• Nenhum resultado encontrado

INCOMENSURABILIDADE E TRÁFEGO DE PENSAMENTOS

CAPÍTULO 01 – CIRCULANDO IDEIAS: UMA DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA

1.3 INCOMENSURABILIDADE E TRÁFEGO DE PENSAMENTOS

A dinâmica do processo de entendimento da ciência proposta por Fleck tem seu cerne no tráfego de pensamentos ou ideias. Através dele concepções são cristalizadas, leigos são formados no interior do CP, ideias novas começam a reverberar em seu fluxo: movimentos que ora tendem à estabilidade ora à mudança são observados. É sobre esta dinâmica, especificamente sobre os processos de circulação de ideias na ciência e seus desdobramentos, que discutiremos a partir de agora.

Fleck afirma que um consenso entre adeptos de EPs diferentes é impossível, sendo que “quanto maior a diferença entre dois estilos de pensamento, tanto menor o tráfego de pensamentos” (FLECK, 2010, p. 160). Os sentidos são outros, os fatos percebidos são distintos, os interesses não são os mesmos e os caminhos trilhados para a consecução destes, muitas vezes, não convergem.

Especificamente no que concerne à ciência, foco do nosso interesse, Fleck a classifica em ciência popular e ciência especializada. A primeira, segundo o epistemólogo, traz conotações de certeza, simplicidade, plasticidade e é apodítica. Já a segunda, exige um resumo crítico num sistema ordenado. Ainda, de acordo com o autor, a ciência é expressa em três tipos de bibliografias, onde se constitui e se dá sua circulação: ciência dos periódicos,

ciência dos manuais e ciência dos livros didáticos.

Em cada um de seus meios de circulação, a ciência apresenta características específicas, tanto no seu modo de expressão quanto nos seus objetivos. Assim, a ciência dos livros didáticos tem um caráter introdutório, sendo muitas vezes pictórica, plástica e com apelo popular. Já a ciência dos manuais tem o patamar de ciência consolidada, impessoal, funcionando como uma espécie de carta magna para determinado coletivo. Por fim, a ciência dos periódicos (nosso objeto de estudo nesta tese) tem o cunho de ser pessoal, que precisa ser verificada e aceita, caracterizada por um tom provisório, estando na vanguarda.

A escolha, no âmbito desta pesquisa, por abordar a ciência que circula nos periódicos se dá pelo fato de ser nesta esfera que ocorre, de forma mais intensa, a circulação intraesotérica de ideias e pensamentos. Ademais, são os portadores do estilo de determinado coletivo (os especialistas) que, buscando cada vez mais consolidar o referido estilo, podem, muitas vezes, chegar a exceções não explicadas dentro do próprio CP. Ainda, há a necessidade de reconhecimento pelos pares, sem jamais esquecer-nos dos “dogmas” prescritos pelos manuais: é neste universo dinâmico que vão se construindo/desconstruindo os sentidos

50

de cada ciência. Portanto, lugar de disputas, terreno movediço onde se equilibram débeis “verdades” que ainda buscam a chancela dos especialistas. Lócus deste estudo.

A constituição dos sentidos, não nos esqueçamos, é, também, sobremaneira, afetada pela circulação intercoletiva. Conforme destaca Carneiro (2012), determinado EP tende a perceber as questões oriundas de outro EP como sendo místicas ou sem validade. Há uma evidente dificuldade de tradução, pois mesmo para aqueles estilos que se utilizam de terminologias próximas, os sentidos podem ser outros. No extremo, teríamos o problema da incomensurabilidade.

Ora, mais o que é mesmo a incomensurabilidade? Em síntese, de acordo com Abbagnano (2012, p. 631), é a “inexistência de padrões objetivos (lógicos ou empíricos) por meio dos quais se possa avaliar comparativamente doutrinas diferentes [...]”. Em suma, se cada EP, a partir de sua atmosfera (Stimmung) específica, estabelece padrões singulares de percepção da realidade, moldando o fato (científico) a ser concebido e determinando alguns (mas não quaisquer uns) sentidos possíveis, questionamos: qual o parâmetro fixo de comparação entre os diferentes EPs? Nenhum é a resposta. Eis a incomensurabilidade.

Toda esta questão, como destaca Carneiro (2012), está assentada no “fenômeno da intradutibilidade”, pois não há como fazer uma relação termo a termo no que tange a estilos de pensamento distintos.

De suma importância para o andamento das análises que propomos fazer neste estudo é a distinção entre os entendimentos acerca dos fenômenos da tradução e da interpretação. O primeiro, como já aludido, pode ser diretamente vinculado às questões da incomensurabilidade (uma vez que não há qualquer possibilidade de univocidade de sentidos, ou de manutenção do sentido entre EPs distintos e, em grau diferente, no interior do mesmo EP14). O segundo, ao que parece, no âmbito da teoria de Fleck, pode falar às questões relacionais, trazendo para o bojo do ato interpretativo em si, o contexto sócio-histórico (mas sempre conforme ao estilo, estabelecendo-se um outro sentido possível). Ressaltamos ser esta questão de extrema importância como justificativa para a abordagem histórica da ciência: outro objetivo desta tese.

14 Pois, como veremos no capítulo 03, para Pêcheux, “o discurso é efeito de sentidos entre locutores”, não

havendo, portanto, o sentido único. Acrescentaríamos, neste momento, que quando participam do mesmo círculo de um mesmo CP, tais interlocutores aproximam-se mais em suas configurações de percepção da realidade, podendo, desta forma, tornarem os sentidos mais próximos. Caso participem de coletivos muito distintos, os sentidos constituídos por cada um nesta interlocução serão, de maneira bastante provável, muito diversos.

Não confundamos, em tempo, a dimensão relacional da teoria comparada do conhecimento de Fleck (já anteriormente abordada na seção 1.1) com este aspecto derivado do problema da incomensurabilidade. Naquela, as questões relativas à constituição social e ao referenciamento histórico do coletivo é que falam alto, neste último, é a comparação mesma entre as concepções oriundas dos diferentes EPs que é o foco.

Por tudo isto, Fleck alude em seus escritos ao fato de que é muito mais comum uma mesma pessoa fazer parte de coletivos muito divergentes do que de coletivos muito afins, pela simples razão de que quando os estilos são muito diferentes estes podem manter seu caráter fechado no mesmo indivíduo. Quando os estilos são afins, surgem atritos que tornam a convivência no interior do mesmo indivíduo bastante difícil, “condenando-o à improdutividade ou à criação de um estilo peculiar limítrofe” (FLECK, 2010, p. 162).

Feitas estas reflexões acerca do fundamento epistemológico que guiará este estudo, passaremos, no capítulo seguinte, a considerar algumas das questões que conformarão teoricamente o arquivo que estamos nos propondo a analisar: a produção teórica (artigos científicos) de alguns membros especialistas do possível EP formado por pesquisadores/autores/professores que trabalham com história e filosofia da ciência na perspectiva do ensino-aprendizagem de química.

CAPÍTULO 02 – MARGEANDO UM CORPUS PARA ANÁLISE: HISTÓRIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E ENSINO DE CIÊNCIAS

Não concordo com os que relegam a História das Ciências a simples fontes de valores emotivos ou gratuita curiosidade intelectual para as horas de repouso. Estou entre os que defendem o extraordinário valor

pedagógico, o grande significado cultural e o relevante alcance epistemológico da História das Ciências.

Attico Chassot

O nosso esforço, ratificamos, concentra-se na proposta de percorrer um (assim mesmo, com artigo indefinido, pois poderiam ser outros) caminho que possibilite discutirmos questões que aludam/derivem aos/dos processos de circulação de ideias na ciência e, como consequência, a constituição de alguns sentidos.

Para tal, escolhemos a história e filosofia da ciência. Esta escolha deveu-se a convicções deste pesquisador - inclusive as de cunho político-ideológico - além da percepção (até o início desta pesquisa puramente intuitiva) de ser esta uma área de fronteira entre dois mundos, ou duas culturas (a científica e a humanística), para usar a expressão consagrada de Charles Snow (1995) que, por isso, pode levar-nos (nossa pesquisa) a transitar por outras searas (o não entendimento entre elas), às vezes, escamoteadamente ignoradas, tampouco de menor relevância. Espécies de “ruídos de fundo” que podem causar (ou ser consequência de) vários desdobramentos. Não nos esqueçamos, afinal, que estamos trabalhando com história e filosofia (humanidades) no ensino (fronteira entre ambas, neste caso) de química (“ciência dura”).

Sendo assim, iniciaremos o capítulo chamando atenção para a importância das questões que dizem respeito à historiografia: seus vieses, os interesses em jogo (nem sempre claramente acessíveis), enfim, os desdobramentos intrínsecos às maneiras pelas quais uma história nos é apresentada. Na sequência faremos uma breve incursão sobre “o estado das coisas”, apontando e discutindo brevemente posições favoráveis e contrárias ao uso da HFC nas salas de aula de ciências; após, algumas questões concernentes à natureza da ciência e, por fim, uma pincelada sobre algumas propostas que vêm sendo efetivadas por pesquisadores da área no Brasil.

Ressaltamos que não é objetivo deste capítulo (e desta tese) exaurir qualquer discussão em torno da HFC, uma vez que como o próprio título do capítulo remete, estamos, neste momento, procurando configurar, ou melhor, caracterizar um corpus para análise.

54