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HOMENS VESTIDOS DE MULHERES? AS PERCEPÇÕES SOBRE AS ÚNICAS DRAG QUEENS DO PAÍS

Capítulo 2: Percepções sobre a homossexualidade em Moçambique

2.4 HOMENS VESTIDOS DE MULHERES? AS PERCEPÇÕES SOBRE AS ÚNICAS DRAG QUEENS DO PAÍS

Paradoxalmente à rejeição que existe em Moçambique contra os homossexuais, no início dos anos dois mil, a primeira e única dupla de drag queen fez muito sucesso em um programa televisivo de show de calouros e embora não tenham vencido, passaram a receber muitos convites para fazerem shows. Pelo que pude compreender através de conversas com alguns moçambicanos, a boa aceitação da dupla se deve ao fato do desconhecimento por boa parte da audiência, da existência da figura da drag queen, e muitos pensavam se tratar de mulheres e outros acreditavam se tratar de uma brincadeira, em que homens imitavam mulheres. Meus interlocutores disseram que a dupla não foi associada à homossexualidade, principalmente entre os mais velhos e o pessoal que mora em regiões rurais, longe das “modernidades” da vida na cidade.

Já em 2013, em Maputo, muitos já sabiam se tratar de dois homossexuais, mas ainda assim, a dupla mantinha uma agenda cheia, fazendo shows em festas de casamento, festas de aniversário e onde mais fosse chamada.

Figura 17 A Esquerda La Biba, Ao Centro Danilo Silva, A Direita La Santa, outubro e dezembro de 2014, fotos Lambda

Curiosa para saber como era a recepção das pessoas em seus shows, pedi para a dupla deixar-me acompanhá-las por uma noite. Depois de várias trocas de mensagens por celular com La Biba (a qual havia me concedido uma entrevista), consegui um convite para acompanhá-las em um show dentro de uma festa de casamento, em um grande salão bem longe do centro da cidade de Maputo.

No dia combinado, eu deveria estar às dezenove horas na casa da La Biba - no Alto Maé, bairro da região central da cidade - (ela morava bem próximo ao cruzamento de duas grandes vias da cidade: Guerra Popular com a avenida Eduardo Mondlane), para seguir com ela e La Santa para mais um dia de show.

Depois de bater numa casa errada (aqui não tem iluminação no corredor na maior parte dos prédios da cidade; parece-me que não há cobrança de condomínio para isso), achei o apartamento da La Biba. Quem atendeu a porta foi um rapaz de uns 18 anos, o que me causou

surpresa, pois achei que ela morasse sozinha. Na verdade havia mais pessoas na casa, mas essas não foram ao meu encontro para se apresentarem.

O rapaz me convidou para entrar e pediu que eu esperasse em uma sala, onde havia três grandes sofás bem dispostos, mas já velhos. Ao lado da sala de visitas, havia uma sala de jantar, bem arrumada, com móveis antigos, combinando com os da sala onde eu estava.

Esperei por alguns minutos, até que La Biba apareceu, coberta com um roupão de cetim rosa (pink) com bordas azul claro. Quase não a reconheci, pois na ocasião da entrevista, ostentava um cabelo comprido, alisado e em tom avermelhado. Agora ela estava com o cabelo rente à cabeça e loiro. No rosto havia creme de barbear.

Quando me viu, La Biba ficou surpresa e disse: “Você chegou cedo!”. Não é costume em Maputo as pessoas chegarem no horário combinado, sempre há atrasos, muitas vezes de horas, para se começar algum compromisso.

Como ainda não estava pronta, La Biba sugeriu que eu desse uma volta e retornasse em meia hora. Na avenida Eduardo Mondlane resolvi entrar em uma lanchonete e comer algo. Apenas uma hora e meia depois e muitas mensagens enviadas para ela, recebi autorização para voltar ao seu apartamento para enfim irmos para o casamento.

Quando entrei novamente na rua de sua residência avistei uma drag queen mais baixa e um rapaz de uns 20 anos junto a ela. Fui logo direto e falei: La Santa? Ela sorriu surpresa e disse: “Sim?!”. Logo atrás, vinha La Biba que nos apresentou. O jovem que estavam com elas, apesar de estar com roupas masculinas e não apresentar trejeitos femininos, foi a mim apresentado como Jéssica.

O carro era de La Santa, um modelo relativamente caro, o que me sugeriu que os shows estavam dando retorno financeiro. Durante o trajeto até o local da festa, uns vinte minutos, as duas conversaram sobre muitos assuntos, algo a ver com seus círculos de amigos, enquanto ouviam a seleção de músicas que iriam dançar naquela noite.

Chegamos a um salão de festa bem sofisticado, cujo estacionamento estava lotado de carros. Enquanto descíamos do veículo, La Santa avisou pelo telefone que já estávamos no local. Foi nesse momento que percebi que não havia uma hora exata para o show e que deveríamos aguardar até aparecer uma brecha na programação do cerimonial da festa para a performance da dupla. Aos poucos começaram a aparecer muitas jovens no estacionamento, completamente absorvidas pelos últimos retoques que as artistas davam no figurino, ali mesmo no estacionamento. Depois de perder a timidez, algumas pediram para tirar fotografias

com a dupla. Ao longe, havia algumas pessoas mais velhas, mas não se aproximaram e olhavam de longe com muita curiosidade.

Finalmente o mestre de cerimônia chegou ao estacionamento para combinar a entrada da dupla e pegar o CD com as músicas para o show. La Biba pediu para um dos responsáveis pela festa, para arrumar-me um assento no salão. Gentilmente, um jovem, parente da noiva, cedeu-me sua própria cadeira, bem de frente para o palco, que ficava disposto no meio das mesas dos convidados.

O show de La Biba e La Santa foi anunciado como uma surpresa para os noivos e na primeira música entrou La Biba. De onde eu estava pude notar o olhar de surpresa de muitos. Das cadeiras algumas jovens se levantaram e aplaudiram, notei que os mais velhos não demonstraram emoção alguma, pareciam indiferentes. Entretanto, mais tarde, em outra música, vi que um deles pediu para os meninos saírem da frente, pois queria ver. Assim, se estavam gostando ou não, não é possível saber, mas estavam interessados em ver o show.

A atração durou cinco músicas, todas muito dançantes e a maioria já clássica em shows de drag queens. Eu mesma já havia visto várias apresentações com as mesmas músicas. Para impressionar a plateia, de uma música para outra, havia a troca da artista, da roupa e dos sapatos. La Biba concentra-se mais na performance da dança, enquanto La Santa enfoca mais a dublagem. Na última música as duas entram juntas no palco e executam a mesma coreografia.

De forma geral, observei muita curiosidade e animação entre os jovens, principalmente entre as moças. Entretanto, a maior parte dos convidados ficou inerte em suas cadeiras, apenas observando o show. Quase não vi comentários entre eles, embora uma jovem mãe ao meu lado, revelou-se preocupada com o efeito daquela atração na formação das crianças ali presentes.

Não ficamos nem uma hora no casamento e de lá, para minha surpresa, ainda havia outra apresentação para fazer em uma festa de aniversário, em um dos bairros mais elitizados da cidade, o Sommershield, onde mora grande parte dos estrangeiros e estão concentradas as embaixadas e as sedes de ONGs.

A festa era nos fundos de uma casa de uma família branca, que não sei se era de moçambicanos ou portugueses. O aniversariante era um senhor de meia idade e todos os convidados eram brancos e pareciam ser da família. Quando chegamos à casa, havia uma dupla de dança do ventre que iria se apresentar também, uma delas era uma brasileira que morava há anos em Maputo.

A dona da casa preferiu começar pela dupla de drag queen. Quando La Biba e La Santa saíram pela porta dos fundos da cozinha e adentraram o espaço destinado ao espetáculo, todos demonstraram muita surpresa e muitos gargalharam. Ao contrário da reação dos convidados do casamento, a reação dos convidados do aniversário, e especialmente do aniversariante, era como se lhe tivessem pregado uma peça. O show, pelo que percebi, era entendido como uma brincadeira, uma gozação com o aniversariante.

A dupla dançou quatro músicas na sequência, em meio a muitas risadas e piadas com o aniversariante, questionando a sua (falta de) virilidade, diferente da intenção dos amigos dos noivos, que queriam lhes proporcionar uma bela atração em seu casamento.

Foi uma grande oportunidade ter podido presenciar os dois shows da dupla de drag queens, sobretudo porque se tratava de dois públicos bem diferentes. No primeiro tínhamos um casamento de uma típica família de negros moçambicanos de classe média e no outro uma família de brancos (moçambicanos ou portugueses) de classe social mais abastada. Para o primeiro público esse tipo de atração artística era uma novidade, eles não sabiam bem o que pensar, como se comportar diante desse tipo de espetáculo, pois apesar de grande parte dos moçambicanos serem contrários à homossexualidade, eles não entendiam muito bem a relação entre gays e drag queen, na realidade, eles nem sabem ao certo o que são essas figuras, já que La Biba e La Santa são as primeiras e únicas no país. Já a reação do público do aniversário demonstra que eles conheciam esse tipo de espetáculo e a sua relação com o “mundo gay”. As gargalhadas e piadas corresponderam exatamente ao efeito que quem as contratou queria provocar.

2.5 A HOMOSSEXUALIDADE EM CENA: COMO FALAR DO ASSUNTO SEM “OFENDER” AS