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A violência como produto e o discurso do medo e da insegurança na mídia tradicional

2 REPRESSIVISMO PENAL, MÍDIA E OPINIÃO PÚBLICA

2.2 Mídia, opinião pública e discurso punitivo

2.2.1 A violência como produto e o discurso do medo e da insegurança na mídia tradicional

Na sociedade moderna, segundo Vinicius de Toledo Piza Peluso (2012) podemos encontrar três importantes características: uma sociedade de massa, a crise do paradigma do “Estado do Bem-Estar Social” e uma “Sociedade do Risco”. A sociedade de massa, é aquela formada pelo homem médio, sem qualificações específicas, que se sente como todos e não se valoriza individualmente, que busca seu bem-estar, preocupando-se tão somente com os seus direitos e que tem suas ideias formadas, considerando-as completas e suficientes. Nesta sociedade de massa, o conhecimento que o homem tem do mundo é determinado pela forma como ele o conhece, o que hodiernamente se dá através dos meios de comunicação, que são responsáveis, através das informações que transmitem, por criar a realidade percebida pelos indivíduos. (PELUSO, 2012)

É marcante também a crise do paradigma do “Estado de Bem-Estar Social” que está sendo vivenciada. Esse modelo fez com que os sujeitos se tornassem passivos frente a um Estado provedor, que intervinha fortemente em questões como saúde, educação e economia, passando uma ideia de segurança, e que agora, em crise, intervém cada vez menos, gerando inúmeros problemas sociais, como o desemprego, o que tem tornando as próprias pessoas um “risco” umas às outras (PELUSO, 2012).

Segundo Hauser (2010, p. 27), Beck observa que a sociedade de risco

nasce a partir do vertiginoso desenvolvimento da sociedade industrial moderna em que, paralelamente aos avanços produzidos, também foram criados novos riscos, que assumem proporções que ameaçam a vida do planeta. Com a emergência desta moderna sociedade de risco, que acentua os medos e as inseguranças, também se vislumbra o surgimento de um Direito Penal do risco e do medo, que, longe de manter seu caráter subsidiário, tem se convertido em um direito penal expansivo, marcado pelo acolhimento de novos bens jurídicos e pelo rompimento com as garantias penais clássicas.

O avanço em tecnologia atômica, química, genética, dentre outras áreas, traz consigo inúmeras ameaças, que ocupam um lugar predominante. Os riscos gerados pelo avanço dessa tecnologia vão saindo do controle e “os conflitos de distribuição dos bens sociais (empregos, saúde, educação, segurança pública, etc.) são superpostos pelos conflitos de distribuição dos danos coletivamente produzidos” (PELUSO, 2012, p. 177), ou como refere Wermuth (2011, p. 26), a “distribuição de riquezas” foi substituída pela “distribuição de riscos”.

Wermuth (2011, p. 28) atenta para a visão de Bauman, que propõem a substituição do termo “risco” por “incerteza”, que melhor caracterizaria o mundo globalizado. O risco, dito de uma maneira muito simplória, pode ser calculado à medida que se aproxima dos sujeitos, e a incerteza, se refere aos perigos que não são passíveis de cálculo de probabilidade e que quanto mais se afastam dos indivíduos, mais fazem com que ela cresça. Fruto dessas incertezas é o medo, que está cada vez mais presente na sociedade frente à constante exposição aos novos perigos que surgem a cada dia, sendo a criminalidade um dos medos que atormentam a população (WERMUTH, 2011).

Todas essas características da sociedade moderna desencadearam o que os sociólogos, segundo Peluso (2012, p. 178), chamam de “sensação social de insegurança”, em que os sujeitos, passivos, não atuantes e que trocaram sua liberdade de ação pela necessidade de segurança, transferida para o Estado junto com sua própria garantia de existência, identificam-se com as vítimas, também passivas, considerando-se alvos em potencial dos sujeitos ativos, que são os delinquentes.

Essa identificação da coletividade com a vítima, de acordo com Alvino Augusto de Sá (2012), se dá diante do forte pacto existente entre mídia, opinião pública, políticos e instâncias de controle, que contribuem como um todo para que o delinquente passe de “inimigo” pessoal da vítima, para inimigo da sociedade. O sentimento de solidariedade é substituído pelo de identificação, onde as pessoas se põe no lugar de vítima e sentem como se elas próprias o fossem, preocupando-se não em ajudar o ofendido, mas em se vingar do agressor.

A mídia, considerada principal fonte de informação das massas quanto aos fatos que estão acontecendo no mundo exterior, exerce papel fundamental na formação de opinião dos indivíduos, que como dito, percebem a realidade de acordo com o que lhes é divulgado. Ocorre que, hodiernamente, a monopolização das empresas de comunicação se tornou característica principal do que Peluso (2012, p. 179) chama de “a era da informação global”. A atuação das empresas de comunicação passou a ser regida pelas leis de mercado e a informação, que tem como objetivo atingir a sociedade de massa, tornou-se uma mercadoria.

Dentro deste negócio lucrativo que se tornou a comunicação, o produto que mais vende é inegavelmente a violência. Para Wermuth (2016b), “a criminalidade, ou melhor, o medo de tornar-se vítima de um delito, transforma-se na principal mercadoria da indústria cultural do Brasil”. Nessa linha, Peluso (2012) explica que há na sociedade uma obsessão pelo medo e pela segurança, portanto, diante dessa demanda, aumenta o número de notícias acerca da violência e dos delitos. Interesse que não é exclusivo da sociedade moderna, tendo surgido ainda no século XVII, quando os delitos, bem como as punições públicas aos autores desses, já despertavam a curiosidade da população.

Insta salientar que a necessidade diária de informação para ser repassada ao público, bem como a escassez de fontes que informem o acontecimento de fatos delituosos, acaba por fazer com que os jornalistas as busquem junto a fontes institucionais que nem sempre são neutras, tais como a polícia e o Ministério Público, o que vai fazer com que a notícia já “nasça” parcial (PELUSO, 2012).

Embora não tenham dados precisos que possam comprovar, inúmeros estudiosos acreditam que existe uma influência mútua entre o discurso sobre o crime – atos violentos – e o imaginário que a sociedade tem dele, e, como anota Barata, apesar das dificuldades para estabelecer uma relação absoluta de causa/efeito entre as notícias e o medo dos delitos, pode-se sustentar que existe uma relação sólida entre as ondas de informação e a sensação de insegurança (PELUSO, 2012, p. 180).

De encontro a essa mesma linha, a socióloga Maria Stela Grossi Porto (2016, s/p) explica que o real é transformado em espetáculo pelos meios de massa e

o fenômeno da violência, transformado em produto, com amplo poder de venda no mercado de informação, e em objeto de consumo, fazendo com que a “realidade” da violência passe a fazer parte do dia-a-dia mesmo daqueles que nunca a confrontaram diretamente enquanto experiência de um processo vivido.

Além do interesse por essas questões, há o desinteresse, por exemplo, por assuntos referentes à política, diante da crise de credibilidade pela qual essa passa, o que faz com que as informações referentes à criminalidade ganhem cada vez mais espaço. Diante disso, a violência, produto altamente rentável, passa a ser exposta sistematicamente, criando-se a impressão de que é algo muito mais corriqueiro do que realmente é.

Carvalho Filho (2003, p. 235) assevera que a forma como a informação é tratada é capaz de despertar medo e desencadear mudanças no comportamento, tanto individual quanto coletivo. Acompanhando seu pensamento, Wermuth (2016, s/p) aduz que “a mídia cada vez mais faz uso da repercussão de alguns casos e busca, com isso, moldar o pensamento das pessoas, sem que elas percebam, e de forma sensacionalista, os discursos de lei e ordem acabam por prevalecer”.

Assim, a repetição de notícias violentas induz as pessoas a crerem que estão diante do aumento sistemático da criminalidade no país, o que aumenta o medo e a insegurança. Engelmann, Callegari e Wermuth (2016, p. 213) destacam que

o medo é o sentimento que leva a população a ansiar pelo recrudescimento punitivo, ainda que à custa da violação dos direitos e garantias fundamentais (alçados à categoria de “discursos vazios” de órgãos de proteção dos – imagine-se! - direitos humanos) dos acusados.

Os fatores que, segundo Wermuth (2016), são passíveis de justificar a predileção da população pelo Sistema Penal como resposta à criminalidade em detrimentos de alternativas diversas de solução de conflitos são

o cada vez maior sentimento de insegurança, derivado da criação, principalmente por meio da atuação da mídia sensacionalista, de um ambiente de alarmismo injustificado acerca da matéria, que redunda em um movimento de expansão do Direito Penal, e a repristinação, paralelamente a esses discursos, da necessidade de um maior rigor no “controle” daquelas classes consideradas “perigosas”, porque dissonantes do modelo imposto pelas hegemonias conservadoras que, no país, sempre temeram uma possível insurreição desses estratos sociais.

Não se pode deixar de discutir que na busca por tornar o produto violência mais atraente para seus consumidores através da espetacularização com que se noticia os fatos, são sistematicamente violados uma série de direitos dos acusados. Helena Martins (2016), aponta que em estudo ainda inédito realizado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância - ANDI, juntamente com o Intervozes, o Ministério Público Federal e a Artigo 19, em que foram analisados alguns programas ditos “policialescos”, foi apontado que “pelo menos 12 leis brasileiras e 7 tratados multilaterais são desrespeitados cotidianamente por esses programas, entre eles a Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Martins (2016) chama atenção para o fato de que

a análise de 28 programas veiculados por emissoras de rádio e televisão em dez estados diferentes, ao longo de 30 dias, constatou que 1.936 narrativas possuíam violações. Entre elas: 1.709 casos de exposição indevida de pessoa; 1.583 de desrespeito à presunção de inocência; 605 de violação do direito ao silêncio; 151 ocorrências de incitação à desobediência ou desrespeito às leis; 127 de incitação ao crime e à violência; 56 casos de identificação de adolescentes em conflito com a lei; 24 registros de discurso de ódio e preconceito; 18 ocorrências de tortura psicológica e degradante, entre outros crimes. O que demonstra, nos dizeres de Engelmann, Callegari e Wermuth (2016, p. 218) que “a busca pela audiência se tornou mais importante do que a ética jornalística”. Atentando-se para o fato de que o ““compromisso” entre a mídia e o sistema punitivo brasileiro acaba por reforçar estereótipos historicamente construídos em relação à clientela do Direito Penal no Brasil”, uma vez que os fatos classificados como noticiáveis reforçam o estereótipo de criminoso como sendo, entre outras características, o jovem negro morador da periferia.

Diante do exposto, pode-se dizer que a mídia, que não é imparcial, além de mostrar uma violência espetacularizada e fazer com que essa pareça mais frequente

do que realmente é, aumentando a sensação de medo e insegurança, vende também um discurso punitivo no qual o recrudescimento penal é tido como solução para a questão da criminalidade, disseminando discursos de ódio e implantando na população noções de movimentos repressivistas tais como o modelo do Direito penal do inimigo e discursos de lei e ordem, que são fortemente aceitos e acabam ganhando espaço na produção legislativa brasileira e influenciando na política criminal brasileira, bem como no comportamento das pessoas, como será apresentado no próximo capítulo.

3 A INFLUÊNCIA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NA POLÍTICA CRIMINAL E