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PARTE II −PILARES TEÓRICOS

CAPÍTULO 4 HISTÓRIAS DE VIDA

 

Os primeiros estudos científicos utilizando a metodologia “história de vida” começaram logo após a Primeira Guerra Mundial. Surge, então, o interesse pelos relatos singulares com o objetivo de se entender o ser humano (FONTES, 2006). Entretanto, a primeira contribuição realmente importante para firmar os relatos orais como método científico vem da Escola de Chicago, explicitada na proposta de Mead4 (In: FONTES, 2006). Esta proposta passa a ser conhecida como “interacionismo simbólico”, em que as relações/interações simbólicas dos seres humanos são propostas pelo autor para explicar o comportamento deles. A partir destas contribuições as ciências sociais começaram a ver “o sujeito” como um ser complexo, formado por suas relações com os outros e pelo significado que elas terão para modificar sua vida; o indivíduo terá comportamento influenciado pelo meio em que vive, suas ações estão inseridas em um processo comunicativo (Ibidem, 2006).

As histórias de vida englobam esta nova visão tanto nas ciências sociais, como de outras disciplinas. As histórias de vida tem mostrado ser um método de preferência no estudo do comportamento dos grupos, já que, de acordo com Ferrarotti (1983), ao compreender as representações do indivíduo compreendemos as representações sociais do grupo em que ele está inserido. Elimina-se, assim, a separação entre o individual e o coletivo. “As histórias de vida devem-se preocupar com a ponte entre o individual e o coletivo, sem perder de vista nem um nem outro” (TANUS, 2002, p. 23). Aqui novamente deve ser lembrada a intenção da importância do trajeto antropológico nesta pesquisa.

Bertaux (1997) diferencia relatos orais dos relatos biográficos e das histórias de vida, considerando os relatos orais como um método objetivo e, portanto, podendo ser utilizados como um método complementar a outro método empregado nas pesquisas sociais, principalmente quando estas se referem a certas relações sociais específicas, como, por exemplo, as relações trabalhistas. Já as “histórias de vida” e as biografias devem ser utilizadas sempre como método principal, método

      

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subjetivo, em que se buscam os simbolismos, as atitudes e os valores dos indivíduos. Enfim, o que conta realmente é a visão de mundo do sujeito diante da vida e não somente com relação a um fenômeno específico. Esta pesquisa adotou a segunda forma de leitura, mais precisamente as histórias de vida, seguindo a corrente de Ferrarotti, que descreve as histórias como:

O choque de vivência do real, aquilo que não engana jamais, além do discurso são também gestos, rostos e sentimentos, inseridos em situações políticas e sociais de uma época, mostrando o nível de vida das populações, seus idealismos e manifestações coletivas. (FERRAROTTI, 1983, p. 34).

Segundo Ferrarotti (1983, p. 28), a história de vida é “a história das emoções e dos advérbios de tempo”. As informações descritas são consideradas realistas. Para Meleiro e Gualda (2003), a história escrita é o evento e não a história que os informantes criam sobre ele. A análise, portanto, vai além do apenas dito; vai ao profundo submerso que emerge na trama do discurso, nos seus fios que tecem a história, no imaginário dos sujeitos e dos grupos.

Bertaux (1997, p. 16)5 refere-se às histórias como “uma sucessão temporal de acontecimentos”. Mesmo que os relatos ocorram muitas vezes sincronicamente, é preciso procurar a cronologia dos fatos relatados para entender como as influências sociais e culturais dos acontecimentos irão interferir/modificar a vida do indivíduo. É encontrar a diacronia esclarecedora. Quando se fala de acontecimentos e trajetórias de vida, tem-se de ter muita cautela, pois esses se caracterizam não só pelo que ocorre com o sujeito, mas também por seus próprios atos que vão ter status de acontecimentos. E devemos pensar “nas trajetórias como caminhos cheios de imperfeição, que se irão organizar de forma imprevista” (BERTAUX, 1997, p. 24) e muitas vezes de maneira incompreensível na primeira escuta. A decodificação do discurso impregnado de mitos é a difícil tarefa aqui proposta, auxiliados, como já foi dito, pelos pesquisadores e teóricos das temáticas e do método.

O importante nas histórias de vida é:

O esforço de compreensão da prática que pode certamente conduzir ao nível semântico das crenças, representações, valores e projetos que se combinam a situações objetivas, inspiram a lógica das ações das pessoas. (BERTAUX, 1997, p. 5).

Colher e escutar histórias de vida é construir uma lógica com pedaços ofertados em um discurso fragmentado, mas em que pode ser encontrada a riqueza para conhecer o imaginário dos sujeitos. Nas práticas e expressões repetitivas ou, como denomina G. Durand (1998), nas “metáforas obsessivas”, pode-se identificar o comportamento humano. A história daquele sujeito – permeada e fundamentada em crenças, mitos e medos, como estes se representam simbolicamente e interferem na vida do sujeito, cotidianamente – carrega o profundo incógnito do imaginário.

Laine (1998) define histórias de vida como um passo para fazer o sujeito descobrir, por ele mesmo, um momento de sua vida, seu processo de identidade, suas contribuições sociais e familiares que ajudaram a construir sua vida. Além disso, Bertaux (1997) ressalta a importância de não se deter somente nesta busca do interior do sujeito: deve haver interesse mais abrangente, pelo mundo exterior, pelo contexto social que contribuiu para construir e modificar a visão de mundo deste indivíduo. “Não se trata de compreender os fatos pelo ‘psicologismo do social’, mas entender o que se passa no cotidiano do ser humano como ‘ator social’ (FERRAROTTI, 1983, p. 56). Mais uma vez, com Ferraroti, justificamos a nossa opção por conhecer o imaginário, entendido, durandianamente, na amálgama de interior e exterior, no trajeto antropológico, considerando a pessoa idosa, com suas idiossincrasias, o meio de onde veio, onde viveu a infância, a maturidade e onde iniciou sua velhice e agora sua vida no contexto asilar.

De acordo com Bosi (1987, p. 22), “não devemos deixar morrer as histórias, pois é nessa troca de experiências que o velho se torna presente na sociedade”, suas memórias atravessaram tipos diferentes de sociedade com características específicas e marcantes. Segundo Melleiro e Gualda (2003), quando o indivíduo fala, ele utiliza sua memória autobiográfica, que servirá como forma para “reconstruir” e analisar acontecimentos passados, significando-os no momento presente. Esta memória individual será alimentada pela memória coletiva, “as histórias de vida captam esta encruzilhada entre o individual e o social” (TANUS,

2002, p. 14). “A história é importante como memória coletiva do passado, consciência crítica do presente e previsões do futuro” (FERRAROTTI, 1983, p. 19).

Segundo Brandão (2002), memória é uma forma de conhecimento que está inserida em um processo dinâmico. Aprender-ensinar-construir faz parte dessa construção/reconstrução por que o indivíduo passa ao longo dos anos, evidenciada pelas escolhas feitas ao longo de sua trajetória de vida. Quando falamos em memória, pensamos aqui em memória afetiva e não-cognitiva, mesmo sabendo que estas estão entrelaçadas. Nesta pesquisa, contarão sentimentos, significados, encantamentos e desencantamentos que se formam ao longo da vida e estarão de algumas formas “guardadas” na memória. O relato trazido da memória tem o poder de dar dignidade àqueles que “são ouvidos”, principalmente ao grupo dos esquecidos ou marginalizados, como no caso de alguns idosos asilados. Convém, no entanto, lembrar que memória não é imaginário, mas pontuações mnemônicas dos sujeitos com as quais se podem inferir a visão de mundo do mesmo e desvendar as subjacências do seu imaginário.

As histórias de vida dão voz ao idoso, levam em consideração sua subjetividade, complexidade, experiências e sua importância como protagonista da história de um povo. Recuperam a cidadania atualizada no passado que se vislumbra agora no presente. Esta vontade pode ser constatada em cada oportunidade ao estar ao lado do idoso, sujeito desta pesquisa.

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