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HISTORIOGRAFIA: VOLIÇÃO, INTERPRETAÇÃO, FRONTEIRAS

CAPÍTULO 01 – CIRCULANDO IDEIAS: UMA DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA

2.1 HISTORIOGRAFIA: VOLIÇÃO, INTERPRETAÇÃO, FRONTEIRAS

É quase marginal, pelo menos para alguns que se dedicam a fazer ciência, as questões que permeiam os processos de escrita/manifestação acerca da história da ciência e, mais ainda, sobre os estudos que se debruçam sobre estas construções, neste caso, a filosofia da ciência. Os vieses políticos, sempre presentes, embora - principalmente no que tange à ciência - não raro negligenciados; as distintas formações daqueles que se propõem a este trabalho, aí englobando historiadores, filósofos, cientistas,...; os objetivos das pesquisas; os diferentes

loci, objetos e sujeitos de estudo, são alguns dos aspectos que configuram e moldam as

pesquisas neste campo, direcionando-as.

Pretensamente secundarizadas, por vezes e para alguns, como já dissemos; mas, necessárias, certamente. Por isto, nesta seção, procuraremos tecer algumas discussões que, longe de seu esgotamento, são/estão atuais na área e, ademais, sustentam teoricamente nossa pesquisa.

Sendo assim, parece-nos importante iniciarmos por uma demarcação de território, diferenciando o que é da historiografia da ciência daquilo que constitui a sua história propriamente dita. Apoiados em Martins (2004) e D’Ambrósio (2004), de forma direta e simplificada, podemos dizer que a historiografia refere-se ao agrupamento dos registros, interpretações e análises, ou seja, à produção/reflexão do historiador sobre os acontecimentos do passado e a história ao conjunto das situações e ocorrências pertencentes a uma época e a uma região, aos fatos em si.

No que tange especificamente à historiografia da química, temos um ponto fulcral. Primeiro, aquela produzida pelos próprios químicos “onde a narração do passado era tanto o manifesto de uma ciência segura de si mesma e da sua identidade como do seu sucesso” (BENSAUDE-VINCENT e STENGERS, 1992, p. 9), e isto não se configurava apenas em particularidade da química, mas das ciências em geral, uma vez que

este [...] tipo de história da ciência que existe há cerca de 200 anos, em que cientistas profissionais escrevem acerca da história da matéria que lhes interessa e em relação ao estado atual do seu desenvolvimento [onde] a grande maioria dessas obras ignorava quase na sua totalidade (e ignora ainda) a perspectiva histórica, concentrando-se unilateralmente na prossecução de uma exposição especializada precisa (KRAGH, 2001, p. 9);

depois, a dos historiadores profissionais, onde a partir da retirada “de certos lugares comuns [...] acabaram as certezas tranquilas sobre as origens da química, [...] as [suas] fronteiras

tornaram-se mais tênues, móveis e permeáveis” (BENSAUDE-VINCENT e STENGERS, 1992, p. 9). Além disso, fatores pertinentes à expertise daqueles que se propõem a tal monta, ou seja, refletir sobre a história da ciência, ajudam a desvelar as tessituras de sua historiografia, explicitando seus diferentes critérios e motivações, além dos inúmeros parâmetros históricos, epistemológicos, lógicos, antropológicos, científicos, linguísticos e, até mesmo, artísticos que a configuram (ALFONSO-GOLDFARB e BELTRAN, 2004). E isto é fundamental para que saibamos de que “história”, ou melhor, sob qual prisma estamos olhando para determinado fato histórico, o que inclui, como podemos pressupor, a própria delimitação do fato em si.

Em tempo, é bom ressaltarmos que não estamos aqui defendendo que a historiografia da ciência deva ser objeto de estudo deste ou daquele sujeito, apenas que há diferenças quando objetivada por um ou por outro. As diferenças, obviamente, não se restringem somente a esta condição.

Atrelados a este “olhar estilizado”- para fazermos uso aqui de uma expressão cara a Fleck - estão, como já mencionamos, as motivações que levam o pesquisador em história da ciência a realizar seu trabalho, além das relações por ele estabelecidas, das convicções assumidas, dos interesses defendidos (mesmo que muitas vezes deliberadamente não admitidos e, pior, por vezes, sequer compreendidos por aqueles que se destinam a esse fim), tudo isto materializado em sua produção sobre HC, ou seja, nas suas diferentes (por tudo isto) historiografias.

Devido à importância para a continuação de nossas reflexões, abrimos agora um parêntese para situarmos no espaço-tempo as “origens” daquilo a que nos referimos como história da ciência e daquilo a que aludimos como historiografia da ciência.

Primeiramente, no que tange à história da química, apoiados em Maar (1999), muitas das práticas que hoje fazem parte do arcabouço da química, como o trabalho com metais, alguns processos de coloração de vidros e cerâmicas, a busca da cura dos doentes, enfim, a química como “arte”, pode ter suas origens remontadas há pelo menos 7.000 anos entre os egípcios e os povos da Mesopotâmia. Ainda, para este autor, a química como “ciência racionalmente organizada e sistematizada” teria surgido no século XVII, com a alquimia, onde citando Andreas Libavius (1550-1616), no seu “Alquimia”, de 1597, a alquimia teria sido definida como “a arte de produzir reagentes e extrair essências puras de misturas”. Por fim, a chamada “química moderna” remonta, ainda de acordo com Maar (1999), ao século XVIII, onde passou-se a estabelecer “a relação teoria-prática”, sendo este um dos aspectos que a tornou “moderna”. Segundamente, no que alude à historiografia da ciência, de acordo

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Alfonso-Goldfarb, Ferraz e Beltran (2004, p. 15), “é durante os séculos XVI e XVII que vemos pela primeira vez um número crescente de escritos históricos nas ciências”. Neste primeiro momento a religião era um fator importante e exercia influência sobre os escritos da ciência, onde “para os seguidores de Paracelso, as verdades científicas e médicas estavam intimamente ligadas às suas convicções religiosas” (Ibid., p. 35). Já no século XVII surge um “modelo histórico diferente”, onde os filósofos iluministas viam a produção científica do medievo como improdutiva, separando, desta forma, ciência e religião. E, como já destacado, a produção sobre ciência segue sendo influenciada pelas diferentes correntes que conformaram a organização sócio-histórica no decorrer dos séculos seguintes.

Como nos é alertado por Kragh (2001), nos séculos XVII e XVIII a palavra “histórico” tinha uma conotação distinta da dos dias atuais. Naquele período “um ‘fenômeno histórico’ significava frequentemente um fenômeno factual, concreto, e uma ‘história’ meramente um relato das condições factuais, sem que fosse necessário que estas pertencessem ao passado” (KRAGH, 2001, p. 5).

Cabe-nos destacar aqui, fazendo um salto cronológico15 , 16, ainda apoiados em

Alfonso-Goldfarb, Ferraz e Beltran (2004), que foi somente nas primeiras décadas do século XX que “se deu a gestação de um espaço autônomo para a história da ciência”, inclusive com a instituição de um periódico exclusivamente dedicado à área, a revista “Isis”, fundada por George Sarton (Ibid., p. 50), além da realização da primeira conferência internacional, em Paris, em 1900, e o estabelecimento de sociedades nacionais para o estudo da história da ciência, como a Sociedade para a História da Medicina e das Ciências (Gesellschaft für

Geschichte der Medizin und der Naturwissenschaften), na Alemanha, em 1901 (KRAGH,

2001).

Impõe-se-nos neste momento questionarmos, mesmo que en passant, os porquês destas mudanças. Para tal, mais uma vez, trazemos à baila algumas das reflexões de Kragh (2001) sobre os motivos que marcaram esta renovação histórica no campo da ciência, quais foram:

[1] o reatar das atividades da história da ciência, por volta do virar do século [do séc. XIX para o XX], ficou a dever-se a novas descobertas nos campos da arqueologia,

15 Justificamos tal simplificação por não ser objetivo deste texto percorrer as diferentes correntes historiográficas

da ciência (mais especificamente da química) e, sim, apenas marcar sua existência e as influências por elas sofridas e suas decorrências para o entendimento da ciência em suas diferentes épocas.

16 Para os interessados em maiores detalhamentos acerca da historiografia da ciência sugerimos, como leitura de

entrada, a obra de Helge Kragh, “Introdução à Historiografia da Ciência”, referenciada, sempre que necessário, nesta tese.

antropologia e filologia. [...] [2] Um outro motivo que levou à renovação da história da ciência foi o fato de a ciência estar precisamente prestes a ser reconhecida como um importante fator histórico, mesmo por historiadores profissionais17. [...] [3] Perto

do final do século a história da ciência tornou-se objeto de um interesse crescente, em virtude do seu valor pedagógico. Muitos autores e professores advogaram a adoção de um método historicamente orientado para o estudo de disciplinas científicas (KRAGH, 2001, p. 18-19).

Ressaltamos, todavia, que estes são apenas alguns marcos tomados como pontos de organização e didaticidade para uma abordagem historiográfica da ciência/química, não se constituindo jamais, pelo menos na nossa óptica, como balizas fixas que, perigosamente, podem tornar-se fontes de parametrizações para abordagens continuístas e anacrônicas acerca da HC.

Fechando o parêntese, retomemos a perspectiva da abordagem historiográfica em voga no início do século XX e defendida por George Sarton, a chamada perspectiva continuísta. De acordo com esse enquadramento a ciência caminharia numa espécie de esteira, com uma única e verdadeira perspectiva de desenvolvimento cumulativo, sendo, por vezes, atrasada por alguns percalços. Além destas questões “esse era um modelo intrinsecamente anacrônico, que pressupunha todo o conhecimento passado objetivando o presente e, portanto, criava uma interminável linhagem de ‘precursores’ ou ‘pais’ da ciência” (ALFONSO-GOLDFARB, FERRAZ e BELTRAN, 2004, p. 51).

No entanto, nas décadas seguintes (meados do século XX) começou-se a questionar esta perspectiva e passou-se a aceitar que a ciência também era influenciada por fatores externos a ela. Começava, portanto, a surgir uma nova historiografia, a partir de uma perspectiva descontinuísta, que vem se desenvolvendo até hoje. De acordo com as autoras supracitadas nesta nova historiografia

a tônica [...] recai inicialmente sobre a especificidade de casos e documentos – suas fontes, suas singularidades, seus vínculos e ecos locais – para, só depois, traçar as relações destes com um contexto mais amplo. Trata-se de uma análise de mão dupla, que perpassa as diversas camadas de texto e contexto. Sua realização vem utilizando elementos de filologia, arqueologia, semiótica, antropologia, das histórias do livro e das artes e ofícios, além das já tradicionais histórias da cultura, do pensamento, da sociopolítica. Desta maneira, tem-se formado um mapa temporal da ciência, extremamente complexo, em que convivem rupturas e permanências, e em que é possível estabelecer pressupostos que extrapolam os modelos historiográficos convencionais (ALFONSO-GOLDFARB, FERRAZ e BELTRAN, 2004, p. 55).

17 Convém ressaltar que no final do século XIX havia uma tendência entre alguns cientistas a dar ênfase ao

método científico, em detrimento dos métodos em vigor nas humanidades, incluindo a história, tida para estes como burguesa, com enfoque em reis, guerras e diplomacia. Esta situação gerou forte reação por parte dos historiadores profissionais, fato que contribuiu para que estes últimos, em sua maioria, ignorassem a história da ciência e da cultura. Em alternativa, esses campos foram deixados a cientistas e historiadores amadores (KRAGH, 2001, p. 15).

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Com esta breve pincelada sobre duas das perspectivas historiográficas que dominaram o século XX e fazem eco ainda nas discussões de nossos dias (notadamente a última), pretendemos demonstrar como estas questões de caráter epistemológico delimitam os entendimentos concernentes à ciência, conformando-a. Reflexos que, obviamente, imprimem suas marcas nas diferentes esferas da ciência e da sociedade de uma maneira geral.

Na medida em que nos propomos a fazer um recorte e uma “outra” leitura acerca das discussões historiográficas realizadas por pesquisadores que se dedicam ao estudo da história e filosofia da ciência na perspectiva do ensino de química, devemos tomar alguns cuidados, evitando, desta forma, que caiamos em algumas das armadilhas anteriormente mencionadas.

Feitas estas breves considerações introdutórias de caráter mais epistemológico, passaremos, na próxima seção, a dedicar-nos um pouco sobre aquelas de cunho pragmático, como as que dizem respeito ao lugar ocupado pela HFC no ensino de ciências.

2.2 HISTÓRIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E ENSINO DE CIÊNCIAS: POR ONDE