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Capítulo II: As masculinidades em tempos de instabilidade: posicionamentos

1. As razões de Estado e as outras masculinidades

1.2. Mulheres fora de casa

Novas faces do masculino eram possibilitadas e traziam consigo também, é evidente, novos modos de compreender o lugar do feminino e das mulheres. Assim, um outro costume que parecia garantir a estabilidade do longevo “poder masculino”, descrito pelos viajantes, também viria a ser questionado pelos mesmos representantes do Estado: a manutenção das mulheres no espaço doméstico.

O próprio presidente da província de Minas Gerais Dr. Antônio Luiz Affonso de Carvalho, em seu relatório de março de 1871, além de reforçar a crítica ao difundido hábito do porte de armas na província, também protesta vivamente contra a alarmante desproporção entre o número de 463 cadeiras de ensino primário para meninos e apenas 62, para o sexo feminino (Relatório de Presidente da Província de Minas Gerais, 1871, p. 35). Partindo desse dado o presidente irá sugerir em sua escrita que a modernidade estava se estabelecendo de uma vez por todas no Brasil e que a mulher que estuda e trabalha era uma personagem importante dessa conjuntura: “a escrava trabalha forçada sob a direcção do senhor, a mulher livre carece de ensino prévio, por que ella mesma é que tem de dirigir-se a si própria” (Relatório de Presidente da Província de Minas Gerais, 1871, p.35). Modernidade brasileira que, como se vê, convivia com a escravidão...

Já no relatório do Presidente Senador Joaquim Floriano de Godoy, entregue em Janeiro de 1873, referente ao ano de 1872, período em que governou a província, destaca no anexo A-21 a importância das mulheres para que várias melhorias almejadas se

realizassem. Para isso era imprescindível que fossem criados “estabelecimentos proprios

para a educação do sexo feminino, no qual devemos fundar todas as nossas esperanças de

A pesquisa empreendida por Gouvêa (2004 b, p. 199) demonstra que as mulheres mineiras, apesar de terem enfrentado alguns empecilhos para o acesso à educação no XIX, num balanço geral obtiveram avanços neste quesito naquele século:

As sucessivas leis que buscavam regular a convivência entre os gêneros no interior dos espaços escolares demonstram como os textos legais progressivamente tinham em vista garantir o acesso à escola da população feminina.

(GOUVÊA, 2004 b, p. 201-202)

Na análise da educação escolar na província mineira, chama atenção, no estudo dos mapas de freqüência da segunda metade do século, o significativo aumento das escolas femininas. (...) se em 1815 as meninas não são registradas nas poucas escolas existentes, em 1889 elas chegam a constituir 35% do total de matriculados. Tais dados apontam como a escolarização da população feminina vai adquirindo maior legitimidade no período, configurando-se como a forma escolar de educação da população é incorporada por maior contingente de famílias.

(GOUVÊA, 2004 b, p. 206-207)

Por outro lado, o Estado foi também um dos principais responsáveis por propiciar o desencadeamento do fenômeno que ficou conhecido como “feminização do

magistério”, no Brasil da segunda metade do XIX, quando as mulheres passaram a assumir

cargos de professora que as permitiram circular nos espaços públicos com maior legitimidade. Processo “construído com argumentações em torno, inclusive, de uma

desqualificação masculina” para o exercício dessa profissão (Cf. FARIA FILHO et al.,

2005, p.81).

Há um debate historiográfico já estabelecido a respeito da situação de sujeição ou não das mulheres em relação aos homens durante o período colonial e século XIX no Brasil. Autoras como Eni de M. Samara (1983), Iraci de Del Nero Costa (1979) e Mariza Corrêa (1982) criticaram o conceito de patriarcalismo utilizado por Gilberto Freyre e por Antônio Cândido, ressaltando, dentre outras coisas, que durante o período colonial e ao longo do século XIX muitas mulheres foram chefes de fogo além de terem assumido funções sociais muito diversificadas nos contextos em que estiveram inseridas, sobretudo as de camadas mais populares.

Ronaldo Vainfas (1997, p. 118), por sua vez, embora reconheça as contribuições que essas pesquisas trouxeram para o campo no sentido de matizar nossa visão sobre as relações familiares e de gênero no passado, questiona se o reconhecimento dessas questões possa implicar necessariamente na afirmação de que essas mulheres,

“organizadas em “famílias alternativas”, viviam alheias ao poder e aos valores patriarcais”.

O trabalho de Parker (1991) também vai nessa direção e, assim como Vainfas (1996), reafirma a validade do conceito de patriarcalismo para se entender as relações familiares no Brasil, sobretudo a discrepância de poder existente entre homens e mulheres durante o período colonial e o século XIX.

Durval M. de Albuquerque Júnior (2003, p. 138-139), que também recupera esse debate, considera por sua vez que:

... antes de dedicar longo tempo a analisar se o patriarcalismo é a realidade da colônia ou do século XIX, devemos nos perguntar por que no começo do século vinte intelectuais como Gilberto Freyre descrevem esse período como patriarcal, o que está acontecendo nesse momento histórico que o leva a inventar este conceito.

Ao se aproximar do contexto de produção do conceito de patriarcalismo, complexificando-o, como havia se proposto a fazer, Albuquerque Júnior (2003, p. 138-140) nem por isso deixa, a nosso ver, de concordar que os períodos anteriores ao início do século XX tiveram de fato formas de relações entre os gêneros bastante assimétricas, já que somente nesse período a presença da mulher no espaço público teria sido verdadeiramente sentida como uma ameaça à hierarquia social de maneira mais ampla, justamente o que teria levado Freyre a forjar a noção de patriarcalismo com o objetivo de instaurar uma reação a essa situação:

A conjuntura que vai do final do século XIX até o começo dos anos trinta do século XX, período marcado pelo fim da escravidão, pelo fim do império, pela emergência de uma sociedade urbano-industrial, período de nascimento e formação intelectual de Gilberto Freyre, permitiu-lhe usar o conceito para definir uma forma de organização familiar, cujo desaparecimento ele próprio estava testemunhando.

(...)

O patriarcalismo, sociedade do poder masculino, do império dos pais, assentada em relações paternalistas, de filhotismo e apadrinhamento, sociedade das

parentelas, ia sendo modificado por um processo visto como de desvirilização, de declínio de um dado modelo de masculinidade, período de confusão entre as fronteiras de gênero, em que as mulheres começam a assumir lugares antes reservados aos homens.

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p. 138-140)

Portanto, se as mulheres já estavam circulando nos “espaços públicos” desde o

período colonial, conforme apontam várias pesquisas, sem que isso ofuscasse, no entanto, a força dos códigos maculinos de então25, de acordo com o que também têm postulado alguns trabalhos, podemos interpretar a participação ativa do Estado nesta “saída feminina oficial” do lar para a escola, nas Minas Gerais do terceiro quartel do XIX, como detentora de um importante potencial de mudanças nas percepções dos papéis de gênero. Devemos ter atenção para o fato de que esta saída se referiria mais que simplesmente à saída de um espaço físico concreto. Esta saída deve ser vista, sobretudo do ponto de vista de uma saída que impacta o conjunto da vida social, ou seja, deve ser tomada antes de tudo sob o prisma dos impactos (social, cultural, político, econômico...) que a legitimidade que o Estado reconhece para a presença das mulheres no espaço público, ainda que inicialmente apenas em discurso – que é o caso do período analisado –, pode ter significado.

Por outro lado, é claro que se essa legitimidade agora propagandeada pelo Estado para a presença das mulheres no espaço público não estivesse em consonância com os anseios das mulheres do período ela, possivelmente, não teria a repercussão que sabemos que teve quando verificamos que em fins do século XIX a maioria do professorado já era do sexo feminino. O surgimento do jornal O Sexo Feminino (1873-1874), dirigido pela professora Francisca Senhorinha, na cidade de Campanha (região sul de Minas Gerais), não deixa de ser um representante célebre do protagonismo feminino nesse processo de

25

Os trabalhos que abordaram a documentação de processos crime, ao longo de todo o século XIX e início do XX no Brasil, mostram ao mesmo tempo a freqüência com que as mulheres foram vítimas da violência e a baixa incidência do envolvimento delas na execução de crimes violentos. Ou seja, os homens tornavam o espaço público perigoso tanto para si próprios, quanto para as mulheres, principalmente. Encontramos isso no estudo que Vellasco (2004) faz sobre Minas Gerais ao longo do século XIX; na pesquisa em que Carvalho Franco (1983 [1964]) se detém na região do Vale do Paraíba, Rio de Janeiro, em fins do século XIX; e em Chalhoub (2001 [1986]), quando analisa os crimes na capital carioca da belle époque. A esse respeito é interessante notar ainda que não deixava de assustar o viajante inglês Richard Burton (1976 [1868] p.302), em sua passagem por Ouro Preto, a desproporção numérica de 454 homens presos para 12 mulheres presas.

conquista de legitimidade, paralelo sim à ação do Estado, embora com objetivos muitas vezes convergentes (FARIA FILHO et al., 2005, p.75).

2. O Noticiador de Minas e as masculinidades refratárias às mudanças na organização