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4 Teatro épico: a crise do drama

4.1 Teatro épico de Brecht

4.1.3 Idade Média

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peça Tamura, apresentado por Suzuki, em que o visitante narra a história do templo e depois, em sonho, o Espírito narra os feitos heróicos, numa exposição da cultura do povo, é um exemplo da épica na temática Nô:

Na primavera, após agradável peregrinação, um monge do oriente chega à capital e visita o templo de Kiiomizu (...). Pergunta qual a ocupação do moço a limpar o jardim. ‘Guarda de flores’ (...) Enquanto o visitante indaga a história do templo e o interlocutor satisfaz sua curiosidade, ergue-se a lua, que banha a paisagem ímpar. Depois de bailar alegre, o jovem desaparece no recinto do templo (...) O monge adormece após a oração costumeira. Em sonho, o Espírito do general Tamurâmaru (...) mostra-lhe os atos heróicos em defesa do império, louvando as crenças búdicas.252

Finalmente, a iluminação do teatro Nô é intensa. De dia, contam com a luz solar, sendo que grande parte das apresentações se dá ao ar livre, ou, à noite ou em lugares fechados, utilizam archotes, evitando reflexos e mudanças de cores naturais com luz elétrica. O objetivo é, portanto, a claridade natural e intensa, exaltada por Brecht no poema A Iluminação:

Ilumina a cena, tu, que estás encarregado das luzes! Como é que nós, dramaturgos e atores, poderemos apresentar as nossas imagens do mundo a meia luz. O lusco-fusco crepuscular dá sono. E nós precisamos que os espectadores estejam despertos, sim, vigilantes (ET: 322).

A cena intensamente iluminada é fundamental para um teatro não ilusionista, enfoque do autor alemão, e também do teatro oriental; por semelhanças como essa, Brecht demonstra toda a simpatia nutrida pelo teatro oriental em seus Estudos sobre teatro, assim como a importância dessa arte em sua teoria.

4.1.3 Idade Média

Dante Alighieri (séc. XIII) é considerado o maior autor desse período; sua Divina Comédia, segundo Hegel, “constitui (...) a obra mais perfeita, o conteúdo mais rico, a verdadeira epopéia artística da Idade Média cristã e católica (...) pela sua

252Id., Ibid., p. 102.

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firme estrutura e pelo seu caráter perfeitamente coerente e acabado”253. Criou uma nova nomenclatura para os gêneros: nobre, médio e humilde, em que classificava a tragédia no primeiro e a comédia no segundo, nominando como humilde a elegia (cantos de luto); escreveu ainda sua concepção de comédia, que para ele, “é um certo gênero de narração poética que difere de todos os outros”254. O gênero cômico se distingue da tragédia, segundo Dante, por esta ter um final “repugnante e horrível”, e buscando a etimologia (“canto de bodes”) da palavra, “fétido, à maneira dos bodes, como se deduz de Sêneca, nas suas tragédias”255; também cita a maneira de falar elevada das obras trágicas, em contraposição à “branda” e humilde, das cômicas.

Como a Igreja regeu o mundo ocidental durante essa época, ela é fundamental também no teatro; durante o século V e VI, excomungou atores e proibiu o desempenho teatral; por volta do século XII, porém, começou a utilizá-lo – primeiramente na França, com o nome de “autos”256 – como adendo na evangelização, levando a um povo iletrado o conteúdo bíblico; teve seu apogeu entre os séculos XIII e XV. Nesse contexto, os símbolos regiam a trama, com personagens representando o bem ou o mal, como dignos de recompensa ou castigo respectivamente: apesar de não seguir os conceitos formais aristotélicos, há um ponto de convergência entre essa característica e a expectativa doutrinário-moral apresentada pelos classicistas em sua análise a Aristóteles.

Apesar das restrições, a literatura dramática foi a única que conseguiu um

253 HEGEL, G.W.F. Estética: poesia VII. Trad. Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1972. p. 274.

254ALIGHIERI, D. Obras Completas: epístolas. São Paulo: Das Américas, 1958. v. 10, p.

141.

255Id., Ibid., p. 142.

256VASSALLO, L. O teatro medieval. In: Teatro Sempre. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, jan.-mar., 1983. p.39.

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desenvolvimento considerável na época, e na sua forma épica, derivada da origem bíblica em grande parte da produção realizada, destacou-se, inclusive, para firmar a lingüística em sociedades cujas línguas nacionais estavam em formação. A ruptura com a arte grega e Aristóteles fez com que o teatro da Idade Média se desligasse do grego. Os objetivos dessa arte eram, em vez de gerar a empatia e purificação enfatizadas no período anterior, levar o homem a tomar consciência de seu pecado, a fim de ser transformado e estender essa conversão aos que o cercavam. Para isso, os pontos básicos do drama medieval foram:

1. desobediência total à famosa regra das três unidades; 2. adramaticidade (não há conflitos, não há escolhas, não há psicologismo); 3. encenam-se tipos e não caracteres; 4.

uso de palcos simultâneos, interferência de narradores, o que conduz ao não ilusionismo e à autonomia das partes. O que dá unidade a este tipo de teatro é a História Sagrada, o Homem como criação divina e, no caso do teatro profano, a própria crítica social.257

Enfim, uma estrutura de teatro épico. Não era importante para a Igreja, que esteve à frente de grande parte da produção teatral da época, seguir as regras da dramática, estipuladas pelos gregos “pagãos”; além disso, os objetivos eram diversos, como aponta Sábato Magaldi:

Um teatro que apreendesse as possibilidades dramáticas dos caminhos de um cristão deveria fixá-lo não num instante privilegiado, mas em grande número de situações capazes de acompanhar-lhes as crises íntimas. Em conclusão, não prevaleceriam ao menos as unidades de espaço e de tempo. Por isso, o teatro medieval se espraia por cenários incontáveis, e não teme acompanhar o homem, desde o nascimento até o encontro com a eternidade.258

O que o diferencia do teatro brechtiano é que, enquanto a Igreja buscava transformação através da fé, Brecht desejava que essa mudança se desse pela razão. Em pólo diverso, mas com objetivo comum, a Idade Média investiu num teatro em que as características épicas dominavam as cenas, desprezando as unidades de

257ALMEIDA, M. C. O auto vicentino. In: Teatro Sempre. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, jan.-mar., 1983. p.48.

258MAGALDI, S. O texto no teatro. São Paulo: Edusp, 1989.p. 71.

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tempo e espaço, trocando o foco de ação para narração, utilizando palcos simultâneos, nos quais as cenas, autônomas, quebravam o ilusionismo. Como Brecht. Inclusive na linguagem, em que o alemão trabalhou, a fim de tornar acessível ao povo, o teatro da Idade Média se aproximava do seu, através da adoção da

“língua vulgar”, trabalhada para ser entendida pela população.259

A arte profana também se aproximou da obra de Brecht. Além de aproveitar as características apontadas acima, ela ainda tem em comum com o dramaturgo, a temática voltada à crítica, e o uso da ironia nas peças:

No século XV a vida era difícil, cruel e dura. (...) Censuravam-se os reis e os nobres nas soties, refletindo-se nas peças representadas todos os acontecimentos locais ou nacionais. Nelas se aprovava um edital, nelas se escarnecia de um tratado. A sátira não desprezava os usos e costumes da vida privada: nela apareciam os cornudos, os amantes hábeis, as esposas pérfidas.260

Outra inovação formal no período foram as rubricas, que indicavam a forma de agir nos dramas encenados pela Igreja Católica. Um exemplo de texto da época é a peça natalina Mistério de Adão, apresentada no século XII:

Adão deve então dirigir-se a Eva, preocupado porque o diabo falou com ela e deve dizer-lhe:

Dizei-me, mulher, o que procurava o malvado Satanás junto a ti?

Eva: Falou-me do nosso proveito.

Adão: Não acredites no traidor! Ele é um traidor, bem o sei.

Eva: como o sabes?

Adão: Porque o experimentei!

Eva: Por que deveria isso impedir-me de vê-lo? Também a ti ele fará mudar saber.

Adão: Não conseguirá, porque não acreditarei nele sem provas. Não deixes mais que ele se aproxime de ti, pois é um sujeito muito malvado. Já quis trair o seu senhor e pôr-se a si mesmo na sua altura. Não quero que um tal patife tenha qualquer coisa a ver contigo!

Aqui, uma serpente habilmente construída deve subir pelo tronco da árvore. Eva deve

Experimentei. Deus, que sabor! Nunca comi algo tão doce. Que sabor tem esta maçã!

Adão: Que sabor?

259Id., Ibid., p. 69.

260MOUSSINAC, L. História do Teatro: das Origens aos Nossos Dias. Amadora, Portugal:

Bertrand, 1957. p. 100.

98 Eva: Um sabor que nunca homem algum experimentou. Agora os meus olhos tornaram-se tão claros, que eu me sinto como Deus todo-poderoso. Tudo o que foi, tudo o que será tudo o sei, e sou seu senhor. Come, Adão, não hesites, pegá-la-ás em boa hora.261

Adaptado do texto bíblico, portanto, narrativo, a peça se reveza entre falas dramáticas e rubricas que dirigem o texto e substituem, às vezes, as falas, como no caso em que Eva deve oferecer a maçã a Adão, assim como a negação do marido.

A fala de Eva – “Experimentei” - é um exemplo épico, por descrever a ação passada, já que o público a havia visto comer a maçã. Segundo Lukács, uma das funções do narrador, na épica, é descrever262. Essa técnica também foi utilizada por Brecht na primeira cena da peça A mãe, e também em O círculo de giz caucasiano263.