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Capítulo II: As masculinidades em tempos de instabilidade: posicionamentos

2. O Noticiador de Minas e as masculinidades refratárias às mudanças na

2.1. Sentimentos e anseios masculinos

Os homens falam de seus sentimentos no período, mais do que imaginamos. Dedicam poesias a amigos, dizem de suas experiências, de suas angústias e também de seus anseios. A amizade masculina parece ser um ponto bastante importante segundo evidenciam os textos veiculados no jornal. Amigos escrevem para consolarem-se uns aos outros com muita frequência, com textos que guardam muita proximidade com o gênero epistolar. Escrevem também para conversarem, inclusive, sobre a condição masculina como

é o caso do texto intitulado “A virilidade: recordações da mocidade”, veiculado na edição

314 (20/05/1871), no qual um amigo relata ao outro as impressões que tem sobre o seu

processo de envelhecimento. A seguinte emenda segue o título: “Por J. M. Siqueira, ao seu

distincto amigo A. L. M. S. de Albergaria. Offerece o autor.”

O assunto da condição masculina não aparece, aliás, apenas em redações de um amigo a outro. A edição 21 (10/10/1868) traz um texto interessante sobre isso, transcrito de

um jornal do exterior de nome não citado, com o título “Desejos”. O artigo fala do que os

homens desejavam no período e do que, na verdade, deveriam desejar, segundo a moral de um antigo texto árabe que teria sido retirado de um manuscrito existente na Biblioteca de Oxford. Após expor todos os desejos citados do original árabe, J. V., o tradutor que assina o artigo, lista os desejos que ele julga serem os dos homens de seu tempo e propõe ao final uma comparação em tom bastante moralista, sugerindo a superioridade dos antigos. Dentre os desejos citados do manuscrito árabe que tomam ares de sábios conselhos, encontramos:

“- Quizera ter nascido mulher, e não homem, porque a mulher é sempre guiada,

como o cavallo, e o homem guia-se a si próprio, como o leão; resulta daqui o serem attribuidos a outrem os erros daquella, em quanto que os deste só o podem ser à sua própria vontade.

- Quizera que minha mulher fosse cega, surda e muda, para poder viver tranqüilo. - Quizera que ella fosse feia como um monstro para só a mim agradar. A verdadeira belleza está na alma.

(...)

- Quizera que cada mentira cortasse a qualquer um palmo da sua estatura; todas

as mulheres seriam pequeníssimas, viveríamos porém mais felizes.”

(Jornal O Noticiador de Minas, edição 21, 10/10/1868)

Supondo que o tal texto tenha sido de fato localizado em Oxford – uma vez que após pesquisarmos não conseguimos maiores informações a seu respeito – perguntamo-nos, então, por que, afinal, alguns homens do “iluminado e civilizado” século XIX acharam interessante recuperar falas tão rancorosas e ofensivas em relação às mulheres? Mas que mulher é essa que é preciso que se cale em pleno século XIX?

Assim como o sexo dos indivíduos começava a não ter tanta importância para a razão de Estado (FOUCAULT, 2006 [1988], p.306), desde que eles pudessem contribuir para seu desenvolvimento, isso também começava a ser flexibilizado pelo processo de industrialização do século XIX que “com seus exércitos administrativos e suas redes comerciais internacionais em expansão, descobriu que as mulheres eram cada vez mais úteis” (GAY, 1988 [1984], p.135). Acontece que, se para o Estado e para o Capital os sexos não pareciam ser assim tão importantes, para muitos homens os seus privilégios ainda eram uma questão intocável, o que não deixa de testemunhar que nem tudo relacionado a gênero tem ligação com as razões de Estado ou do Capital; as relações humanas são mais complexas do que isto. O Noticiador de Minas, traz um artigo copiado de outro periódico Novo Mundo – que foi veiculado na edição 336 (25/07/1871), único a abordar esse tema durante os quatro anos em que o acompanhamos, intitulado “A mulher como empregada

pública”, no qual o autor anônimo mostra admiração pelo modelo americano:

Poucas coisas têm-se adiantado tanto neste ultimo decennio, como a dos direitos das mulheres. Não sendo nós de opinião que é do papel das senhoras ir à sachristia da parochia rubricar-se como votante e depois disso ir fazer eleitores e deputados (e não queremos pelo próprio amor dellas), todavia, cremos que em todo paiz civilisado se deve abrir porta franca à concurrencia da mulher nos empregos e profissões para que a natureza a dotou com qualidades pelo menos iguaes ao do commum dos homens que desempenhão essas profissões.

Em 1862 não havia nos Estados-Unidos uma só mulher empregada em repartições governamentais. Nesse ano tinha já rebentado a guerra com o sul dos Estados, e o ministro da fazenda, que precisava de um grande número de empregados para contar, dividir e aparar com thesoura as pilhas de papel moeda

que então se emittirão resolveu admittir senhoras a este serviço. Então 65 foram empregadas na repartição do thesoureiro-geral, com o ordenado de 120$ por mez. Logo depois, a repartição das rendas admittio 40, e de então para cá o número tem-se augmentado muito. Hoje só no departamento do thesoureiro há 218 empregadas; no das rendas internas há 90; secção há 150 e nas outras secções do ministério há cerca de 200, fazendo um total de cerca de 700 senhoras empregadas em todo thesouro.

(Jornal O Noticiador de Minas, edição 336, 25/07/1871)

Lembramos que essa saída feminina do lar nos próprios EUA parece não ter ocorrido sem causar alguma reação masculina, a mesma que vemos grassar no nosso jornal antes mesmo que as reivindicações chegassem por aqui com a intensidade que tinham por lá – lembremos que o autor de maneira um tanto defensiva, logo de início, descarta seu apoio à concessão do direito de voto às mulheres, prevenindo-se de uma bandeira sabidamente já bastante abraçada por vários setores naquele mesmo país que ora se tomava como modelo. Em relação às lutas travadas pelos movimentos feministas na segunda metade do XIX, Peter Gay (1984 [1988], p. 144) demonstra que elas foram percebidas por vários homens nos EUA através de imagens em que se misturam as vestimentas femininas e o vento forte que pode arrastar quem estiver pela frente:

Ocasionalmente, os antifeministas em toda intensidade primitiva desistiam das pretensões humorísticas para expor o medo que o homem tinha da mulher. Num discurso que proferiu da tribuna da Câmara dos Deputados a 30 de maio de 1872, Stevenson Archer, de Maryland, advertia que “o sufrágio feminino não pode ser tolerado, apesar de ser apoiado pelo candidato republicano à vice-presidência”. O

movimento havia se tornado uma ameaça, advertia Archer; “esses inovadores” já não eram mais “meros arlequins em espartilhos”; de fato, “um exército

monstruoso está vindo ao nosso encontro – 100 mil „tufões vestidos de anáguas‟

– , e nós precisamos enfrentá-lo com firmeza para não sermos esmagados pelo

vendaval. A pequenina mulher atingiu tal tamanho e força que suas estocadas já fazem gemer o grande homem; suas unhas delicadas transformaram-se em garras de águia, que agora arrancam a carne que antes afagavam; e se o rapagão bem- disposto não se puser rapidamente em guarda, será estrangulado, derrubado e forçado a aceitar condições com as quais até pouco tempo atrás não teria nem

sonhado”. A mulher, criada por Deus para ser gentil e amável, tornara-se enorme,

dona de fortes punhos e garras afiadas, capaz de derrubar o homem e deixá-lo estatelado. O pequeno menino escondido no homem do século XIX olhava para sua poderosa e imprevisível mamãe e tinha medo.

Se compreendermos o medo e a ansiedade que essa “saída feminina oficial” parece ter causado a muitos homens do período talvez tenhamos uma melhor noção do que

significava para eles recuperar antigos textos, restos de um passado no qual os desejos de dominação masculina ainda eram não só manifestos e evidentes, mas sobretudo vistos como legítimos. O presente parecia ser para muitos deles sufocante demais.