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Encontramos muitas informações sobre as masculinidades no Brasil colonial, no trabalho panorâmico sobre a história da sexualidade, realizado por Ronaldo Vainfas (1997). O tipo masculino colonial que teria sido preponderante, de acordo com a documentação analisada pelo autor, parece ser o de uma agressividade quase intocada pelos limites da lei (pois a lei era a da sua arma) e de sexualidade livre dos rígidos freios morais (em oposição à vigiada sexualidade de suas esposas e filhas). Segundo o historiador, embora julgassem errado deitar-se com virgens, casadas ou parentas, “ao falarem sobre mulheres, nossos colonos mal disfarçavam a misoginia herdada da Península, vangloriando- se com irreverência de seus privilégios masculinos” (VAINFAS, 1997, p. 69). Para ele,

ainda, “muitas das conversas entre os homens da Colônia do século XVI parecem indicar

essa atmosfera de galhofa, escárnio e folgança, típica das moralidades masculinas da

Península” (VAINFAS, 1997, p. 67). O autor termina por concluir que as defesas que

muitos portugueses da Colônia fizeram da fornicação, e por isso denunciados à inquisição,

embora jamais condenados, significavam mais uma “afirmação de virilidade, vanglória de machos”, do que obstinação em pecar ou em desafiar a Igreja (VAINFAS, 1997, p. 67).

O principal alvo para a realização destas aventuras masculinas, tão freqüentemente narradas aos seus pares que tanta importância pareciam dar a isto, era a mulher solteira, termo que tinha um significado distinto do de hoje:

Solteira era mulher desimpedida, livre, sem proteção de família ou marido, passível de envolver-se em quaisquer relações amorosas ou sexuais. (...) Com sentido muito diferente da celibatária – mulher que aspirava a casar-se ou que optara pela castidade sem ingressar em religião – , solteira era, como se dizia, a

„mulher que nunca casou‟, „mulher que não tem marido‟, „mulher pública‟, quase

um sinônimo de meretriz, ainda que sem conotação profissional.

Segundo o historiador, esses mesmos homens que ostentavam com tais

mulheres “sem proteção” sua atividade sexual perante os demais, eram também os que

prendiam as mulheres de sua família em casa ou matavam com facilidade suas esposas caso suspeitassem que essas lhes fossem infiéis. Além da reclusão doméstica, “por todos almejada em defesa da própria honra ou virgindade das filhas, a ela somar-se-ia a prisão

nos conventos e recolhimentos” (VAINFAS, 1997, p.135). Deve-se mencionar que o

assassinato da adúltera tinha o respaldo das leis portuguesas, o que não acontecia com o adúltero, situação que permanece intacta no Brasil até meados do século XIX (VAINFAS, 1997, p.138-139). Assim, a ostentação viril por meio do exercício da sexualidade era acompanhada de perto pela ostentação viril por meio da violência14. Para tal modelo de masculinidade só a violência tinha o poder de reaver a honra quando posta em xeque:

No tocante às classes abastadas, nossa crônica acha-se repleta de assassinatos cruéis de donas e sinhás perpetrados por maridos soberbos, irmãos enciumados e pais zelosos, que ao menor sinal de traição ou indisciplina, punham-se a lavar a honra com sangue. (...)

Mas a violência misógina não era um privilégio das elites. Praticavam-na todos os homens, e a tal ponto que as Constituições de 1707, dispondo sobre a punição dos amancebados, recomendavam muita discrição aos vigários na admoestação às adúlteras, especialmente se fossem os maridos capazes de matá-las ou impingir-

lhes “mau tratamento considerável”.

(VAINFAS, 1997, p. 137)

Esta “dupla moral” – uma para a mulher e outra para o homem – permanecerá

no século XIX, segundo a historiadora Mary Del Priori (2006):

Durante o século XIX continuam sem punição as infidelidades descontínuas e transitórias por parte dos homens casados, bem como toleravam concubinatos de escravas com seus senhores. (...)

O adultério perpetuava-se como sobrevivência de doutrinas morais tradicionais. Fazia-se amor com a esposa quando se queria descendência; o restante do tempo, era com a outra. A fidelidade conjugal era sempre tarefa feminina; a falta de

14Esses costumes não seriam exclusivos nem do Brasil, nem do período colonial: “No limiar do século XVI, estaríamos diante de um complexo processo de interação entre os antigos costumes misóginos, pulverizados em toda a Europa, e o discurso de cunho antifeminino, herdeiro da Antiguidade clássica e da teologia moral cristã, vulgarizado em escala crescente desde o final da Idade Média. (...) Diversas manifestações da cultura popular ibérica indicam-nos a existência de traços misóginos não tão distantes do receituário oficial.” (VAINFAS, 1997, p.128)

fidelidade masculina vista como um mal inevitável que se havia de suportar. É sobre a honra e a fidelidade da esposa que repousava a perenidade do casal.

(DEL PRIORI, 2006, p. 187)

A violência masculina contra a adúltera, por outro lado, também sobrevive no século XIX:

Casada, a mulher passava a pertencer a seu marido e a ele só. Qualquer interpretação equivocada de condutas reais ou supostas era severamente punida; ela não pode sequer dar lugar a dúvidas infundadas, pois o peso da reputação era importantíssimo.

(DEL PRIORI, 2006, p. 221-222)

Estes homens extremamente preocupados com sua imagem pública, violentos e impiedosos para com suas mulheres e para com qualquer um que ameaçasse sua honra, e ciosos de suas reputações sexuais, ainda chegariam a aparecer até no início do século XX, mesmo nas fantasias literárias de alguns homens que testemunharam certo enfraquecimento desse modelo masculino naquele período.Pelo menos é para isso que apontam as pesquisas de Albuquerque Júnior (2008 a, b e c) em relação a esse assunto na região Nordeste – na verdade, um dos poucos que tem produzido sobre história do gênero masculino no Brasil.

Em “A Escrita como Remédio: erudição, doença e masculinidade no Nordeste do começo do Século XX” ele afirma:

A crise das masculinidades, no pós-Primeira Guerra Mundial, que foi comum a todas as sociedades ocidentais, vai se expressar nesta região [Nordeste] que se inventa neste momento, como adoecimento. A impossibilidade das novas gerações em atualizarem os códigos, relações, saberes e performances que definiam a masculinidade na sociedade escravista vai ser narrada e justificada a partir do tema da doença. Esta passa a ser núcleo de sentido das muitas biografias masculinas que se escrevem neste período. (...) A doença justifica até mesmo a escolha da carreira intelectual, a impossibilidade ou aversão a ser como seu pai ou avô, tocando um engenho ou administrando uma fazenda. Ser homem de letras é ser homem feminilizado, que deve compensar esta sua situação pela reposição constante da memória dos homens de sua estirpe, de seu sangue, seus ancestrais que vêm lhe dar a dignidade que lhe falta.

(...)

Somente escrevendo podem ser homens como antigamente, podem falar deles, neles projetarem seus desejos e sonhos, podem com eles tentar compor rostidades, corporeidades que venham servir de identidades postiças para homens desfibrados.

Levar em conta essa “crise” pela qual passou a masculinidade na passagem do

século XIX para o XX serve, de acordo com o autor, para uma melhor compreensão da abundância de escritas memorialísticas (sendo elas individuais ou coletivas) produzidas naquele período e naquela região. Numa vertente mais social encontraríamos Leonardo Mota, Gustavo Barroso, Juvenal Galeno, Luís Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, todos eles

“assombrados com a morte do sertão” e com a desvirilização do mundo que isso

evidenciava (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008 a, p. 485); já na vertente mais literária estamos diante de figuras como Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, e daquele que seria o mais emblemático de todo esse processo, José Lins do Rego15 cuja literatura, segundo o

historiador, “nasce da necessidade que sente de conjurar a morte, não somente dos homens, mas de toda uma „civilização‟, de um mundo, o mundo dos engenhos bangüês, tarefa difícil e interminável, que se espalha por vários volumes” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008 a, p.

489).