• Nenhum resultado encontrado

A ideia de impunidade e o retorno à “justiça privada”: os casos de linchamento no Brasil

2 REPRESSIVISMO PENAL, MÍDIA E OPINIÃO PÚBLICA

3 A INFLUÊNCIA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NA POLÍTICA CRIMINAL E NO RECRUDESCIMENTO PUNITIVO: UMA ANÁLISE A PARTIR DE DOIS CASOS

3.3 A ideia de impunidade e o retorno à “justiça privada”: os casos de linchamento no Brasil

Como já foi abordado, o sentimento de solidariedade para com a vítima é, na sociedade moderna, substituído pela identificação com essa. Em uma sociedade passiva e insegura, as pessoas se veem como vítimas em potencial e nunca como possíveis delinquentes. Essa identificação acaba por despertar um sentimento de vingança, típico e até justificável de quem sofreu o dano, mas que se alastra por toda a coletividade. O delinquente, aos poucos, é transformado em um inimigo comum e visto como um todo criminoso, um sujeito estranho e ameaçador, pertencente a outro grupo. Sá (2012, p. 220) explica que a sociedade, na luta contra este criminoso,

deixa emergir em si um eu primitivo, caracterizado por um instinto primitivo, que é a hostilidade, a qual ela dirige contra aquele que ameaça os bens e privilégios individuais. O objetivo da luta é a exclusão e destruição do outro, e não sua recondução ao grupo.

A história do Brasil esteve assentada em violência desde o período da escravidão, onde os castigos físicos, tortura e a morte de escravos era prática banal e vista com naturalidade à época, passando pelo período ditatorial, onde são conhecidas também a ampla utilização da prática de tortura pelos agentes estatais. Pode-se por assim dizer, que a violência está inserida na cultura brasileira e a população está “acostumada” com ela.

Para o sociólogo José de Souza Martins (2016), em entrevista concedida à Editora Contexto, as pessoas lincham porque tem medo das pessoas que estão sendo linchadas e o fazem buscando eliminar esse medo, que pode ser procedente, quando de fato a pessoa é responsável por algum crime, ou improcedente, quando essa não cometeu crime algum. Segundo ele, trata-se de uma forma de violência atípica, espontânea e súbita, que difere de todas as outras, uma vez que é uma forma de violência auto defensiva. Os linchadores são pessoas comuns, em geral não criminosas, mas que atemorizadas pela violência, decidem agir preventivamente, eliminando o fator do medo.

Segundo Sinhoretto (1998 apud WELHINJTON CAVALCANTE RODRIGUES, 2016, p. 120), o linchamento pode assim, “ser interpretado como expressão coletiva de um certo grupo que, mobilizado por uma revolta, investe contra um ou mais indivíduos considerados transgressores de regras fundamentais, para aplicar-lhes justiça sem intermediações”.

Martins (2016) relata que com o fim da ditadura militar no Brasil, criou-se o que se pode chamar de cultura de linchamento, sendo que tem ocorrido em média um por dia em nosso país, número que vem crescendo, o que demonstra que a tensão social também vem aumentando. A mídia cumpre papel importante nesse aumento, uma vez que alimenta diariamente o medo e a insegurança da população devido a predileção por veicular cada vez mais casos de crimes e violência.

Sobre isso, Rodrigues (2016, p. 126) alerta para o fato de que “nas últimas décadas tem-se construído um certo imaginário social sobre a violência decorrente do excesso de sua tematização propagado na mídia, o que serviu para produzir atitudes sociais ligadas a violência”.

Programas sensacionalistas policialescos nos moldes do Cidade Alerta, apresentado por Marcelo Rezende ou Brasil Urgente, de José Luiz Datena, reforçam diariamente discursos de ódio e penalização e incitam a atos violentos. Helena Martins (2016), relembra episódio em que Marcelo Rezende, em transmissão ao vivo do programa Cidade Alerta, durante perseguição policial a dois homens suspeitos de

realizar um roubo, profere a frase “atira, meu filho; é bandido”. Manifestações desse tipo, durante a programação de rádios e televisão, são corriqueiras. Como exposto anteriormente, em estudo realizado por 30 dias analisando 28 veículos de mídia, constatou-se 151 ocorrências de incitação à desobediência ou desrespeito às leis, 127 de incitação ao crime e à violência.

Para Rodrigues, (2016, p. 124-125)

a banalização dos linchamentos é um processo que consubstancia uma cultura de extermínio largamente discutida e levada à exibição pela mídia por estar associada a vingança privada que subtrai do Estado a função de combater a criminalidade. De tal maneira que surge nas pessoas o desejo de resgatar e manter as rédeas das suas próprias vidas, sendo a violência uma das principais ferramentas para atingir tal meta.

Pode-se dizer que a prática da justiça privada em que se constitui o linchamento é fomentada pela mídia, principalmente quando se ouve os discursos de que “a polícia prende e o juiz solta”, ou que “bandido bom é bandido morto”, que induzem a acreditar que a justiça formal é ineficaz. Por isso, “com o fito de resolver o conflito social instaurado, não solucionado pelas autoridades judiciárias e policiais, os linchadores realizam uma justiça sem intermediações e incompatível com a justiça formal” (RODRIGUES, 2016, p. 128).

No início de fevereiro de 2014, o site Pragmatismo político noticiou um caso de linchamento ocorrido no Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, onde um jovem negro foi espancado, teve sua orelha cortada e foi preso nu junto a um poste por uma trava de bicicleta, por um grupo de três homens que se auto intitulavam “justiceiros”. Boatos davam conta de que se tratava de um ladrão. Após noticiar o ocorrido, Rachel Scheherazade, âncora de um jornal apresentado em horário nobre, se pronunciou:

“o marginalzinho amarrado ao poste era tão inocente que em vez de prestar queixa contra os seus agressores, preferiu fugir, antes que ele mesmo acabasse preso. É que a ficha do sujeito está mais suja do que pau de galinheiro. Num país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, que arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre de violência endêmica, a atitude dos "vingadores" é até compreensível. O Estado é omisso. A polícia,

desmoralizada. A Justiça é falha. Que que resta ao cidadão de bem, que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, claro! O contra- ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: "Façam um favor ao Brasil. Adote um bandido!".

Após a fala da jornalista e a repercussão do caso na mídia, observou-se um aumento nos casos de linchamento, conforme pesquisa1 realizada pela reportagem do Estado de Minas. Um desses casos aconteceu pouco tempo depois que uma página de notícias no facebook denominada “Guarujá Alerta” divulgou o retrato falado de uma mulher que supostamente vinha sequestrando crianças com o intuito de as usar em rituais de magia negra. O retrato falado se espalhou rapidamente pelos meios eletrônicos e a população estava mobilizada em encontrar a suposta sequestradora. No dia 03 de maio de 2014, Fabiane Maria de Jesus foi confundida com a possível criminosa e em pouco tempo, sem a possibilidade de defesa, a dona de casa foi sumariamente processada, julgada e condenada à morte por linchamento pelos moradores da região (RODRIGUES, 2016).

Diante desses casos e da forma como se desenvolveram, seja com a incitação de meios de comunicação ou a aprovação desses, é interessante a fala de José de Souza Martins (2016) quando indagado, pela revista Fórum sobre “De que forma a mídia e alguns jornalistas formadores de opinião contribuem para fortalecer a cultura do “olho por olho, dente por dente”:

Aqueles setores da mídia que têm optado pela transformação do crime e da repressão em espetáculo têm contribuído para a difusão da vendetta popular. No Brasil, no geral, a mídia não se preocupa com um balanço equilibrado do noticiário. É raro que o noticiário de rádio e tevê dê algum destaque a êxitos e conquistas do povo brasileiro, na universidade, nas artes, nas fábricas, na literatura. A preferência é pelo crime, pelos desastres, pelas anomalias, pela violência. Ao fim do noticiário da noite não há como não acharmos que somos um povo em estado de barbárie, distante da civilização e da competência criativa nos vários campos da realidade social. Somos apresentados a nós mesmos como um povo sem alternativa, a não ser a de nos defendermos com os próprios punhos.

1http://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2014/05/04/interna_nacional,525092/brasil-vive-barbarie-em-serie-

Diante disso, não se pode duvidar da influência da mídia no aumento dos casos de linchamento no Brasil. Influência que se dá de diversas formas, desde a escolha da violência como produto principal, que alimenta a sensação de medo da população, aos discursos que induzem a sociedade de massa a crer na ineficiência do aparato estatal no controle da criminalidade, e, ainda, aos próprios discursos de apoio e incitação à prática de justiciamento privado.

3.4 Direitos humanos, dignidade da pessoa humana e função punitiva: a