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Capítulo II: As masculinidades em tempos de instabilidade: posicionamentos

1. As razões de Estado e as outras masculinidades

1.1. O masculino desarmado

Durante boa parte do século XIX, conforme atestam os relatórios dos presidentes da província de Minas Gerais, o alto índice de homicídios, provocados em sua imensa maioria por pessoas do sexo masculino, chamava a atenção dos dirigentes sem que isto, no entanto, implicasse num questionamento mais contundente do difundido costume masculino de estar sempre armado (VELLASCO, 2003, p. 275). Depois de algumas tentativas isoladas, como a de 1831, quem irá fazê-lo com maior veemência é o Presidente Andrade Figueira em seu relatório de maio de 1869. Nele afirmava que o alto número de

homicídios, que ocorria a cada ano na província, tinha total relação com o “detestável estilo

de uso de armas offensivas, que forma, por assim dizer, o direito commum na província” (Relatório de Presidente da Província de Minas Gerais, 1869, 1º relatório, p. 9). Sendo assim, propunha que este costume fosse energicamente fiscalizado e punido.

Já o relatório de seu sucessor, Dr. José Maria Correa de Sá e Benevides, que data de apenas alguns meses depois, agosto do mesmo ano, não aparenta que ele estivesse tão preocupado com a questão como o presidente anterior. Na distinção que de praxe faziam entre crimes contra a pessoa e crimes contra a propriedade, o Dr. José Maria comemorava que dos 58 crimes ocorridos na Província, apenas 5 haviam sido contra a

propriedade e justificava: “A estatística criminal não é absolutamente desanimadora,

porquanto os attentados contra a vida são menos degradantes do que os contra a propriedade, porque em geral são determinados por paixões nobres e raras vezes premeditados” (Relatório de Presidente da Província de Minas Gerais, 1869, 2º relatório p.11; ênfase adicionada).

Apesar da permanência de um código das sociedades de corte onde era difundida a idéia de que o ato de matar era considerado nobre em ocasiões determinadas, o relatório de Sá e Benevides também mostra uma nova forma de se posicionar diante do mundo: para muitos a propriedade passa a ser mais importante que a vida dos indivíduos. De toda forma, sua conivência com o antigo código masculino de honra, algo apenas secundário em relação à propriedade, mas não necessariamente problemático, nos fornece um bom indício de como “as campanhas do século XIX para complicar e civilizar a masculinidade despertavam o repúdio” de muitos (GAY, 1995 [1988], p.121).

Mas o Dr. Antonio Luiz Affonso de Carvalho, presidente da província de Minas Gerais durante o ano de 1870, em seu relatório de março de 1871, reiterando o discurso de Andrade Figueira feito dois anos antes, voltava a fazer a conexão entre o alto número de

homicídios, dos quais muitas vezes as vítimas eram mulheres e crianças, e o “fatal uso de armas proibidas” (Relatório de Presidente da Província de Minas Gerais, 1871, p. 7) e se

queixava das dificuldades que teve ao tentar desarmar a população que, em sua palavras,

“por hábito já anda assim há muito” (Relatório de Presidente da Província de Minas Gerais,

1871, p. 10)22. Dificuldades à parte, o que importa é que seu relatório deixa explícito que pelo menos o estranhamento deste costume, inaugurado dois anos antes, parecia ter se efetivado com sucesso e logrado mais adeptos contra sua manutenção. Parece haver nesse momento um recrudescimento da disputa que o Estado tinha empreendido contra o poder que os indivíduos masculinos tinham desde os tempos da Colônia naquela região.

A sensibilidade do primeiro e do terceiro presidentes de província citados, sugere não só a existência de outras formas de ser masculino naquele contexto quanto também o desejo do Estado de torná-las mais difundidas entre a população. No Brasil a vontade dos responsáveis pela condução das políticas de Estado e, mesmo, por sua estruturação, de limitar o poder masculino, diferentemente de muitos países da Europa, não parece ter sido acompanhada tão de perto pela campanha médica para a desmoralização do pênis23, como o fora em muitas partes da Europa. A perseguição ao onanismo e “os cuidados com os desperdícios de sêmen” só terão alguma influência maior no Brasil em

22 Na sessão dos relatórios intitulada “Factos Notáveis” podemos ver, ainda, que o uso de armas para o suicídio e os acidentes fatais, decorrentes de seu manuseio, também eram freqüentes.

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fins do XIX, antes disso afeta apenas “uma pequena elite” (DEL PRIORI, 2006 [2005],

p.202-208). Isto não significa, no entanto, que essas teorias já não estivessem em circulação nas bibliotecas dos médicos brasileiros (Cf. ENGEL, 2008). Mas, como afirma DEL PRIORI, o que teria preponderado nas mentes dos homens oitocentistas foi “o sonho das

ereções permanentes, infatigáveis, perpétuas”, como fica evidente, segundo ela, no poema

Elixir do Pajé (1875), do próprio Bernardo Guimarães (DEL PRIORI, 2006 [2005], p.202). De fato, com ou sem o sucesso da divulgação da condenação dos “usos irresponsáveis” do pênis no Brasil do século XIX, os bacharéis e políticos dialogam com as representações sobre as masculinidades que eram produzidas na Europa, passando assim a intervir nas liberdades que caracterizavam as condutas masculinas no país desde o período colonial. Após a independência, em 1822, aumenta o número de políticos que “retiram os olhos” de Portugal e passam a tomar como referência outros países como Inglaterra, França e Prússia. O projeto da Academia de Direito de São Paulo, que se implanta em 1827, nasce

inclusive com esse espírito de “superar o passado imediatamente colonial, formando,

através do ensino jurídico, uma elite intelectual aberta à modernidade” (ADORNO, 1988,

p.95). Apesar de manter em sua primeira estrutura curricular “arcaicas noções de Direito Público Eclesiástico para ponderar as relações entre Igreja e Estado”, não deixou de trazer também “uma grande inovação” ao incluir “uma cadeira de Economia Política, no quinto ano, muito antes do que na França” (ADORNO, 1988, p.96). O estabelecimento da

Academia de Direito de São Paulo possibilitava aos estudantes, portanto, se aproximarem de novas idéias sobre o que seria a política, em oposição à antiga hegemonia “jus-

naturalista da tradição coimbrã”, com seus pressupostos universais e imutáveis – que,

ambiguamente, segundo o autor, nunca deixou, no entanto, de ter força no currículo daquela instituição ao longo de boa parte do século XIX (ADORNO, 1988, p.95).

Mas, apesar das ambigüidades e do peso da tradição, é preciso estar atento para

o fato de que “os parlamentares brasileiros” que idealizaram a proposta do curso jurídico em 1825 “– muitos dos quais haviam freqüentado universidades européias –” estavam mais

preocupados em superar uma tradição e acreditavam que na faculdade poderia se constituir

poder público”, em oposição ao personalismo característico do período anterior

(ADORNO, 1988, p.86).

A influência que a noção de “razão de Estado” passa a exercer sobre os

governantes europeus, sobretudo após o século XVIII, parece ter tido um papel fundamental para o desencadeamento das muitas mudanças que vemos se desenrolarem no século XIX e que passamos a considerar, inclusive, como características da modernidade (FOUCAULT, 2006 [1988], p.304). Se nas constituições régias de Portugal, por exemplo, durante vários séculos a religião e o Estado estiveram irmanados na manutenção do poder masculino no interior da esfera familiar, com a finalidade de se justificarem mutuamente, na forma da equivalência: Deus na religião, rei no Estado, pai na família24 (VAINFAS, 1996, p.119); com o advento e expansão da idéia de uma “razão de Estado” isso passa a não ter tanta relevância.

Como bem salienta Foucault (2006 [1988], p. 306) “a razão de Estado não remete à sabedoria de Deus, à razão, nem às estratégias do príncipe. Ela se relaciona ao Estado, à sua natureza e à sua racionalidade própria. (...) O Estado é uma coisa que existe

por si”. Assim sendo:

uma vez que o Estado é sua própria finalidade e que a finalidade exclusiva dos governos deve ser não apenas a conservação, mas também o fortalecimento permanente e o desenvolvimento das forças do Estado, fica claro que os governos não têm que se preocupar com os indivíduos; ou melhor, eles apenas têm que se preocupar com os indivíduos quando eles apresentam algum interesse para essa finalidade. (...) Do ponto de vista do Estado, o indivíduo apenas existe quando ele promove diretamente uma mudança, mesmo que mínima, no poderio do Estado, seja esta positiva ou negativa. O Estado tem que se ocupar do indivíduo apenas quando ele pode introduzir tal mudança. E tanto o Estado lhe pede para viver, trabalhar, produzir e consumir, como lhe exige morrer.

(FOUCAULT, 2006 [1988], p. 308)

Em linhas gerais o que Foucault sugere é que importa menos ao Estado se o indivíduo é do sexo masculino ou feminino, do que se ele/ela pode ser útil ou não para o

24“O reforço da família conjugal, microcélula da nação e do ecúmeno cristão, a conversão de cada pai em

monarca e „sacerdote‟ doméstico, a instrumentalização das comunidades em favor das modernas estruturas

estatais e eclesiásticas – incutindo-lhes o zelo pela “nova” pastoral – eis a estratégia político-religiosa adotada pelos poderes ocidentais. Patriarcalismo e família conjugal jamais se excluiriam, portanto, na estratégia

veiculada pelas Reformas e pelos Estados europeus [na Idade Moderna das Monarquias].” (VAINFAS, 1996,

seu desenvolvimento próprio, em comparação com os demais Estados, vistos invariavelmente, a partir dessa lógica, como rivais (FOUCAULT, 2006 [1988], p.307-308). Consideramos que essa linha de raciocínio pode nos ajudar a compreender o choque entre os interesses de alguns presidentes da província de Minas Gerais, evidenciados em seus relatórios, e alguns dos costumes descritos pelos viajantes estrangeiros que por lá passaram em suas andanças. Se as mulheres podem contribuir para o incremento do poderio do Estado, seja como mães educadas, seja como professoras, elas terão respaldo para isso; se a liberdade masculina rivaliza e enfraquece o poder do Estado, ele irá coibi-la. O Estado no século XIX, apesar de ser ainda uma instituição visivelmente masculina, já não era, no entanto, tão parcial como as antigas leis portuguesas favoráveis que eram aos homens.

Isto não impedia, entretanto, que idéias conservadoras permanecessem inclusive no interior do Estado, como as do já citado José Maria Correa de Sá e Benevides, presidente da província de Minas Gerais durante quatro meses de 1869, que não considerava, como já dissemos acima, os crimes contra a vida assim tão graves – já que na maioria das vezes seriam, em seu raciocínio, movidos por paixões nobres. Idéias como essas continuavam a povoar em alguma medida as mentes e os modos de gestão da população pelas elites brasileiras.Catedrático de Direito Natural na Academia de Direito de São Paulo entre os anos de 1877 e 1890, era monarquista resoluto:

apegado ao passado e à tradição, opunha-se ao espírito moderno, investindo contra o racionalismo e o liberalismo revolucionário. Católico convicto, sustentou seus ensinamentos no jus-naturalismo teológico. Digladiou com tudo o que fosse representativo do novo século. Torpedeou as filosofias que se orientavam sob a órbita do Iluminismo e que seduziam os acadêmicos. Não acolheu com simpatia o advento do evolucionismo spenceriano e se mostrou franco adversário do positivismo, por considerar perniciosa sua influência à sociedade e ao progresso do direito. Coerente com seus princípios filosóficos, rejeitou, em teoria política, o liberalismo, sobretudo quanto ao laicismo e à legitimidade do sufrágio universal, razão de sua fidelidade à monarquia de direito divino e de seu repúdio ao governo provisório republicano, instaurado em 1889. No mesmo sentido, nunca acolheu com bons olhos as mudanças que se processavam na organização familiar. Em matéria de vida civil, prosseguiu acreditando na inferioridade da mulher.

(ADORNO, 1988, p. 98-99)

Talvez por assumir posições tão conservadoras assumidas por Sá e Benevides é que seus cronistas e biógrafos afirmam que ele “retumbava na cátedra, mas não penetrava

os espíritos” (PORCHAT apud ADORNO, 1988, p.99), ainda que mantivesse bom transito

político, pois, afinal, chegar a ser Presidente de uma das mais importantes províncias do Império não era facultado a qualquer um. De todo modo é importante salientar que aquele tempo abrigou esse tipo de permanência na ocasião em que se desenvolve a organização do Estado brasileiro que tinha expectativas modernas.