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OUTROS APONTAMENTOS TEÓRICOS: RUMO AO PROCESSO DE ANÁLISE

CAPÍTULO 01 – CIRCULANDO IDEIAS: UMA DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA

3.2 OUTROS APONTAMENTOS TEÓRICOS: RUMO AO PROCESSO DE ANÁLISE

A AD tem vinculações teóricas com o marxismo, a linguística e a psicanálise. A situação é que a relação entre estas disciplinas - no processo constitutivo da AD e de como no seu interior são tratadas/reconfiguradas questões advindas do seio daquelas – não se dá na perspectiva da interdisciplinaridade, mas sim da contradição (ORLANDI, 2004). Não há uma apropriação conjunta dos entendimentos de cada disciplina no intuito da construção de novos significados, mas sim, criticamente, a AD confronta os conceitos das disciplinas que lhe serviram de base constitutiva.

Desta forma, a AD não é a simples soma de cada uma das disciplinas, tampouco trabalha as suas questões sob as mesmas bases. Embora seja tributária de alguns dos preceitos daquelas, muitas vezes estabelecendo novos ordenamentos teóricos, mas que jamais seriam admitidos na simples confluência teórica daqueles campos. Por isso, disciplina de entremeio.

Partindo-se deste entendimento, para exemplificarmos, uma questão cara à AD é aquela que relaciona a linguagem à sua exterioridade. É importante ressaltarmos que a linguística não considera esta exterioridade da linguagem. Temos aí uma contradição: a AD tendo vinculação forte com a linguística tem como uma sua questão-chave algo que a linguística ignora. Nas palavras de Orlandi (2004, p. 25):

Eu diria, antes, que a AD é uma espécie de antidisciplina, uma desdisciplina, que vai colocar questões da linguística no campo de sua constituição, interpelando-a pela historicidade que ela [a linguística] apaga do mesmo modo que coloca questões para as ciências sociais em seus fundamentos, interrogando a transparência da linguagem a qual elas [as ciências sociais] se assentam.

É importante frisarmos que a AD tem como um de seus pressupostos fundamentais a não transparência da linguagem.

Aproveitando-nos destes exemplos, faremos algumas colocações acerca da linguagem e sua exterioridade, as suas relações com a ideologia, a constituição do sujeito e dos sentidos: entendimentos essenciais para que sigamos adiante, além do que, intimamente relacionados à noção da AD como disciplina de entremeio. Antes de tudo, ainda, precisamos sublinhar a razão de ser da AD.

Podemos então dizer, pelas palavras de Orlandi (2005, p. 26, nosso grifo) que, “em suma, a Análise de Discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico [compreendido por enunciados, textos, pinturas, músicas, etc] produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos”. Mas, para um melhor entendimento destas

questões, é interessante chamarmos a atenção para a distinção entre inteligibilidade, interpretação e compreensão, pois conforme Orlandi:

a inteligibilidade refere o sentido à língua [...]. Basta saber português para que o enunciado [‘ele disse isso’] seja inteligível. [...] A interpretação é o sentido pensando-se o co-texto (as outras frases do texto) e o contexto imediato. [...] [Sendo assim], quando se interpreta já se está preso em um sentido. A compreensão procura a explicitação dos processos de significação presentes no texto e permite que se possam ‘escutar’ outros sentidos que ali estão, compreendendo como eles se constituem (Ibid., p. 26).

Desta forma, justificamos, em parte, o título deste capítulo. Ademais, a AD procura explicitar como se organizam/produzem alguns dos gestos de interpretação sobre um corpus discursivo (uma vez que tais gestos sempre podem ser outros, todavia não quaisquer uns) para, a partir disto, constituir novas práticas de leitura. E isto tudo está diretamente vinculado a não transparência da linguagem, à espessura do texto, à historicidade constitutiva dos sentidos, à ideologia que interpela os indivíduos em sujeitos, enfim, ao processo de constituição dinâmica dos discursos enquanto “palavras em movimento”.

Retomemos, por ora, a questão da exterioridade da linguagem e sua relação com o sujeito, devido à sua centralidade no processo de constituição de sentidos. Sendo assim, conforme nos assevera Orlandi (2004, p. 27, nosso grifo), “o sentido, para a AD, não está já fixado a priori como essência das palavras, nem tampouco pode ser qualquer um: há a

determinação histórica”. E, ainda, complementa a autora: “a linguagem só faz sentido porque

se inscreve na história (ORLANDI, 2005, p. 18). História como exterioridade constitutiva da linguagem para a AD.

No que se refere ao sujeito (em sua interpelação pela ideologia), este, na AD, não é considerado “a origem”, “o centro” (o sujeito é descentrado), mas sim como um sujeito social, tomado na relação com a linguagem (historicamente constituída), com a ideologia que o assujeitou e mesmo com a psicanálise, através “do deslocamento da noção de homem para a de sujeito”, conforme Orlandi (2005, p. 19).

Feitas estas considerações iniciais que procuraram, minimamente, trazer à baila algumas posições constitutivas da AD, é chegada a hora de lançarmos o questionamento: por onde começaremos a análise?

Tomemos, de efeito, a seguinte compreensão: a AD não é uma metodologia, no sentido de um roteiro predeterminado de análise. Ela se estrutura em seu funcionamento frente ao próprio corpus analítico, já constituído pela sua intervenção teórica na busca da construção de um dispositivo de interpretação. No rito do processo de análise não há, em

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essência, a segregação do objeto de análise do instrumento de análise. Estes “objetos” e “instrumentos” (mesmo que assim o pudéssemos denominá-los, e não podemos!) formariam um amálgama inseparável. Desta forma, portanto, a AD não se constitui como uma metodologia, mas sim, de acordo com Verli Petri (notas de aula deste pesquisador), como uma “teoria da interpretação”.

A respeito do trabalho do analista, por assim dizer, podemos, resumidamente, apreendê-lo a partir da observação das condições de produção, onde, nas palavras de Orlandi (2005, p. 40), “as condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário”. O mecanismo imaginário, por sua vez, está relacionado às imagens que resultam de projeções a partir do lugar do qual um sujeito fala (p. ex., um professor em sala de aula). Não nos referimos aqui ao sujeito físico, mas sim, ressaltamos, à posição ocupada pelo sujeito no seio de uma conjuntura sócio-histórica. “Esses mecanismos de funcionamento do discurso repousam no que chamamos de formações imaginárias” (Ibid., p. 40, nosso grifo).

Tais condições de produção, por sua vez, não dissociadas do funcionamento da memória. Sublinhamos que a memória na AD está intrinsecamente vinculada à noção de interdiscurso, como o lugar onde “o saber discursivo faz com que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se constitui pelo já-dito que possibilita todo dizer” (ACHARD et al., 2015, p. 58). Importante lembrarmos ainda, conforme destaca Indursky (2011, p. 70-71), que

o sujeito, ao produzir seu discurso, o realiza sob o regime da repetibilidade, mas o faz afetado pelo esquecimento, na crença de ser a origem daquele saber. Por conseguinte, a memória de que se ocupa a AD não é de natureza cognitiva, nem psicologizante. A memória, neste domínio de conhecimento, é social. E é a noção de

regularização que dá conta desta memória [...] mesmo que esta se apresente ao

sujeito do discurso revestida da ordem do não-sabido.

O trabalho do analista, ainda, “deve remeter o dizer a uma formação discursiva (e não outra) para compreender o sentido do que ali está dito” (ORLANDI, 2005, p. 45). Eis um possível ponto de chegada: margear uma (pelo menos) possível FD a partir do arquivo estabelecido nesta pesquisa.

No desenvolvimento desta tese pretendemos, inicialmente - a partir de determinadas marcas advindas da superfície do texto, como citações a outros autores, remissões, usos de metáforas, paráfrases e outros recursos de linguagem – problematizar/ampliar/discutir certas

regularidades constitutivas de um possível EP, a partir de algumas sequências discursivas retiradas dos artigos científicos que, inicialmente, compõem nosso arquivo. A partir, então, desta tomada de posição, enquanto sujeitos-pesquisadores, começaremos a discutir possíveis gestos de interpretação no interior desta pretensa FD, onde, como já sabemos, os sentidos podem ser uns, mas não outros. Sentidos que, pressupomos, se “materializarão” a partir das relações teoria/procedimento analítico, tomando-se como ponto de partida a materialidade36 escrita dos artigos científicos selecionados como constituintes de nosso arquivo.

Neste processo analítico, ainda, segundo Pêcheux, algumas exigências devem ser observadas:

1. A primeira exigência consiste em dar o primado aos gestos de descrição das materialidades discursivas. Uma descrição, nesta perspectiva, não é uma apreensão fenomenológica ou hermenêutica na qual descrever se torna indiscernível de

interpretar.

2. A consequência do que precede [na exigência 1] é que toda descrição [...] está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro [e isto dá lugar à interpretação]. É neste espaço que pretende trabalhar a análise de discurso.

3. Este ponto desemboca sobre a questão final da discursividade como estrutura ou acontecimento [uma vez que] o gesto que consiste em inscrever tal discurso dado em tal série, a incorporá-lo a um ‘corpus’, corre sempre o risco de absorver o acontecimento desse discurso na estrutura da série [...]. A noção de ‘formação discursiva’ emprestada a Foucault pela análise de discurso derivou muitas vezes para a ideia de uma máquina discursiva de assujeitamento dotada de uma estrutura semiótica interna e por isso mesmo voltada à repetição: no limite, esta concepção estrutural da discursividade desembocaria em um apagamento do acontecimento, através de sua absorção em uma sobreinterpretação antecipadora (PÊCHEUX, 1990, p. 50-56).

Destarte, ainda como nos indica Pêcheux, a posição de trabalho do analista de discurso “supõe somente que, através das descrições regulares de montagens discursivas, se possa detectar os momentos de interpretação, enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais [...]” (Ibid., 1990, p. 57).

Sendo assim, trabalhando nos limites daquilo que está regulado, sob certo aspecto sedimentado, ou seja, da memória, onde o interdiscurso irrompe (pela manifestação de um discurso transverso, por exemplo), materializado em processos parafrásticos, pretendemos apreender algo do que é (está) regular na estruturação dos escritos colocados por seus autores (pesquisadores) nos arquivos por nós analisados. Ao mesmo tempo, ou melhor, a partir desta regularidade apreendida e por nós explicitada (sempre lembrando que poderia ser outra),

36 Aqui referimo-nos à materialidade textual, obviamente diversa daquela discursiva, entendida, nas palavras de

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derivaremos para a seara dos processos polissêmicos, lá onde os sentidos sempre podem ser outros (mas não quaisquer uns). Itinerário a ser percorrido na busca da apreensão dos processos discursivos.

Durante a consecução do mecanismo de análise, acreditamos, este processo far-se-á mais claro no intuito final desta tese que é, a partir do trabalho de descrição/explicitação interpretativa (compreensão) realizado sobre o corpus, demonstrarmos a materialidade de um possível EP na ciência, a partir da análise do discurso científico erigido no processo de circulação de ideias entre os portadores deste estilo, sob certo aspecto caracterizando-o. E é por tudo isto que, pressupomos, a teoria sociológica de Fleck enrobustecida pela teoria materialista da AD (sem negligenciarmos as incongruências que poderiam, sem o devido esforço, inviabilizar uma arquitetura teórica conjecturada entre ambas) pode-nos permitir atingirmos nossos objetivos.

Para tanto, apresentamos e discutimos no próximo capítulo os caminhos e as escolhas feitas nesta pesquisa que, esperamos, nos guiarão na busca por respostas às questões aqui levantadas.

CAPÍTULO 04 – PERCORRENDO UM CAMINHO: SOBRE OS ASPECTOS