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Discretos e declarados : uma etnografia da vida dos homossexuais em Maputo

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

FABIANA MENDES DE SOUZA

DISCRETOS E DECLARADOS: uma etnografia da vida dos homossexuais em Maputo

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, em sessão pública realizada em 21 de setembro de 2015, considerou a candidata FABIANA MENDES DE SOUZA aprovada.

Este exemplar corresponde à redação final da Tese defendida e aprovada pela Comissão Julgadora.

Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz Profa. Dra. Isadora Lins França Prof. Dr. Peter Henry Fry

Prof. Dr. Christiano Key Tambascia

Prof. Dr. Osmundo Santos de Araújo Pinho

A Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

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Às manas e às mamanas minha eterna admiração e respeito: KANIMAMBO

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Agradecimentos

Em primeiro lugar agradeço ao meu Orientador Omar Ribeiro Thomaz, com quem venho trabalhando desde 2001 e que ao longo desses anos todos tem me apoiado tanto na vida acadêmica quanto na vida pessoal.

Agradeço aos meus colegas de trabalho da Prefeitura de São Bernardo do Campo, em especial à Secretária de Habitação Tássia Regino e à Diretora de Trabalho Social Márcia Gesina de Oliveira, que autorizaram e apoiaram o meu pedido de afastamento para fazer minha pesquisa de campo em Maputo.

Agradeço, sobretudo, o apoio moral e o incentivo dos meus colegas de trabalho que sempre demonstraram interesse pela minha pesquisa e procuraram entender as minhas ausências, ajudando-me nas minhas tarefas laborais. Tenho uma dívida com Ariana Rumstain, Elisangela Galindo, Neide Barros, Rosimeire Boaventura, Marcilaine Silva, Priscila Rancan, Elaine Lazzeri, Rosana Oliveira, Camila Quinonero, Cristiane Bernardo, Sara Bernardes, Daniela Santos, Verônica Martins, Flavia Galis, Sueli Almeida, Flavia Fernandes, Marcia Hatty, Marcos Silveira, Cristiane Smith, Claudia Melo, Jeferson Yoshida, Jefferson Costa, Flavio Gerson, Daniel Andradea, Tarcísio Mussi, Rafael Giannella, Edison Kazuo, Gisele Dias, Cloves Oliveira, Ricardo Couto, Mauro Helftein, Jeferson Tavares, Wagner Andrade, Flavia Vilar, Mariam Laila, Eliana Borguini, João Bosco, Elaine Capelini, Marina Fukumoto, Cristiane Soncin, Thais Lopes, Selma Santana, Tarcílio da Silva e Paulo Massoca.

Meus especiais agradecimentos aos amigos da turma de doutorado de 2009, com os quais muito aprendi sobre antropologia e experiências de vida. Muito obrigada Cristiane Souza e Carlos Eduardo Henning, com os quais troquei muitas ideias, angústias e felicidades.

Agradeço aos professores com os quais tive o privilégio de assistir suas aulas, palestras e debates na Unicamp e na USP. Em especial Heloísa Pontes, Mauro Almeida, Mariza Corrêa, Florian Mulfried, Omar Ribeiro Thomaz, Bela Feldman-Bianco, Suely Kofes, Rita Moreli, Michel Cahen e Sérgio Miceli.

Durante o doutorado aprendi muito com colegas do Grupo de Estudos do professor Omar, sobre Territórios e Conflitos em Sociedades Pós-Coloniais: Luiz Henrique Passador, Marta Jardim, Hector Guerra e Osmundo Pinho.

Agradeço também aos funcionários do IFCH: Maria José, Márcia, Maria Rita, Cris, Benê (xerox), Deivison, Alexandre e Irene.

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Agradeço imensamente à organização do Instituto de Estudios Peruanos por ter sido selecionada para um curso em Lima, com financiamento da SEPHIS, em 2009. O curso discorreu sobre metodologias alternativas de pesquisa e foi muito importante para minha formação. Do grupo de colegas deixo meus agradecimentos à Zelinda Barros, Jadiel Diaz, Graciela Tedesco, Natalia Quiceno, Salvador Shavelzon, e Rosa Solano.

Na fase de pesquisa de campo tive a grande oportunidade de conviver e aprender mais com: Tereza Cruz e Silva, Isabel Casimiro, Teresa Cunha, Xênia Carvalho, Antônio Sopa, Vanicléia Santos, Cristina Wissembach, Joel Tembe, Chapane Mutiua e Janne Rantala.

Em Maputo devo especiais agradecimentos aos amigos que ali fiz, os quais incomodei com minhas perguntas insistentes sobre Moçambique. Meu muito obrigado para: Emanuel Meque, Etelvina Meque, Marilio Wane, Miguel Prista, Alberto Mpfumo, Joana, Dover, Aissa Mitha, Mamana Rosa, Mamana Elena, Sergio Maungue, Sergio Keita, Matanyane Abílio, Clovis Eufrásio, Augusto Guambe, Fauzia, Danilo da Silva, Jaime, Zé Maria, Sergio da Chopela. Devo o contato de meus informantes à Catarina Costa e à Selma Ricardo.

Os meus dias em Maputo seriam extremamente solitários sem a companhia e troca de ideias com Valdir Alves, Fábia Barbosa e, especialmente minha colega de casa, Marília Carneiro, com quem dividi não apenas o aluguel do espaço, mas todas as angústias, temores e descobertas que encontramos em um trabalho de campo.

No Brasil agradeço aos amigos da vida toda: Helen Mendes, Arthur Guxardi, Everaldo Perez, Pablo Silva, Michelle Redondo, Eugênio Braga, Milene Suzano, Marcos de Paula, Danilo Gaspari, Anselma Garcia, Anaisa Oliveira, Cilene Muriel, Livia Teixeira, Cladia Picoli, Fabiola Tomaz, Eni Brito, Giovana Itheodoro e Almir Aparecido.

Deixo aqui meus agradecimentos à doutora Renata Camacho, à doutora Edna Silva e à professora Rosely Tadeu, que me acolheram nos momentos de ansiedade e desespero.

Sem o apoio da minha família não teria chegado até aqui. Meus agradecimentos eternos à minha mãe Cecília Mendes, que mesmo não tendo tido a oportunidade de estudar, sempre incentivou e apoiou a minha formação acadêmica. Devo, também, ao meu irmão Marcelo e à minha sobrinha Mayara o apoio emocional importante nessa empreitada.

A Alexandre Pires meus especiais agradecimentos pelo companheirismo e apoio em todos os momentos. A ele devo todo apoio e suporte quando pensei que não conseguiria concluir esta tese, num período de profunda desespero.

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Agradeço à CAPES pela bolsa concedida no meu primeiro ano de doutorado e pela bolsa sanduíche no segundo semestre de 2013.

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Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto: Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa,. Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina. O silêncio era um carregador? Estava carregando o bêbado. Fotografei esse carregador. Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra. Fotografei a existência dela. Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça. Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski – seu criador. Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa Mais justa para cobrir sua noiva. A foto saiu legal. Manoel de Barros Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade Rubem Alves A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras. Prestar atenção ao que não foi dito, ler as entrelinhas. A atenção flutua, toca as palavras sem ser por elas enfeitiçada. Cuidado com a sedução da clareza! Cuidado com o engano do óbvio! Rubem Alves

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Resumo

O presente trabalho apresenta uma etnografia da vida de homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens na cidade de Maputo, Moçambique. A narrativa é baseada em entrevistas semiestruturadas realizadas no final do segundo semestre de 2013 e início de 2014. Os temas levantados se baseiam nas informações fornecidas pelos informantes e, de forma geral, apresentam vários aspectos da vida desses indivíduos. As conversas foram realizadas em locais públicos, porém reservados, de modo a garantir o anonimato dos entrevistados. O método utilizado para seleção de informantes foi o denominado “bola de neve”, em que um informante apresenta outro ao pesquisador e assim sucessivamente. Nessa pesquisa, utilizei duas redes de informantes, cada uma apresentada por uma amiga que fiz na cidade. Os entrevistados são, na sua maioria, jovens, de formação urbana, de média a alta escolaridade. Em geral, os homens mais velhos que fazem sexo com outros homens não se declaram como homossexuais e não tive acesso a eles. Em resumo, as entrevistas nos revelam que o interesse afetivo-sexual de um homem por outro não é bem visto pelos círculos de relacionamentos dos entrevistados, o que lhes confere uma vida social cheia de manipulação da identidade, de modo a evitar o isolamento social. A homossexualidade é vista como uma influência estrangeira, fora dos valores difundidos como “africanos”. Por fim, a pesquisa nos revelou que o modelo homossexual difundido no ocidente através da associação LGBT, bem como a homofobia são ideias de fora, herança do sistema colonial europeu.

Palavras Chave: 1. Maputo (Moçambique); 2. Homossexuais masculinos - Vida e costumes sociais; 3. Relações familiares; 4. Preconceitos

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Abstract

This work presents an Ethnography of men's life who have affective and sexual relationships with others men in Maputo, Mozambique. The narrative is based on semi-structured interviews made in the second half of 2013 and in the beginning of 2014. The raised themes are based on information provided by informants and, in general, reveal several aspects of these individuals’ life. The interviews happened in public places, reserved however, in order to assure the anonymity of respondents. The method used for selecting information was the "snowball" in which an informant introduces one person to another. So in this research, I worked with two networks of informants, each one introduced by a friend of mine from Maputo. The respondents are, in most cases, young, downtown boys and have high school level of education. In general, the older men who have sex with another men did not declare themselves as homosexuals and I couldn’t access them. In summary, the interviews reveal that affective-sexual interest a man have for another man is not well seen for society, so the respondents have to manipulate their social life and identity in order to avoid prejudices and social isolation. In Mozambique, the homosexuality is seen as a foreign influence considered opposite of “African” values. However, this work revealed that the western model of homosexuality is widespread through LGBT Association and the homophobia are real related to foreign ideas, inheritance of the colonial European system.

Keywords: 1. Maputo - (Mozambique); 2. Homosexuals male - Life and social custos; 3. Family relations; 4. Prejudices

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1 Moçambique e países vizinhos ... 15

Figura 2: Província de Maputo ... 16

Figura 3 Mercado ambulante, moradias precárias e trânsito desorganizado, Maputo, Moçambique – maio de 2011 - FMS ... 17

Figura 4 Destaque do bairro Polana cimento, outubro de 2013, FMS ... 18

Figura 5 Província de Gaza, Moçambique e a Capital Xai-Xai ... 19

Figura 6 Festa surpresa de Bodas de Ouro dos pais do Eduardo, Xai Xai, maio de 2011, FMS ... 20

Figura 7 Palestra do juiz federal brasileiro Roger Raupp Rios, dezembro de 2013, FMS ... 50

Figura 8 Imagem da plateia no primeiro dia do simpósio, dezembro de 213, FMS... 51

Figura 9 Palestra do Professor Gilles Cistac, dezembro de 2013, FMS ... 53

Figura 10 Apresentação dos relatórios finais dos estudos sobre HSH e MST, dezembro de 2013, FMS ... 54

Figura 11Sessão de cinema no CCA, dezembro de 2013, FMS ... 55

Figura 12 Discursos de abertura da sessão de cinema, no topo o embaixador estadunidense, à esquerda Danilo da Silva e à direita membros da Lambda, dezembro de 2013, FMS ... 58

Figura 13 Cartilha Guião de Orientação para pais, mães e familiares de homossexuais ... 61

Figura 14 Encarte Mitos/Fatos sobre a homossexualidade ... 62

Figura 15: Programa televisivo “Debate da Nação”, maio de 2010, canal STV, Moçambique ... 66

Figura 16 Programa Desafio Beat It, janeiro de 2011, Canal Tim, Moçambique ... 67

Figura 17 A Esquerda La Biba, Ao Centro Danilo Silva, A Direita La Santa, outubro e dezembro de 2014, fotos Lambda ... 69

Figura 18: Trabalho dito “informal”, Maputo, Moçambique, novembro de 2013, FBR... 79

Figura 19: Praia do Tofo, Inhambane, Moçambique, janeiro de 2014, FMS ... 80

Figura 20 À esquerda Bar Gil Vicente, à direita Núcleo de Arte, Maputo, Moçambique, Google imagens, acesso em agosto de 2015. ... 81

Figura 21 Diversão na Rua Dez de Novembro, Maputo, Moçambique, fonte: http://bigslam.pt/destaques/odorico-paraguacu-xipalapala-de-joao-de-sousa/ acesso em agosto de 2105 ... 81

Figura 22 No topo, festa de casamento, à esquerda almoço de Xitique e à direita comemoração de Natal, dezembro de 2013, FMS ... 83

Figura 23 Cerimônia do Lobolo, fonte: http://opatifundio.com/site/?p=3493, acesso em agosto de 2015 ... 84

Figura 24 Preparação das guarnições para a festa de casamento da família Maungue, dezembro de 2013, FMS ... 87

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: GAYS EM ÁFRICA ... 15

I - PRIMEIRA VEZ EM ÁFRICA: COMO É SER O OUTRO ... 16

II - DIFICULDADES PÓS-CAMPO E A MUDANÇA DE OBJETO DE PESQUISA ... 24

III - DA RECEPÇÃO DAS TELENOVELAS BRASILEIRAS ÀS HISTORIAS DE VIDA DE HOMOSSEXUAIS EM MAPUTO... 25

Capítulo 1: Panorama sobre relacionamento afetivo e/ou sexual entre pessoas do mesmo sexo em África ... 28

1.1 O CONTEXTO DOS ESTUDOS SOBRE HOMOSSEXUALIDADE EM ÁFRICA ... 28

1.2 A POLISSEMIA DA RELAÇÃO SEXUAL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO EM ÁFRICA ... 30

1.3 O QUE É SER GAY EM ÁFRICA? ... 42

1.4 SUPORTE DO “OCIDENTE” PARA AQUELES QUE SE CLASSIFICAM COMO HOMOSSEXUAIS E SÃO PERSEGUIDOS EM SEUS PAÍSES DE ORIGEM EM ÁFRICA ... 45

Capítulo 2: Percepções sobre a homossexualidade em Moçambique ... 47

2.1 AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE AS DEFINIÇÕES DE HOMOSSEXUALIDADE ... 47

2.2 A HOMOSSEXUALIDADE SEGUNDO A LAMBDA ... 48

2.3 A HOMOSSEXUALIDADE DE ACORDO COM A SOCIEDADE CIVIL E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO ... 65

2.4 HOMENS VESTIDOS DE MULHERES? AS PERCEPÇÕES SOBRE AS ÚNICAS DRAG QUEENS DO PAÍS ... 68

2.5 A HOMOSSEXUALIDADE EM CENA: COMO FALAR DO ASSUNTO SEM “OFENDER” AS SENSIBILIDADES ... 72

2.6 O QUE OS ACADÊMICOS TÊM A DIZER SOBRE HOMOSSEXUALIDADE NO PAÍS ... 73

Capítulo 3: Modelos de Sexualidade e Práticas Sexuais em Maputo: o caso dos homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens ... 78

3.1 MAPUTO: UMA CIDADE MANINGUE NICE ... 78

3.2 VIDA AFETIVO-SEXUAL EM MAPUTO ... 84

3.3 RELACIONAMENTOS DE AMIZADE HOMOAFETIVOS ... 86

3.4 RELAÇÕES AFETIVO-SEXUAIS ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO ... 88

3.4.1 Onde estão os gays? ... 89

3.4.2 Construção de Identidades: vida afetivo-sexual, família e religião ... 91

3.4.3 A casa, a rua e a construção da violência pedagógica ... 100

3.4.4 Espaços de Sociabilidade e Associativismo: entretenimento, lazer, redes sociais e paqueras 101 3.4.5 Constrangimentos e vontade de fugir ... 108

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ... 111

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II. A IDEIA DE IDENTIDADE SEXUAL DOS MOVIMENTOS LGBT VERSUS A NOÇÃO DE PESSOA E DE

FAMÍLIA ENTRE OS AFRICANOS ... 113

III. NOÇÃO DE PESSOA AFRICANA, MODELOS DE HOMOSSEXUALIDADES E A VIDA COTIDIANA EM MAPUTO ... 114

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 118

ANEXOS ... 125

ANEXO 1: LGBTI - MINI GLOSSARIO ABC ... 126

ANEXO 2: GUIÃO DE ORIENTAÇÃO PARA PAIS, MÃES E FAMILIARES DE HOMOSSEXUAIS ... 128

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APRESENTAÇÃO: GAYS EM ÁFRICA

No presente trabalho proponho a realização de uma primeira aproximação etnográfica de um coletivo relativamente desconhecido, o qual não é visto necessariamente como tal: indivíduos que se definem como homossexuais1 – homens que preferem ter relações sexuais

com homens e mulheres que preferem ter relações sexuais com mulheres – da cidade de Maputo, capital de Moçambique, país da África Austral.

Figura 1 Moçambique e países vizinhos

Realizei uma pesquisa de campo de cinco meses em Maputo2, período em que

procurei, em primeiro lugar, conhecer minimamente a cidade e sua dinâmica cotidiana para, em segundo lugar, conhecer pessoas e identificar suas principais formas de relacionamento entre si. Por fim, encontrei aquelas que se definiam como homossexuais e com elas estabeleci diálogo e frequentei os seus espaços de sociabilidade. Convivi com meus interlocutores em festas, bares, shows, almoços e jantares em casas de famílias.

1 No final dos anos 80, Diane Richardson (1983), fez uma importante distinção entre o que seriam

atos homossexuais, identidades homossexuais e estilos de vida homossexuais, de modo que a identidade sexual de um indivíduo deveria ser diferenciada entre a orientação quanto ao papel sexual e orientação sexual. Nesse trabalho, tratarei das histórias de vida de indivíduos que se classificam como homossexuais, independente dos seus atos e práticas sexuais e se mantêm ou não um estilo de vida homossexual.

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Figura 2: Província de Maputo

Nas linhas que se seguem procuro descrever o percurso da construção do objeto da pesquisa, bem como explicitar as dificuldades encontradas para realizá-la. Em seguida, apresento, de forma sucinta, o conteúdo de cada parte que compõe esta tese, de modo a orientar o leitor na compreensão da lógica utilizada no trabalho.

I - PRIMEIRA VEZ EM ÁFRICA: COMO É SER O OUTRO

Em maio de 2011 fiz minha primeira viagem ao continente africano, no intuito de fazer um pré-campo, levantar as primeiras informações sobre meu tema de pesquisa, que na época era a recepção de telenovelas brasileiras em Maputo, e, sobretudo, estabelecer contatos com possíveis interlocutores para meu trabalho de campo que seria realizado no ano seguinte.

Hospedei-me na casa de uma senhora divorciada que alugava quartos para jovens, lugar este em que outros colegas brasileiros já haviam se hospedado. Como era minha primeira vez em África e tudo era novidade para mim, do caminho do aeroporto para a casa da minha senhoria, olhava avidamente para todos os lados, na ânsia de não perder um só

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detalhe. Tentava registrar com meus olhos todas as imagens que via. Lembro-me que fiquei um pouco decepcionada a princípio, pois não via tanta novidade como gostaria. Passava pelas ruas que ligam o aeroporto ao bairro onde iria ficar por um mês e experimentei uma sensação de familiaridade naquilo que observava: casas precárias, viário mal sinalizado, com um tráfego intenso de carros e um sem número de comércios informais à margem das ruas.

Figura 3 Mercado ambulante, moradias precárias e trânsito desorganizado, Maputo, Moçambique – maio de 2011 - FMS

Depois desse primeiro contato com a cidade, soube que estava instalada em um dos bairros mais importantes da capital no quesito entretenimento e vida cultural: a Polana cimento, onde ficam os bares e restaurantes mais badalados de Maputo e por onde circulam os moçambicanos mais abastados, principalmente os estrangeiros, tanto os que moram na cidade quanto os que lá se encontram a turismo.

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Figura 4 Destaque do bairro Polana cimento, outubro de 2013, FMS

O meu principal desafio em Maputo era conhecer pessoas e estabelecer contatos para um posterior retorno à capital a fim de efetivar a pesquisa de campo. Apesar da simpatia da maior parte das pessoas que conheci, foi muito difícil estabelecer contato e uma relação de proximidade. De forma geral, muitos ficavam apreensivos com minha presença e não entendiam o que eu estava fazendo de fato naquele lugar. Eu não dizia exatamente o tema da pesquisa a ser feita, porque eu mesma fiz essa primeira viagem no intuito de conhecer o país e saber se seria possível fazer uma investigação acerca da recepção de telenovelas brasileiras em Maputo, pois soubera que essas tinham grande impacto na vida cotidiana dos moçambicanos. Desse modo, eu sempre dizia que estava em Moçambique para conhecer o país e voltar futuramente para fazer uma pesquisa sobre hábitos de entretenimento.

Sobre essa desconfiança a respeito das minhas reais intenções no país, é emblemático um evento que aconteceu comigo em Xai-Xai, capital da província de Gaza, também ao sul de Moçambique.

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Figura 5 Província de Gaza, Moçambique e a Capital Xai-Xai

Tive a honra de ser convidada para a comemoração de bodas de 50 anos de casamento dos pais de um amigo que fiz em Maputo, Eduardo. A festa foi surpresa e o casal ficou muito emocionado com aquela iniciativa dos filhos. Passado os momentos de agradecimentos e abraços, fui apresentada ao casal e aos demais membros da família. De repente eu era o centro das atenções, principalmente para as crianças, que nunca haviam tido um contato tão íntimo com algum estrangeiro e, sobretudo, com brasileiro. Passei a responder várias perguntas sobre o Brasil, sobre os artistas de televisão, sobre política e sobre nossos costumes, vistos por eles como imorais, de acordo com o que veem na televisão e nas telenovelas. Depois do jantar, da partilha do bolo e dos momentos rituais de discursos e orações (tratava-se de uma família adventista) o casal fez um agradecimento especial a mim, por estar com eles naquele momento de suas vidas.

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Figura 6 Festa surpresa de Bodas de Ouro dos pais do Eduardo, Xai Xai, maio de 2011, FMS No dia seguinte, depois do almoço, o pai do meu amigo aproveitou a oportunidade de estarmos apenas os dois assistindo televisão e resolveu saber mais a meu respeito: local que sou do Brasil, se era casada, se tinha filhos (e por que não os tinha), no que eu trabalhava, no que o marido trabalhava, até chegar na questão que de fato o atormentava: o que eu estava de fato fazendo em Moçambique? Para fundamentar a sua questão, de forma indireta (descobri nessa minha estada que os moçambicanos não são diretos em suas colocações com pessoas desconhecidas). Assim, contou-me as histórias das guerras que assolaram o país, dos conflitos entre FRELIMO3 e RENAMO4 e da total responsabilidade, que, em sua opinião, 3 A Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), fundada em junho de 1962 a partir da união de

vários grupos nacionalistas, foi responsável pela guerra de libertação nacional. Em 1975, sob a liderança de Samora Machel, conquista a independência de Moçambique, se reivindica como única organização representante de todos os moçambicanos, se define como partido marxista-leninista em 1977 e permanece como partido único até o início dos anos 1990, quando abandona o mote marxista-leninista. Desde então, em eleições mais ou menos objeto de controvérsias, tem sido o partido no poder.

4A Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) se constrói numa crescente e complexa

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tinham os estrangeiros nessas guerras, uma vez que colocou “um irmão para lutar contra o outro”. Na sua avaliação, foram os de fora que criaram os conflitos entre os moçambicanos.

Depois de lhe explicar que eu era uma pesquisadora, que estava ali para conhecer melhor o país e voltar depois para uma pesquisa sobre hábitos de entretenimento (com foco na televisão), notei não havia convencido meu anfitrião, que não me disse isso diretamente. Porém, soube pelas suas perguntas que ele ainda não entendia o que uma mulher, sem o seu marido, fazia sozinha em um país estrangeiro. Por fim, ele quis saber para que servia uma pesquisa sobre televisão, por que eu queria saber sobre isso e que interesse isso poderia ter para os brasileiros.

Nesse mês em que fiquei em Moçambique, aprendi que para contornar as desconfianças, teria que ser apresentada e fortemente indicada por algum amigo em comum. O amigo sobre o qual já me referi, Eduardo, foi a mim apresentado por uma amiga brasileira, Michelle, que o conheceu em um curso de mestrado em Paris. Michelle e Eduardo ficaram bastantes amigos, pois além de terem enfrentado juntos a dificuldade de fazer amigos na França por causa da barreira do idioma local, tinham em comum o português como língua materna. Assim, quando Michelle pediu a Eduardo que me apoiasse na minha visita a Moçambique, fui beneficiada pela confiança e pelo carinho que ela havia conquistado.

Logo, percebi que Eduardo é um rapaz que leva muito a sério os valores socialmente compartilhados sobre relacionamentos interpessoais. Apresentou-me tudo que julgou ser importante para minha pesquisa na cidade: introduziu-me em suas redes de amizades e levou-me para assistir suas aulas, no intuito de, eventuallevou-mente, arrumar interlocutores para levou-meu trabalho entre seus alunos e colegas professores. Cuidou para que eu não andasse pela cidade sozinha e, quando não podia levar-me aos lugares, enviou-me o seu sogro, que era taxista na capital (infelizmente faleceu no final de 2013) e me cobrava um preço honesto. Visitei a igreja que a sua família frequentava, num bairro no subúrbio da cidade, fiz visitas com ele e sua esposa a uma fiel da sua congregação que acabara de perder um ente querido e participei de uma festa de batizado de uma jovem da igreja, sendo chamada para sentar-me junto aos convidados de honra. Passei uma noite em sua casa, com seus filhos, ainda bem pequenos, onde me ofereceram um jantar com o que tinham de melhor na casa.

1980, vai ficando evidente a liderança de Afonso Dhlakama, e a guerra contra a FRELIMO se estende até 1992. Os anos de guerra foram marcados pela interferência mais ou menos direta de países vizinhos (com destaque para a Rodésia até a independência do Zimbábue em 1980, e a África do Sul até o final dos anos 1980) e pela insatisfação das populações diante das iniciativas do Estado da FRELIMO

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Portanto, para que eu pudesse entender minimante as dinâmicas sociais em Maputo, foi fundamental ter conhecido Eduardo. Antes de conhecê-lo, estava restrita ao círculo de amigos da minha senhoria que, com exceção de um, eram todos estrangeiros, portugueses na sua maioria, e um brasileiro homossexual que era casado com um português, ambos viviam na região central da cidade.

Dentre os amigos da minha senhoria, fiz amizade com uma antropóloga portuguesa, que logo se dispôs a me introduzir no circuito acadêmico e cultural da cidade. Ela foi muito gentil em apresentar-me a vários de seus colegas acadêmicos, com os quais troquei contatos e com alguns até consegui agendar um café para falar sobre minhas intenções de pesquisa no país. De forma geral, esses professores que foram a mim apresentados não foram receptivos, a maior parte não retornou a minha tentativa de contato. Com aqueles que consegui marcar uma conversa, notei que aceitaram o convite por algum sentimento de obrigação e depois desse contato, também não retornaram mais minhas ligações e mensagens.

Com exceção da minha senhoria e da amiga antropóloga que fiz no país, devo destacar que encontrei muita dificuldade em estabelecer uma relação mais estreita com as moçambicanas. Por exemplo, com relação à esposa de meu amigo Eduardo, que mesmo tendo sido muito gentil ao me inserir em todos os seus programas e compromissos, no que se refere à sua companheira, que sempre foi educada comigo, notei uma considerável reserva, algo que num primeiro momento pensei se tratar de ciúmes, mas com o passar dos dias em Moçambique, apesar do meu esforço, percebi que era um comportamento generalizado, pois não consegui travar nenhuma conversa mais demorada com alguma moçambicana. Eram sempre muito corteses, mas não abriam espaço para além do formal. Com a minha senhoria, devido a nossa convivência cotidiana, consegui estender um pouco mais as conversas, mas mesmo assim, eram ainda muito formais e pouco espontâneas.

Pensei durante dias sobre essa dificuldade de entrosamento com as moçambicanas e logo fui percebendo que alguns fatores contribuíam para esse fenômeno. Em primeiro lugar, o espaço da mulher é o da casa, é onde ela se sente à vontade e pode organizar o ambiente à sua maneira. Eu estava sempre na posição masculina, da que vem da rua e é servida ao invés de ajudar na cozinha ou em alguma outra tarefa da organização da casa. Outro aspecto importante para a reserva das mulheres ao falar com estrangeiros (com pessoas de fora) é a questão da língua. O português usado pelas mulheres é diferente do manipulado pelos homens. Esses últimos estão no espaço da rua e se expressam mais na língua oficial (português) do que as mulheres, que acabam utilizando com mais frequência entre elas,

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sobretudo dentro de casa, uma das línguas maternas, no caso de Maputo, prevalecem o Xironga e Xichangana5.

Assim, compreendi que esses dois fatores associados acabam por restringir as mulheres a assuntos mais veiculados à dinâmica doméstica. Mesmo entre aquelas mais escolarizadas, com vida profissional consolidada, quase não há participação em assuntos relacionados à política, economia e esportes, tão ao gosto do homem moçambicano.

Por fim, após um mês tentando conhecer pessoas, estabelecer contatos e conseguir interlocutores, percebi que seria praticamente impossível fazer uma pesquisa sobre televisão, com foco em telenovelas brasileiras, com os poucos meses de pesquisa que havia pela frente e com a dificuldade de conquistar a confiança, principalmente das moçambicanas, que, a princípio, seriam parte considerável do meu grupo de interlocutores. Voltei ao Brasil sem saber o que fazer com mais de cem páginas de caderno de campo, no qual havia tudo, menos observações mais profundas sobre a recepção de telenovelas brasileiras em Moçambique.

5 Moçambique é um país com uma diversidade étnico-linguística muito grande. As denominadas

línguas autóctones — de origem bantu, faladas no território — compõem variados grupos linguísticos, que por sua vez se dividem em diversas variantes distribuídas por todo o país. E, apesar dessa grande variedade de línguas espalhadas por Moçambique, o português tem sido a língua oficial desde o período colonial; na administração e seus respectivos documentos. Inclusive, a língua portuguesa foi usada nesse período como elemento de dominação por parte da metrópole. No projeto de “assimilação” da comunidade local, colocava-se o aprendizado do português como condição primeira para efetivação da incorporação do indivíduo à sociedade da época, muito embora, na prática, o acesso à língua era restringido pela falta de escolas. Além disso, era ensinado apenas o suficiente para comunicação e leitura-escrita instrumental. É importante pontuar que, efetivamente, apenas os autóctones ligados de alguma forma ao poder colonial é que tiveram acesso, por razões óbvias, à língua portuguesa: eles podiam fazer a intermediação entre o poder colonial e a população. Para outros indivíduos, que não estavam ligados diretamente ao poder colonial — mas que estavam nas imediações dos centros administrativos — havia, também, a possibilidade de aprender o português através das missões católicas e protestantes, que tinham interesse na alfabetização da população local para concretização de seus objetivos de conversão religiosa. Não é excessivo dizer que essa dinâmica de aprendizado da língua portuguesa entre os locais se deu majoritariamente, para não dizer exclusivamente, entre os homens, os quais estavam, como dissemos acima, de alguma forma, ligados ao poder colonial. Com a independência em 1975 (arregimentada pelos autóctones instruídos no português, ligados à administração), o governo independente da FRELIMO adota o português como língua oficial do país. O intuito desse governo era garantir através de uma língua “neutra” a unificação do território, pondo fim aos regionalismos, aos “tribalismos” e ao racismo. Para a FRELIMO, o português funcionaria como meio para construção de uma nação unificada. Atualmente, apesar dos esforços para ampliação do sistema escolar, um pouco mais de 8% da população moçambicana afirma falar português, sendo que desse percentual, 6,5% o tem como língua materna. Entre o restante da população há uma divisão entre falantes de línguas locais, sendo que estas se distribuem desigualmente pelo território moçambicano, dependendo dos grupos étnicos presentes em cada região, variando também de acordo com o fluxo migratório entre as regiões. No geral, entretanto, as línguas mais faladas em Moçambique são o emakuwa, com 26,1% de falantes e o xichangana, com 11,3% de falantes na população total. No cotidiano, a interação entre a língua portuguesa e as línguas autóctones varia de acordo com a região. De acordo com Firmino (2002), é na zona urbana que encontraremos o maior número de falantes do português, já na zona rural, a comunicação é quase que exclusivamente feita nas línguas locais. As línguas autóctones se referem aos grupos étnicos do individuo e da família. Assim cada grupo conhece, mantém e reproduz a sua língua como um marcador de identidade.

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II - DIFICULDADES PÓS-CAMPO E A MUDANÇA DE OBJETO DE PESQUISA

No início de junho de 2011 já estava de volta ao Brasil e de volta ao meu trabalho em tempo integral. A experiência de um mês em Moçambique tinha sido uma grande aventura por um lado, e uma decepção por outro. As dificuldades em estabelecer contatos para a pesquisa de campo para o ano seguinte passou a me assombrar. Além disso, senti-me desgastada com as relações interpessoais difíceis, principalmente, com os homens, pois eu como mulher e estrangeira, antecipei a dificuldade que encontraria para conduzir a pesquisa de campo. A experiência do pré-campo teve em mim um efeito análogo a um pedaço de comida que fica entalado na garganta e eu precisava de água para empurrá-lo até o estômago, mas esse copo d´água nunca veio e eu tive de regurgitá-lo.

Depois de um ano sem sequer olhar para o meu caderno de campo, reli alguns trechos em que mencionava conversas e momentos de entretenimento com o casal (o brasileiro e o português) de amigos gays da minha senhoria em Maputo. A vida que levavam era bem discreta, apesar de morarem juntos, ninguém poderia saber que eles mantinham um casamento, e a vida fora do ambiente de trabalho se passava em jantares e outros tipos de convivência em casa de amigos, na sua maioria, estrangeiros.

Lembro-me que quando reli essas histórias, me perguntei como eles poderiam manter em segredo dos vizinhos a vida a dois. E se alguém descobrisse? O que aconteceria? Perderiam o emprego? Seriam agredidos fisicamente? Em outro trecho do diário de campo, anotei uma conversa que tive com outro brasileiro, também gay, que morava em Maputo há muitos anos e trabalhava em uma ONG veiculada ao controle da disseminação do vírus HIV em alguns países da África. Na época, o foco da conversa era sobre programas de televisão e as telenovelas brasileiras em Moçambique, mas em algum momento lhe perguntei sobre namoros e sua vida afetivo-sexual. Disse-me que arranjar sexo era fácil, pois havia muitos rapazes que o fazia por dinheiro ou por algum outro tipo de presente, como roupas e sapatos, por exemplo. Porém arrumar namorado seria algo mais complicado, apesar de ninguém estranhar um estrangeiro manter um relacionamento afetivo-sexual com um parceiro do mesmo sexo – já que os mulungos6 eram vistos como pessoas com vícios morais que têm esse

tipo de “doença” – isso seria impossível entre os moçambicanos, porque eles se consideravam mais viris e mantinham suas tradições, ou seja, os relacionamentos heterossexuais. Desse

6 Expressão da língua xichangana que se refere a quem vem de fora, ao estrangeiro. O termo

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modo, ele afirmou que havia namoros entre homens, mas que isso acontecia de forma muito discreta e reservada.

Ao reler essas partes do caderno de campo, lembrei também de um comentário que um amigo, também pesquisador de Moçambique, Luiz Henrique Passador fez depois de uma viagem de campo a Moçambique: finalmente um grupo de gays e lésbicas havia aberto uma associação LGBT7 no país. Na época não compreendi a dimensão desse evento, mas com

essas histórias registradas no diário de campo e mais a rememoração dessa informação sobre a associação, percebi que tinha um interessante tema nas mãos.

III - DA RECEPÇÃO DAS TELENOVELAS BRASILEIRAS ÀS HISTORIAS DE VIDA DE HOMOSSEXUAIS EM MAPUTO

Depois da realização do pré-campo em maio de 2011, criei uma espécie de rejeição ao tema da recepção das telenovelas brasileiras em Moçambique. Como disse acima, eu não consegui reler meu diário de campo por no mínimo um ano e quando voltei a ele, felizmente descobri um tema que me chamou mais atenção: como seria a história de vida dos homossexuais em Moçambique? Quem eram eles? E o que mais me chamava a atenção: como resolviam a questão do preconceito em seus cotidianos?

Com a mudança de tema de pesquisa, tive de recomeçar a parte bibliográfica do trabalho, fazendo um levantamento de produções relativas à homossexualidade em África, já imaginando que não haveria nada produzido especificamente sobre Moçambique. De fato, encontrei uma série de artigos e livros de autoria, em grande parte, de pesquisadores europeus sobre a homossexualidade nas ex-colônias britânicas e francesas no continente africano, datadas a partir do final da década de 90. Mas para minha surpresa, ao pesquisar o banco de monografias de final de curso da UEM8, encontrei quatro trabalhos relativos à questão 7 Apesar da ILGA – The International Lesbian, Gay, Bisexual, Transand Intersex Association,

preconizar a inclusão dos intersexuais sob a bandeira de defesa dos movimentos de defesa dos homossexuais, neste trabalho vou adotar a sigla LGBT – Lésbicas, gays, bissexuais e transexuais –, conforme o uso que faz a associação de homossexuais de Moçambique.

8 A Universidade Eduardo Mondlane (UEM) é uma universidade pública de Moçambique com campi

espalhados por todo o país. Teve sua fundação em 1962 com o nome de Estudos Gerais Universitários de Moçambique. Em 1968 passou a se chamar Universidade de Lourenço Marques, mas com a independência, na administração de Samora Machel, a Universidade ganha o nome da principal referência da FRELIMO, o professor Eduardo Mondlane. Atualmente a UEM tem setenta e um cursos de graduação divididos nas áreas de ciências biológicas, ciências agronômicas, ciências naturais e exatas, ciências humanas, letras e artes, ciências sociais e aplicadas, engenharias e saúde. A UEM ainda conta com sessenta e um cursos de pós-graduação, nos quais cinquenta e sete são mestrado e quatro doutorado. Atualmente a universidade oferece, também, três cursos de Ensino

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homossexual em Moçambique, realizados por alunos dos cursos de sociologia e antropologia após o ano de 2006, quando da abertura da associação LGBT no país.

Nessa parte da tese, não vou alongar a discussão sobre o conteúdo dos trabalhos realizados sobre homossexualidade em outros países africanos, bem como não vou estender a análise das monografias sobre o mesmo tema produzidas em Moçambique, pois o farei mais à frente, no próximo capitulo. Entretanto, vou adiantar que as questões problematizadas nos trabalhos sobre homossexuais em outros países do continente africano são bem diferentes das indagações que nortearam as monografias sobre homossexuais em Moçambique. As primeiras buscam, em primeiro lugar, explicitar a existência da homossexualidade em África mesmo antes do contato com a chamada cultura ocidental e, no segundo momento, fazer a denúncia do preconceito e do processo de invisibilização por qual passa os homossexuais no continente africano. Há também, muitos trabalhos que procuram desmistificar a relação que muitos fazem entre relações sexuais entre homens e a difusão do vírus HIV/Aids. Já nas monografias de formandos em humanidades da UEM, as principais inquietações analisadas em seus textos buscam responder por que existem gays e por que alguém “escolhe” ser assim.

Depois do levantamento bibliográfico sobre o tema, procurei informações sobre homossexualidade em África e Moçambique na web, visitei sítios eletrônicos de periódicos, blogues e redes sociais, como, por exemplo, o Facebook. De forma geral, não há praticamente nada sobre homossexualidade em Moçambique nas redes sociais ou demais sítios eletrônicos na web. O único espaço virtual que encontrei reservado a esse tema em Moçambique é o da Associação LGBT, que apresentarei mais à frente. Já em sítios eletrônicos da África do Sul, o tema é mais difundido na web.

Com base na bibliografia que fui recolhendo, verifiquei que a questão de fundo apresentada em grande parte dos trabalhos é: a homossexualidade já existia em África antes da interferência da chamada cultura ocidental? De forma geral, os trabalhos analisados partem da hipótese que a homossexualidade é algo imanente a todas as conformações culturais, variando sua forma de integração na sociedade. No caso de África, fica evidente a negação dessa prática como algo “normal” e aceitável.

Mediante esse estado da arte e o quadro exposto acima, baseado em pesquisas de outros investigadores, formulei a minha questão de partida, qual seja: em um contexto de invisibilização e negação da homossexualidade como algo constitutivo da sociedade, como a distância (EAD). Ver sítio eletrônico da UEM em http://www.uem.mz/, data de acesso, junho de 2015.

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vivem os homossexuais em Maputo, capital de Moçambique, tendo em vista que se trata da cidade mais cosmopolita do país e a princípio mais aberta?

Minha abordagem teórica inicial se baseou nos conceitos do interacionismo simbólico e na ideia de manipulação da identidade, conforme os estudos de Erving Goffman (2008; 2009). Desse modo, parti para campo com a hipótese de que encontraria interlocutores homossexuais procurando fugir dos estigmas da homossexualidade. Nas páginas que se seguem, entretanto, revelo que as experiências de vida são bem mais complexas do que imaginei no princípio.

No primeiro capítulo apresento um panorama sobre o tema homossexualidade em África, mostrando os principais trabalhos realizados, que tiveram alguma projeção acadêmica. O objetivo dessa síntese é apresentar ao leitor o que já foi analisado sobre o assunto, bem como procurar evidenciar o contexto para a produção de tais estudos no continente africano.

No segundo capítulo, busco apresentar a pouca discussão sobre homossexualidade em Moçambique na sociedade civil e fazer uma breve análise das monografias produzidas no âmbito acadêmico. A finalidade desse mapeamento de ideias, opiniões e conceitos é revelar o senso comum que circula no país sobre esse assunto.

A seguir, no terceiro capítulo, faço uma análise de temas levantados por meus interlocutores, a partir da narrativa de suas histórias de vida. Nessa parte do texto, pretendo revelar os interstícios que permeiam a discussão desse assunto, de modo a dar um passo à frente dos trabalhos que se restringiram ao aspecto político do tema e se furtaram da análise do papel ativo que os sujeitos têm em todo processo de construção do modo de estar no mundo e sua forma de se relacionar com as adversidades.

Para concluir o trabalho, retomo os principais pontos que foram apresentados ao longo do texto, de modo a deixar mais explícitas as conexões entre os capítulos, bem como destacar a tese que aqui defendo.

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De modo a facilitar a leitura, cabe aqui esclarecer que colocarei entre aspas palavras e frases inteiras que foram proferidas pelos interlocutores. As palavras e expressões em outras línguas colocarei em itálico. As fotografias inseridas nesse trabalho terão sua autoria e informação sobre local e data abaixo das imagens. Os mapas estão numerados e identificados no início do trabalho.

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Capítulo 1: Panorama sobre relacionamento afetivo e/ou sexual entre pessoas do mesmo sexo em África

Nesse capítulo trago uma síntese sobre os estudos da homossexualidade em África. Num primeiro momento, contextualizo o surgimento desse debate no continente africano e depois aponto as principais ideias aventadas nesses trabalhos. O objetivo deste panorama é compreender, através de diversos estudos, como são as relações afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo em África e quais suas especificidades, para depois, nos próximos capítulos, focarmos nossa atenção na homossexualidade em Maputo, Moçambique.

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1.1 O CONTEXTO DOS ESTUDOS SOBRE HOMOSSEXUALIDADE EM ÁFRICA

Em 1994 a África do Sul incluiu a diversidade sexual entre os direitos civis garantidos na constituição do país. No mesmo ano o então presidente do Zimbabwe, Robert Mugabe, ordena o fechamento da GALZ – Gays and Lesbian of Zimbabwe – e aperta o cerco contra os gays. Alguns anos depois, Quênia, Namíbia e Uganda reforçam suas leis anti-gays e as declarações contra a homossexualidade em África ganham espaço no debate público. Na mesma época, durante a década de noventa, muitos países africanos conquistaram a sua emancipação do sistema colonial europeu. Nesse período também houve uma intensa comoção em torno da grande disseminação do vírus HIV/Aids no continente africano.

Desde então, muitas Organizações Não Governamentais (ONG) na luta contra o HIV/Aids somaram-se às igrejas e outras ONGs que combatiam a fome, a miséria e o analfabetismo em África. O principal objetivo dessas missões era “educar” os africanos, de modo a extinguir práticas sexuais promíscuas que julgavam existir nas sociedades do continente. Além disso, as missões deveriam difundir o uso de preservativo nas relações sexuais.

Em uma pesquisa sobre os conceitos de doença e cura no sul de Moçambique, Passador (2011) revela que a maior parte da população utiliza os serviços dos curandeiros, uma vez que o sistema de saúde é muito precário e não tem como atender a todos, além disso, nas zonas mais afastadas da capital Maputo, os serviços médicos são praticamente inexistentes. Nesse contexto, as campanhas contra a disseminação do vírus HIV/Aids, promovidas pelo ocidente, majoritariamente por ONGs estadunidenses e europeias, fracassam em suas empreitadas, pois impunham por meio de seu cabedal de conhecimento categorias

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que não faziam sentido entre os moçambicanos. Na cultura local, a degradação física e as doenças são associadas à feitiçaria, dentro de uma visão cosmológica de relação de parentesco e vizinhança, de difícil penetração para pessoas de fora.

No que diz respeito à sexualidade e a imposição da mudança de comportamento sexual, as campanhas das ONGs acabam funcionando de forma inversa, pois não compreendem a dinâmica da vida sexual do moçambicano. A propaganda da camisinha “Jeito”, veiculada pelos meios locais de comunicação, causou grande desconforto e desconfiança entre os moçambicanos. Muitos passaram a acreditar que o uso da camisinha é que transmitia a doença, uma vez que esta estava associada a uma forma promíscua de interação sexual.

Em meio a desencontros e choques culturais, a doença continuou se alastrando, e como o foco das campanhas se dava em torno do modelo de família heterossexual, as entidades LGBT passaram a se ocupar em dar visibilidade para os homossexuais em África, os empoderando a partir da criação de associações LGBT pelo continente. Diferentemente dos países ocidentais, em que a luta pelos direitos dos homossexuais nasce junto com a luta das mulheres por direitos iguais, em África a preocupação com os direitos dos homossexuais tem início juntamente com a luta contra HIV/Aids e o reconhecimento do direito da pessoa, além do contexto histórico e político favorável à descolonização dos países africanos.

Assim, dentro de um campo difícil, com muito preconceito contra a homossexualidade, as associações LGBT em África se ligaram imediatamente à luta pelos direitos humanos, à luta contra HIV/Aids e à luta pela igualdade de gênero, comandada pelas ONGs feministas. Devido à falta de apoio dos governos locais e à fase ainda inicial das associações LGBT em África, essas ainda se mantêm por meio de recursos externos, angariados no dito mundo ocidental.

Segundo Charles Guéboguo (2008), em 2007 na África do Sul é criada a PAI, Pan Africa ILGA – International Lesbian and Gays Association – para garantir os direitos civis de gay, lésbicas, bissexuais, travestis e intersexuais. Na época, dos 53 países do continente africano, 38 deles possuíam leis contra homossexualidade ou contra sodomia. Entre os países de colonização portuguesa, até 2007 todos mantinham a legislação do período colonial (setembro de 1886) que previa pena para pessoas que agissem em “crime contra a natureza”, penalizando-as com transferência para campos de trabalhos forçados. Felizmente no primeiro semestre de 2015, Moçambique fez revisão no código penal e retirou os parágrafos que incriminavam os homossexuais.

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Ao analisar as legislações dos países com leis contra a homossexualidade, Guéboguo destaca que esses países, por não mencionar a relação afetiva e sexual entre mulheres, como se elas não existissem, demonstram forte traço da dominação masculina nesses estados. O autor acrescenta que nesses países a vida sexual da mulher não existe, seja ela hetero ou homossexual, pois ela é apenas o receptáculo para formação da vida humana.

É nesse contexto que a PAI deve atuar e estimular a criação de associações LGBT, as quais devem lutar contra a homofobia9, a penalização e a criminalização da

homossexualidade em África. Tais bandeiras são endossadas pela União Africana e o Conselho Africano dos Diretos do Homem.

1.2 A POLISSEMIA DA RELAÇÃO SEXUAL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO EM ÁFRICA

Do ponto de vista acadêmico, é também nos anos 90 que surge o primeiro trabalho sobre homossexualidade em África10. Depois de produzirem alguns trabalhos sobre

homossexualidade em diversos contextos, Murray e Roscoe foram os pioneiros em estudos sobre homossexualidade em África. Em 1998 publicam uma pesquisa de referência sobre homossexualidade no continente africano, com título Boy-Wivesand Female Husbands: studies of african homosexualities. Os autores, num primeiro momento, buscam derrubar o mito de que a homossexualidade em África é algo extrínseco às sociedades locais e através de documentos e, principalmente, de relatos de pessoas de vários países do continente, revelam que há uma grande variedade de padrões de relacionamentos afetivo e sexual entre indivíduos do mesmo sexo. De forma geral, Murray e Roscoe concluem que em África não existe uma

9 O termo “homofobia” foi introduzido nos Estados Unidos da América no final dos anos 60, pelo

psicólogo George Weinberg da Universidade da Columbia. Em um contexto em que a homossexualidade era vista como uma doença, Weinberg identificou o preconceito contra gays como uma patologia. Entretanto, neste trabalho utilizarei o termo homofobia como sinônimo de preconceito contra homossexuais de forma sociológica e não médica.

10 No campo dos trabalhos analíticos, após o trabalho de Evans-Pritchard no final dos anos 70, em

que descreve comportamentos homossexuais entre os Azande, quase vinte anos depois, Murray e Roscoe são os primeiros a sistematizarem estudos realizados por uma serie de pesquisadores no continente africano. Entretanto, os acadêmicos não eram os únicos a falarem sobre práticas homossexuais em África. O historiador Wayde Dynes (1990 apud Miguel, 2014) e o pesquisador James Neil (2011 apud Miguel, 2014) publicaram coleções de relatos de viagens, em que são descritas situações de “pederastia”, sobretudo no norte do continente. Esse vácuo de produção acadêmica por quase duas décadas se refere, como disse Epprecht, ao constrangimento em se falar sobre o assunto, uma vez que muitos dos responsáveis por estudar as culturas dos colonizados, eram financiados pelos governos europeus e pelas igrejas cristãs católicas e protestantes.

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identidade homossexual como no mundo ocidental11 e que os relacionamentos afetivo-sexuais

entre pessoas do mesmo sexo acontece paralelamente ao casamento heterossexual dos envolvidos. Assim, não existe o gay e nem espaços de sociabilidade para homossexuais.

É importante destacar que o trabalho de Murray e Roscoe sobre homossexualidade em África surge como uma poderosa voz em meio ao silêncio imposto pelos acadêmicos, políticos e elites locais. Essa pesquisa abre caminho para uma série de outros trabalhos que foram realizados em diversos países do continente africano.

Um dos principais contribuintes para o trabalho de Murray e Roscoe foi Marc Epprecht, que teve o seu artigo Good God Almighty, What’s This! : Homosexual “Crime” in Early Colonial Zimbabwe incluído no livro desses autores. Com esse texto, Epprecht dá o primeiro passo para uma frutífera produção sobre homossexualidade em África, com foco no Zimbabwe.

O argumento central dos trabalhos de Epprecht é o de que embora haja discursos contra homossexualidade em África, não devemos, entretanto, rotular esse continente como homofóbico, uma vez que muitos africanos não conhecem esse conceito e a realidade do dia a dia das vidas afetivo-sexuais, em muitos países africanos, é bem mais complexa do que se pode aparentar.

Adapto da teoria queer, que busca analisar homossexualidade relacionando sexualidade, discurso e política econômica, Epprecht acredita, assim como Foucault (1988), que o desenvolvimento cientifico e industrial contribuiu para a transformação das ideias sobre a natureza da sexualidade, das concepções de gênero e das construções das identidades sociais.

11 Trabalhos como o de Carrara e Simões (2007) e de Shana Calixte (s/d) demonstram que o

chamado mundo ocidental não tem uma concepção de homossexualidade homogênia. Os primeiros autores destacam que no Brasil devemos levar em conta que existe um sistema de hierarquização relacionado com os signos de distinção de classe Segundo eles, “tal “hierarquia” mantinha não apenas intocado o estigma e a reprovação social de que já eram objeto privilegiado homens “afeminados” e travestis, mas o aprofundava, marcando todos eles com a pecha de “atrasados”, politicamente incorretos, retrógrados etc.” (2007:75). No Brasil, portanto, vemos uma recusa ao binarismo ocidental de hierarquização da sexualidade. Nossa classificação não se prende ao homo-hetero ou homem-bicha, mas trabalha com categorias mais flexíveis de identidade sexual. Desse modo, podemos dizer que a nossa forma de classificação sexual é não-ocidental. Da mesma forma, Shana Calixte revela que as mulheres da diáspora afro-caribenha apresentam uma gama de identidades (homo) sexuais, em que recriam uma identidade queer à luz de mitos e memórias nostálgicas da diáspora.

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De acordo com o autor, antes do período colonial no continente africano, as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo não tinham destaque na sociedade, assim como as demais formas de relações sexuais.

Segundo Epprecht:

“Individual sexual desire was largely subsumed to the broad interests of the extended family or lineage. Those interests included reputation, political alliance, material production, spiritual health, and ritual protection of the natural environment. Yet people being pleople, individuals could and did sometimes veer from the preferred path through adolescence to fecund and loyal marriage. (2008: 37)

De forma geral, Epprecht verificou que na maior parte das sociedades africanas, o importante era estabelecer as alianças entre famílias e linhagens através do casamento e garantir sua reprodução com a concepção de filhos. Para o autor a África não deve ser entendida como um continente homofóbico, mas antes, tem de ser compreendido que a ideia de prazer sexual e diversidade de práticas sexuais, não é, para o africano, uma temática social, pois a preocupação de um adulto deve ser a de estabelecer uma família. Além disso, a herança cristã do período colonial reforçou a concepção de foco na construção e manutenção de uma família, em que o sexo é apenas para procriação e não para diversão. Assim, o autor afirma que a ressignificação negativa das práticas sexuais fora do propósito de procriação, teve espaço durante o período colonial e sobreviveram após os processos de emancipação dos países colonizados.

No século XVIII, Edward Gibbon em seu livro History of the Decline and Fall of the Roman Empire lançou uma teoria de que os africanos teriam sido contaminados pela homossexualidade dos ocidentais, assim como os primitivos romanos foram influenciados pelos etruscos e gregos, pertencentes às sociedades mais civilizadas na época12. (Citado por

Murray e Roscoe, 1998: XII.)

12 É importante destacar que embora Gibbon tenha colocado a homossexualidade no período da

antiguidade clássica e a praticada no período colonial no mesmo plano, na década de 80 Paul Veyne (1985) detalha as diferenças de significado das práticas homossexuais entre os gregos e romanos e as das sociedades ocidentais do século XIX. Segundo ele, embora haja um senso comum em torno de uma aparente liberalização da vida sexual entre pessoas do mesmo sexo entre os gregos e os romanos na antiguidade, o autor revela que nessa sociedade a homofilia era abolida como relações extraconjugais entre cidadãos. Entre os homens, fazer sexo com outro homem não era por si mal visto, o que era considerado desprezível era um homem livre ser passivo em uma relação homossexual. Já para o escravo era aceito como passivo em relações sexuais com o seu “senhor”. Entre homens livres a passividade na relação sexual era vista como desonra. Veyne diz: “O indivíduo passivo não era lascivo por causa de seu desvio sexual, muito pelo contrário: sua passividade não era senão um dos efeitos de sua falta de virilidade, e essa falha permanecia sendo um vício capital

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Durante o período colonial, administradores coloniais e membros de igrejas cristãs, ocultaram as práticas homossexuais dos africanos e estabeleceram a heteronormatividade13 como parâmetro de relacionamentos afetivo-sexuais. Mesmo nos

estudos científicos da época, Epprecht afirma que a homossexualidade em África foi invisibilizada por grande parte dos pesquisadores devido ao desconforto ou repulsa que eles próprios sentiam, devido à formação religiosa da maior parte deles. É somente a partir do século XIX, que passamos a contar com relatos de sexo homossexual entre africanos, particularmente em textos antropológicos. Entre os mais conhecidos estão os trabalhos do antropólogo E. E. Evans-Pritchard (1970) e do missionário e etnógrafo Henri Junod (2009).

Nos anos 70 Evans-Pritchard divulga, em um periódico de circulação restrita, a existência de casamentos homossexuais entre os Azande. Segundo o autor, antes da colonização europeia, a realização de um matrimônio temporário entre homens jovens e homens mais velhos era comum para os Azande. De acordo com os relatos recolhidos pelo pesquisador, essa relação entre homens serviria para evitar o adultério (algo mal visto e punido severamente, resultando inclusive na amputação de partes do corpo do rapaz, inclusive do órgão genital), uma vez que as moças casar-se-iam mais cedo e os rapazes ficariam sem parceiras sexuais. Assim, entre os 11 e os 20 anos, o rapaz poderia se casar com um nobre, em troca de dinheiro para família do jovem. Quando o jovem arrumasse uma moça, seu casamento com o homem mais velho seria desfeito.

Entre as mulheres Azande, Evans-Pritchard também encontrou relatos de práticas homoeróticas antes da chegada dos europeus. Embora proibida socialmente, o lesbianismo era praticado, sobretudo, entre as mulheres que viviam em lares poligâmicos. A falta de exclusividade e atenção do marido para com suas mulheres fazia com que elas procurassem satisfação sexual entre elas mesmas. Para o autor, entretanto, a prática homossexual entre os Azande não deve ser explicada como uma condição social, mas antes como práticas conjecturais, impostas pelos homens.

mesmo na ausência de homofilia” (1985:44). Em suma, entre gregos e romanos da antiguidade, a moral da época condenava não o ato sexual entre dois homens em si, mas o instinto libertino por trás de tal prática. O “pederasta” era visto como um libertino, uma pessoa que só pensava em prazer. Mas é importante destacar que essa reprovação não era do ponto de vista do sagrado, mas antes da moral.

13 Nesse trabalho vamos utilizar a concepção de heteronormatividade conforme os sentidos que

Didier Eribon (2008) faz do termo. Para esse autor, a heteronormatividade é a subjugação da subjetividade homossexual às normas da linguagem heterossexual manifesta nos discursos e nas práticas cotidianas. Esse processo abre espaço para a violência simbólica (e muitas vezes física) como algo “natural” no seio da sociedade.

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Em sua pesquisa no sul da África entre o final do século XIX e início do século XX, Junod encontra entre os Tsonga uma prática homossexual semelhante àquela relatada por Evans-Pritchard entre os Azande. Trabalhadores das minas na África do Sul mantinham uma espécie de matrimônio temporário entre homens mais velhos com homens mais jovens. Assim como os Azande, esse casamento era uma forma de os jovens mineiros juntar dinheiro para pagar o lobolo quando voltassem para casa. Segundo Junod, os mais jovens, além de satisfazer sexualmente seus mantenedores mais velhos, deveriam manter a organização do dormitório onde moravam. O autor relata, indignado, que ao cuidar da “casa”, alguns jovens traziam capulanas ao corpo, como se fossem mulheres. Essa discrição de Junod constitui as ultimas linhas do seu trabalho sobre um extenso e detalhado estudo sobre os Tsonga, e parece servir mais como forma de denúncia e crítica aos dirigentes das minas por permitir que esse “vício” de fora adentrasse nesse local sem ser devidamente combatido. Em suas palavras:

“Pode afirmar-se que este vício foi ensinado aos Bantu sul-africanos por homens de outras raças, que penetrou primeiro nas prisões e que agora faz furor nestes grandes agrupamentos de menos indígenas onde deflora a mocidade Bantu, pois se não destrói subitamente a sua força física, esta perversão de uma das funções essenciais do homem corrompe as origens da energia moral e põe em perigo os próprios fundamentos da vida social Bantu (...) A conclusão que se impõe quando se estuda este doloroso assunto é a de que, como a civilização branca é responsável pela introdução e desenvolvimento terrível deste vício entre os indígenas, os brancos não devem ser indiferentes à repressão do flagelo que é uma inequidade que ameaça a própria vida da tribo do sul de África”. (2009:391)14

Anos mais tarde, as pesquisas sobre homossexualidade em África procuraram contextualizar e compreender o significado êmico das relações sexuais mantidas entre pessoas do mesmo sexo antes do período colonial. Através de coletas de relatos entre os mais velhos, alguns pesquisadores verificaram que não existia no continente africano a ideia que fazemos no ocidente sobre homossexualidade. Apesar de haver relações sexuais entre pessoas do

14 Patrick Harries (1990) observa que os missionários religiosos como Junod, faziam visitas rápidas às

minas e ficavam horrorizados com o aspecto do local e com as condições de vida e de trabalho dos mineiros. Para eles, WitWatersrand era uma espécie de Babilônia. Dessa forma, Harries alega que o pouco tempo que Junod passou entre os mineiros na África do Sul, não o permitiu compreender as especificidades das relações homossexuais entre esses trabalhadores. De acordo com o autor, a bukhontxana era mais do que um relacionamento sexual entre pessoas do mesmo sexo, era uma espécie de união entre um jovem mineiro com outro mais velho. Nessa relação, além do sexo, havia cuidado mútuo, proteção e incentivo financeiro dos mais velhos para os mais novos, como forma de poupança para pagar o lobolo no retorno para sua comunidade.

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mesmo sexo, não havia o estatuto social do gay. De uma forma geral, as sociedades africanas do sul do continente são fundamentadas na formação da família como base para a reprodução social. Ninguém se torna uma pessoa sem estar associado a uma família. Além disso, em grande parte das culturas africanas, como mostra Izugbara e Undie (2008), a noção de corpo e os cuidados a ele associados merece um trabalho detido.

Em um estudo entre os povos do sudeste nigeriano, Ngwa-Igbo e Ubang, os autores desvendam que o corpo não é de propriedade do individuo, mas sim da comunidade. De forma geral, a existência de práticas homossexuais em África não excluem de suas vidas a relação heterossexual e o desejo de construir uma família. Ainda sobre as sociedades do sul da África, Mikki van Zyl (2011), afirma que para entendermos a África Austral, devemos estudar a filosofia Ubuntu, que não possui a noção de indivíduo, mas antes, a noção de pessoa está atrelada à ideia de comunidade15. Assim, segundo o autor:

“In Ubuntu, the southern African sociocommunal philosophy, individual existence is expressed through communal interdependencies, sharing, reciprocal obligations, and responsibilities. Therefore in Ubuntu freedom is circumscribed by belonging in a community, primarily referenced through kinship”. (2011:337)

Além disso, como já apontara Epprecht sobre o Zimbabwe, na filosofia Ubuntu, há uma separação entre sexo para procriação e sexo para prazer. Van Zyl diz que os colonizadores juntaram as duas formas de fazer sexo sob a rubrica do casamento e o determinou como heterossexual.

15 De forma comparativa e procurando respeitar as especificidades epistemológicas de cada filosofia,

com base nos trabalhos de Mbiti (1992) e Menkiti (1984), pode-se dizer que a noção de pessoa apresenta algumas distinções claras entre a noção dita ocidental e a chamada de africana por esses autores. Segundo eles, na concepção ocidental uma pessoa é um individuo único e essa individualidade lhe confere sua noção de existência. Na filosofia africana, entretanto, uma pessoa só pode ser definida em referência à sua comunidade e não são seus atributos físicos ou psicológicos que importam nesse processo, mas sua percepção de pertencimento a uma sociedade, com língua e regras próprias e, sobretudo, pertencer a uma linhagem e ter ancestrais para lhe guiar. Assim, uma pessoa não é relacionada à sua capacidade racional ou às suas memórias, mas sim ao conjunto de referências que a insere na sua comunidade. Essa inserção não é garantida a priori apenas pelo nascimento de um indivíduo numa sociedade, ele tem que conquistá-la através da participação na comunidade, respeitando as regras definidas pelo coletivo e passando por todos os rituais, de modo a ser considerado apto àquela comunidade. Diferentemente do ocidente, onde a sociedade é organizada em termos de individualismo e garantia dos direitos individuais, nas sociedades africanas, a comunidade é organizada através dos deveres que cada um tem para com a sua sociedade.

Referências

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