• Nenhum resultado encontrado

Nos anos 801, certamente sentindo a influência dos movimentos anti-manicomiais e anti-psiquiátricos, começa a surgir no seio do sistema penitenciário, mais precisamente através dos próprios funcionários ligados à execução da medida de segurança, a idéia de se transformar a internação do inimputável que entrou em conflito com o ordenamento jurídico. Segundo Ferrari (2001b, p. 169-170):

No período de 1981 a 1984, o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha iniciou visitas experimentais, admitindo que os pacientes- delinqüentes passassem os fins-de-semana junto a seus familiares, resultando em concretos ganhos terapêuticos. Tal ensaio, todavia, foi suspenso judicialmente sob a alegação de ausência de amparo legal. [...]. O apego ao formalismo jurídico, contudo, não venceu a imaginação e a resistência dos bem intencionados, inaugurando-se em 1989, em Franco da Rocha, um pavilhão destinado ao implemento de uma progressividade na execução da medida de segurança de internamento, constituindo-se num modelo transitório entre a situação de hospitalização em regime fechado e o retorno ao meio social mais amplo. Instituía- se, assim, uma progressividade à medida de internamento, proporcionando aos indivíduos, que aos poucos melhorassem, um momento de liberdade, retornando ao convívio social.

No mesmo sentido, Adomaitis et al (2000, p. 12) afirmam que “em 1981, se pôs em prática as saídas experimentais de pacientes em companhia de familiares que perduraram até 1984 e foram retomadas em 1989 com a implantação do Projeto de Desinternação Progressiva”. Foi, portanto, em 19892 que a progressão da medida de segurança no Estado de São Paulo se consolidou definitivamente, passando a contar com o apoio do Poder Judiciário de uma maneira cada vez mais ampla. De qualquer forma, a idéia da progressão na medida de segurança foi sendo amadurecida e aprimorada ao longo do tempo, tornando-se cada vez mais

1 Os dados que doravante passam a ser citados e analisados têm por fonte pesquisa de campo realizada no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico II de Franco da Rocha, entre os dias 17 de dezembro de 2007 e 18 de janeiro de 2008, pesquisa essa devidamente autorizada pelas autoridades competentes, conforme pode se verificar nos anexos a este trabalho. A pesquisa teve por instrumentos a realização de entrevistas com diversos profissionais atuantes na desinternação progressiva, análise de documentos e prontuários, assim como informações verbais concedidas pelos funcionários. Como a pesquisa se desenvolveu sob a condição de sigilo absoluto a respeito da identidade dos profissionais envolvidos, assim como da identidade dos internos citados ou constantes dos documentos analisados, não se pode indicar diretamente a fonte dos dados, sob pena de grave infração ética. Fato é que toda a descrição da dinâmica da desinternação progressiva foi-nos fornecida pelos profissionais do Hospital, assim como pelos documentos analisados, sendo que se tentará reunir todas essas informações de modo que se descreva, o mais fielmente possível, a realidade vivida pelos internos. Bem verdade que não é tarefa fácil reunir as diferentes percepções da desinternação progressiva expressadas por cada profissional, assim como relacioná-las com as impressões e interpretações da pesquisadora, mas se trata de tarefa tão desafiadora quanto necessária. Registre-se ainda, sobretudo no que tange às conclusões da pesquisa, que se trata de um posicionamento possível, ainda que empiricamente fundamentado, entre outras construções dogmáticas que podem ser feitas.

consistente. De início, fala-se em alta progressiva ou ainda em alta progressiva e programada, conforme se verifica deste trecho de uma decisão judicial, datada de 20 de março de 1987:

Ante o laudo psiquiátrico, e tendo em conta o parecer do digno Promotor de Justiça, prorrogo a medida de segurança imposta a * , por um ano. A medida poderá, a critério da culta Diretoria do Manicômio, ser aplicada com a alta progressiva e programada, na forma alvitrada no bem elaborado laudo psiquiátrico.

Com efeito, o parecer psiquiátrico3 em tela recomendou a aplicação da chamada alta progressiva, conceituando-a como “a possibilidade de liberar o paciente de forma gradativa, segundo seus avanços terapêuticos”. Ademais, o perito ressaltou os desafios4 que teriam de ser enfrentados para a efetivação da medida, porém “somente diante da possibilidade concreta de execução de um novo trabalho, esta Casa poderá moldar-se às novas exigências”. Pode-se perceber, com efeito, que o mérito da instituição da desinternação progressiva é dos próprios funcionários que atuavam no Hospital, sobretudo dos médicos psiquiatras, que, convém ressaltar, sempre pediam autorização do Poder Judiciário para aplicar a medida.

Como se vê, a iniciativa da criação da desinternação progressiva não se deu no meio jurídico, mas sim no meio médico, a julgar pela sua primeira denominação – alta progressiva e programada –. Essa questão não é importante apenas do ponto de vista histórico, mas é fundamental porque projeta conseqüências para a própria dinâmica atual da desinternação progressiva, caracterizada por um forte viés médico e terapêutico. Embora esse aspecto não possa ser deixado de lado, é necessário priorizar doravante a abordagem jurídica, aprofundando-a, na medida em que a desinternação progressiva se processa no seio de uma sanção penal.

De qualquer forma, como já ficou patente, a experiência denominada de alta progressiva e programada posteriormente passou a ser chamada de desinternação progressiva. Um dos motivos para essa modificação seria a necessidade de diferenciá-la da alta progressiva, realizada no Rio Grande do Sul. Na verdade, conforme um dos entrevistados afirmou, informações a respeito da alta progressiva gaúcha inspiraram a criação de prática semelhante no Estado de São Paulo. Segundo Ferrari (2001b, p. 169), a experiência do Instituto Psiquiátrico Forense, localizado em Porto Alegre, iniciou-se em 1966, sendo pioneira nesse sentido. Sendo assim, é muito provável que tenha mesmo influenciado a criação da

3 Importante registrar que o laudo entende a utilização da alta progressiva como terapêutica: “como um tratamento que usasse a alta como terapia e que contemplasse os aspectos orgânicos, psicodinâmicos e sociais de seu desajuste, poderíamos devolvê-lo à sociedade protegendo o paciente e a mesma”.

desinternação progressiva paulista5. Ademais, segundo o trabalho de profissionais que atuaram na desinternação progressiva, a confirmar a estreita relação entre alta e desinternação progressiva,

[...] em 1989, inaugurou-se um pavilhão destinado ao implemento da Desinternação Progressiva, um projeto calcado nos moldes do já existente no Manicômio do Rio Grande do Sul, que constitui-se num momento transitório entre a situação de hospitalização em regime fechado e o retorno ao meio social mais amplo (ADOMAITIS et al 2000, p. 7-8).

No início, as experiências da desinternação progressiva foram realizadas no Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo, que em 1988 passa a denominar-se Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Prof. André Teixeira Lima6 (ADOMAITIS et al, 2000, p. 7). Em 2001, o Poder Executivo7 cria um hospital exclusivamente destinado à desinternação progressiva, chamado de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico II de Franco da Rocha, destinado tão-somente ao público masculino. Por sua vez, o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Prof. André Teixeira Lima (HCTP I) continua contando com uma ala de desinternação progressiva, destinada a mulheres. Seja como for, o fato de ser destinado um Hospital exclusivamente para a realização da desinternação progressiva é muito significativo, pois deixa claro o apoio dado pelo Poder Executivo a essa prática, assim como a inexistência de dúvidas quanto a sua legalidade8. Da mesma forma, a já tradicional consulta ao Poder Judiciário, que decide quais indivíduos devem ou não ser transferidos para a medida, revela que esta já se incorporou ao sistema penitenciário paulista.