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4 Teatro épico: a crise do drama

4.2 O teatro dramático de Brecht

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caráter transformador que difere a filosofia de Marx da abordada por Hegel305.

Essa dialética retirada da sociedade para a arte é que o leva a discordar da unilateralidade da abordagem dialética de Lukács306, pois a intenção de Brecht seria tornar “a dialética um prazer”, e achava isso possível por utilizá-la de forma a estimular “a arte de viver como a alegria de viver” (PO 77). Aponta Aristóteles como um escritor em quem se observa a aplicação dessa ciência, mesmo incompleta;

utiliza como exemplo, a abordagem aristotélica em que os pássaros voam em volta das uvas pintadas por elas parecerem autênticas. A dialética do filósofo grego, porém, restringe-se à semelhança – uvas pintadas e reais, mas omite as

“dessemelhanças”, o que leva o dramaturgo a apresentá-la como orientada “num sentido único” (ET: 162).

Ao discutir a questão de Grusche, de O círculo de giz caucasiano, ter ou não direito à criança, Brecht ampliou a discussão, inserindo o ponto de vista da criança, que tem também o direito à melhor mãe. Esse exercício de aplicação dialética, realizado entre o diretor e os atores (ET: 245,246), tinha o objetivo de conscientizar a equipe de trabalho, a fim de que essa conscientização chegasse ao público e lhe despertasse a função revolucionária, que Brecht atribui ao povo.

4.2 O TEATRO DRAMÁTICO DE BRECHT

O pensamento “múltiplo e contrastante” do poeta também abarcou, como não podia deixar de ser, os gêneros literários; desde o início de sua carreira, as peças brechtianas nunca se conformaram em ser dramáticas. A peça que mais se aproxima da concepção “aristotélica” de teatro é Os fuzis da Senhora Carrar, escrita em 1937, tendo como assunto a guerra civil espanhola; essa “dramatização” da obra

305Assunto abordado no primeiro capítulo, tópico Hegel e subtópico A dialética materialista de Marx.

306Assunto abordado no primeiro capítulo, tópico Lukács.

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remete à própria teoria de Brecht, em que citava a possibilidade de se utilizar a catarse para a produção de um efeito rápido, como emergência, à situação em que se encontrava, e na época em que a escreveu. Hitler governava absoluto, tudo caminhava para que a previsão de Heinrich Mann, feita seis anos antes, se cumprisse:

É possível que agora os alemães caiam presa do nacional-socialismo e permitam que ele triunfe, porque mais uma vez ouvem o chamado do abismo. Os alemães ouviram muitas vezes esse chamado. A vitória do nacional-socialismo é possibilitada porque neste país a democracia nunca foi obtida no sangrento campo de batalha. (...) E agora a maioria apela para o Estado, suplicando ajuda. (...) Mas o Estado já abandonou a maioria. (...) Vemos o exército particular de Hitler tratado pelo governo não como inimigo, mas como aliado desejável. (...) se conseguirem estabelecer sua fátua autocracia, em benefício de quem estarão governando? De seus credores, uma série de pessoas que se intitulam

‘economia’, e que já levaram duas vezes o país à ruína. Eles impeliram o Primeiro Reich para a guerra; e o segundo para o nacional-socialismo. (...) O Reich dos falsos alemães e dos falsos socialistas sem dúvida se erguerá depois de um banho de sangue, mas isso não é nada em comparação com o sangue que correrá quando ele desabar.307

Não foi fácil, porém, para o dramaturgo, adaptar-se a esse trabalho:

“Brecht ficou embaraçado pela supressão dos efeitos épicos, que teriam tornado a tela muito mais ampla e o habilitariam a clarear todos os temas importantes por trás do conflito espanhol”308. Para a apresentação na Suécia, escreveu um prólogo épico, em que o irmão de Carrar, Pedro, responde aos guardas franceses sobre o porquê da revolta:

Ela também perguntou: por que lutar? Não fez isso no final, mas durante longo tempo. E, como ela, outros também fizeram essa pergunta por longo tempo, quase até o fim. E, porque ficaram fazendo essa pergunta por tanto tempo, foram derrotados. Está vendo? E se algum dia você continuar fazendo essa pergunta, também será derrotado.309

A interpretação de Helene Weigel, como protagonista, também deveria

307EWEN, op. cit., p. 241.

308Id., Ibid., p. 299.

309 Apud EWEN, F. Bertolt Brecht: sua vida, sua arte, seu tempo. Trad. Lya Luft. São Paulo: Globo, 1991. p. 299.

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preconizar a épica, mas foi limitada pelo texto. Sendo um marco em sua obra, é importante apontar algumas características que diferencia Os fuzis da Senhora Carrar do restante da obra brechtiana e quais os traços incluídos nesse drama que o encaixam na classificação de teatro dramático.

A peça trata da resistência de uma viúva em deixar que seus dois filhos se envolvam na guerra civil espanhola; ela perdera o marido em combates pela democracia e tinha medo de que os rapazes também morressem – acreditava que ficando neutra, nada aconteceria a sua família. O filho, pescador, em obediência à mãe, jogou o barco ao mar e foi trabalhar, sendo o único que exercia a função naquele dia, já que os outros rapazes já haviam ido se apresentar ao front – da janela de casa, era vigiado por Carrar. A peça se desenvolve em algumas horas desse dia. O revolucionário Pedro, irmão da viúva, vai visitá-los na intenção de levar para frente de combate as armas do cunhado morto, escondidas pela mulher. Carrar não autoriza o transporte dos fuzis, argumentando sua neutralidade e ódio pela violência. Algum tempo depois, porém, pescadores trazem seu filho morto: o rapaz estava pescando e foi abatido por barcos de Franco: “iam passando por ele e mandaram bala, sem mais nem menos”. A mulher, então, além de ceder os fuzis, resolve se engajar, com o irmão e o filho mais novo, na guerra.

Segundo Szondi310, o texto dramático remete a um desligamento de tudo o que não é ele mesmo, como o dramaturgo, espectador, tempo e espaço, contando, ainda, com a chamada “unidade de ação”. Os fuzis..., apesar de transmitir a ideologia e o pensamento de Brecht, não o apresenta como autor, e em nenhum momento a peça remete a ele; também os personagens conversam todo o tempo entre si, sem que o espectador seja claramente incluído no texto, e mesmo as falas utilizadas para explicar a situação e defender os revolucionários são espalhadas no decorrer da peça, utilizando mais de um personagem para transmiti-las, em falas

310Assunto tratado no item “A épica no teatro”, neste capítulo.

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dramáticas, não narrativas, e somente uma fala épica é encontrada em todo o texto, na cena em que a vizinha, senhora Perez, explica sua situação como mãe após a morte da filha em combate:

A senhora teme é pelos seus filhos, senhora Carrar. As pessoas nem sempre imaginam como é difícil criar os filhos, nos dias de hoje. (Volta-se um pouco para o operário, a quem não tinha sido apresentada.) Agora, depois da morte de Inez, não me restam tantos. Dois não foram além dos cinco anos: perdi nos anos da fome de 1898 e 1899. Andrés, eu nem sei onde está: a última carta que mandou foi do Rio de Janeiro, lá na América do Sul.

Mariana está em Madri, sempre se queixando; ela nunca foi muito forte. Nós, os velhos, sempre imaginamos que tudo quanto vem depois é mesmo um pouco mais frágil.311

A narrativa do destino dos filhos garante o único hibridismo dramático-épico do trabalho. O texto está concentrado em três unidades: a de ação, a resistência da senhora Carrar e sua conseqüência; tempo, um único dia; e lugar, a casa da viúva, preservando as três unidades renascentistas. Os fuzis da senhora Carrar foi sendo construída diante do público, tal qual o escudo de Vulcano, citado por Lessing, foi sendo construído dramaticamente diante do leitor.312 E apesar da interpretação orientada por Brecht para essa peça preconizar os pontos épicos na apresentação, um fato chamou a atenção para o quanto encenação e texto são interligados: Helene Weigel, interpretando a protagonista, emocionou-se de tal maneira que chegou às lágrimas no palco, o que Brecht criticou:

Weigel, em algumas ocasiões, rompeu em pranto em alguns trechos, totalmente contra a sua vontade, e para prejuízo do espetáculo. (...) Se foi porque a guerra Civil tomara um mau rumo para os oprimidos naquele dia, ou porque por algum outro motivo Weigel estava aborrecida, apareceram lágrimas em seus olhos quando ela proclamou sua condenação do filho, que já fora assassinado. Ela não chorou como uma camponesa, mas como uma atriz diante da camponesa. Vejo nisso um erro, mas não vejo nenhuma de minhas regras infringida.313

Pelo contrário, Brecht deveria ter visto, nesse ato, a ratificação de sua

311 BRECHT, B. Teatro completo: Os fuzis da senhora Carrar. Trad. A. Bulhões. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 41-42.

312Assunto tratado no tópico Lessing, no capítulo um.

313EWEN, op. cit., p. 299.

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teoria, em que ator e texto devem atuar juntos para substituir a emoção pela razão.

Mas a falta de experiência com textos tão aristotélicos talvez não permitisse que ele vislumbrasse essa possibilidade; desde o início de sua carreira, o hibridismo foi marca de sua produção, e as obras apresentadas no próximo capítulo dão conta do quanto essa característica estava entranhada no dramaturgo.