir dele, desenvolverem a história desta empresa e, assoaicada a esta, também da história das comunicações em Portugal. Este conjunto informacional permaneceu no ‘Gabinete de Estudos de História e Bibliografia dos CTT’ até que, após a morte de Godofredo Ferreira, foi reunido física e intelectualmente enquanto ‘espólio’, sendo actualmente entendido como ‘arquivo pessoal’, dada a maior adequação deste último termo à realidade do conjunto informacional, e por esse motivo denominado Arquivo Pessoal Godofredo Ferreira (APGF).

Godofredo Ferreira, ao produzir o seu arquivo pessoal, fixou neste conjunto informacional uma dimensão auto/biográfica, ou, por outras palavras, uma narrativa de vida. Na narrativa de vida do APGF, Godofredo Ferreira faz-se auto-representar, acima de tudo, como um investigador da história dos CTT. De modo a enfatizar o seu papel de investigador, Godofredo Ferreira constrói uma narrativa de vida assente na desvalorização dos demais papéis sociais desempenhados em vida, factor evidenciado pela lacuna na informação contida no APGF

185 relativa ao papel desempenhado por Godofredo Ferreira enquanto funcionário dos CTT, do qual constam apenas breves indícios. De igual modo, verifica-se particularmente notória a omissão de qualquer referência à esfera íntima de Godofredo Ferreira na narrativa de vida, nomeadamente através da omissão quanto ao facto de Amália Ferreira, sua filha, ter sido funcionária dos CTT, tendo trabalhado directamente com seu pai, quer como bibliotecária, quer como colaboradora na construção da informação que actualmente compõe o APGF.

Verifica-se, deste modo, que Godofredo Ferreira procurou se auto-representar no seu arquivo pessoal enquanto investigador, posicionando-se como detentor de autoridade para narrar a história dos CTT e das comunicações em Portugal, dada a posição (social) privilegiada em que se encontrava, em primeiro lugar, enquanto funcionário da empresa cuja história investigava, e em segundo lugar, enquanto figura respeitada pelos seus pares, sobretudo no que diz respeito ao pessoal da Administração Geral dos CTT, responsáveis por valorizar e incentivar as investigações de Godofredo Ferreira. Deste modo, Godofredo Ferreira, ao construir o APGF, adquire, segundo a óptica da sociologia, a capacidade de agência, uma vez que, ao projectar no APGF o seu nome e seus contributos, assegura a sua memorização, enquanto figura de referência para os CTT, para o estudo da sua história e das comunicações em Portugal.

Importa salientar o facto de que a narrativa de vida fixa no conjunto informacional se encontrar marcada pelo contexto político do Estado Novo e seus antecedentes, responsáveis por enquadrar o período de constituição do APGF (1917-1977). O Estado Novo, enquanto regime político interessado na projecção da imagem de um Portugal embebido pelos valores nacionalistas, e simultaneamente, de conservadorismo e de modernização, verifica-se alinhado com os contributos de Godofredo Ferreira, na medida em que, ao estudar a história dos CTT, Godofredo Ferreira encontrava-se a ilustrar, em primeira instância, o progresso dos CTT, e consequentemente, tratando-se esta de uma empresa pública – e por esse motivo reflexo da acção política do regime do Estado Novo – também o progresso e bem-estar de Portugal e suas (ex-)colónias, conectado por via de vários sistemas de comunicação, entre os quais, o correio, telégrafo, telefone e posta aérea, capazes de unificar o então denominado Império Português. Consideramos que este possa ter sido um factor determinante para que a Administração Geral dos CTT tenha incentivado e valorizado os contributos de Godofredo Ferreira, para que os CTT, através dos contributos de Godofredo Ferreira, se mantivesse alinhado com a ideologia política em vigor.

É interessante de verificar o modo como, aliado à sua identificação com os CTT e à sua auto-representação no APGF enquanto investigador, Godofredo Ferreira mostra-se ao ‘outro’ enquanto um corpo idoso, doente e frágil, marcado pela inevitável – e possivelmente súbita – mortalidade, factor este que está na génese da própria criação do APGF, uma vez que Godofredo

186 Ferreira viu na construção deste conjunto informacional a possibilidade de que o trabalho que desenvolveu em vida sobre a história dos CTT e sobre as comunicações em Portugal não fosse perdido, e neste gesto, fosse imortalizado o seu contributo enquanto «cronista-mor» dos CTT.

Este fenómeno encontra-se visível na intenção autoral que acompanha o APGF, através da qual Godofredo Ferreira se mostra ao ‘outro’, de forma clara, enquanto entidade responsável pelo conjunto informacional, ao permear a informação do APGF com sinais visuais que remetem para Godofredo Ferreira enquanto entidade produtora através do recurso a carimbos com o seu nome e cargo, assinaturas e notas nas quais é expresso o processo, o objectivo, e justificado o valor da informação contida no conjunto informacional. Verifica-se neste gesto autoral uma intenção evidente de combate ao esquecimento, quer do trabalho que Godofredo Ferreira conduziu em vida enquanto investigador (através da gestão da informação que compõe actualmente o APGF, para sua disponibilização à comunidade científica), quer da sua bios, uma vez que Godofredo Ferreira, ao permear o seu arquivo pessoal com vestígios da sua autoria, revela um esforço consciente na produção de um conjunto informacional assente no perpetuar da memória de si enquanto indivíduo dedicado aos CTT, e em particular, à investigação da história desta empresa.

Através do estudo da bios e da graphia de Godofredo Ferreira – esta última fixa no seu arquivo pessoal – concluímos que o APGF, entendido como uma auto/biografia de Godofredo Ferreira, verifica-se articulado segundo uma graphia na qual o produtor-narrador não transpôs de modo autêntico a sua vida ou identidade, mas através da qual Godofredo Ferreira adquiriu agência, actuando activamente na gestão da informação do seu arquivo pessoal para que pudesse ser lembrado postumamente enquanto figura de autoridade para a história dos CTT e das comunicações em Portugal, e, em última instância, para que através da construção do eu autobiográfico presente no conjunto informacional, o eu histórico de Godofredo Ferreira pudesse vir a ser imortalizado.