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3.4 CONTRA O DETERMINISMO SOCIAL E IDEOLÓGICO:

3.4.2 Identidade e Alteridade

A consciência humana constitui-se num produto social. Com isto, afirma-se que a formação da identidade humana é resultado de uma construção coletiva, onde a identidade do outro reflete na minha, e a minha na dele (Antônio Ciampa, 1994). Desta forma, a identidade é metamorfose, é movimento, é uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, no entanto una. É a partir da construção da identidade que o indivíduo conhece, reflete sobre si mesmo, estabelece o seu “eu”. O que é fundamental para o ordenamento das relações sociais, pois, contraditoriamente, essa construção não é feita individualmente. Toda a história do indivíduo começa no processo de sua socialização, na sua relação com o outro, sendo a interação social a matéria-prima para o desenvolvimento social. Com isso, Antônio Ciampa defende que não é possível dissociar o estudo da identidade, do estudo da sociedade, pois:

As possibilidades de diferentes configurações de identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social [...] é do contexto histórico e social em que o homem vive que decorrem suas determinações e, conseqüentemente, emergem as possibilidades ou impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade. (CIAMPA, 1994, p.72)

Por outro lado, a concepção de que a identidade é definida pelo sistema dominante através dos seus mecanismos de controle, os quais são transmitidos e disseminados no caráter

repetitivo das necessidades experimentadas na vida cotidiana, onde as crenças, valores, ideologias e representações da realidade a configuram, tornam o conceito um tanto quanto fixo, determinista e fazem desaparecer a ação do sujeito.

Fugindo de uma perspectiva determinista e considerando os indivíduos como sujeitos de sua vida, com liberdade para agir ou não; fala-se em identidades em movimento, as quais são vistas numa dinâmica de desestruturação/reestruturação nos termos propostos por Claude Dubar (2005), cuja dinâmica às vezes assume a aparência de uma “crise de identidades”.

Numa perspectiva sociológica, seguindo o pensamento Claude Dubar (2005), a socialização “inicial”, durante a infância, combina mecanismos de desenvolvimento das capacidades e construção de “regras, valores e signos” (Piaget), oriundos da família de origem e também do universo escolar e dos grupos etários nos quais as crianças realizam suas primeiras experiências de cooperação. É assim que elas forjam para si, as primeiras identidades por assimilações e acomodações sucessivas. Essa socialização também contribui para fornecer as referências culturais, a partir das quais os indivíduos terão de identificar seus grupos de pertencimento e de referência, interiorizar seus traços culturais gerais, especializados, opcionais e individuais, antecipar suas socializações posteriores. Estas se inscrevem em trajetórias sociais que implicam, a partir de “disposições” adquiridas durante a educação fundamental, a validação de “capitais econômicos e culturais” a um só tempo desiguais no início e com rentabilidade diferente conforme os campos da prática social. Essa socialização contínua é inseparável das transformações estruturais que atingem os sistemas de ação e induzem modificações periódicas das identidades, previamente, constituídas e das “construções mentais” a elas associadas.

Cada configuração identitária assume hoje a forma de um misto em cujo cerne as antigas identidades vão de encontro às novas exigências da produção, e as antigas lógicas que perduram entram em combinação e às vezes em conflito com as novas tentativas de racionalização econômica e social. Esses mistos de permanência e de evolução, de antigo e de novo, de estável que se torna ameaçador, e de instável que se torna valorizador são evidenciados por análises empíricas cada vez mais numerosas, que ora insistem na permanência, ora na mudança.

Com isso, Claude Dubar (2005), entende que as identidades sociais e profissionais típicas não são nem expressões psicológicas de personalidades individuais, nem produtos de estruturas ou de políticas econômicas impostas de cima, foge-se assim de uma perspectiva determinista. As identidades sociais e profissionais são construções sociais que implicam a interação entre trajetórias individuais e sistemas, por exemplo, de emprego, de trabalho e de

formação. Essas identidades constituem formas sociais de construção de individualidades, à cada geração, em cada sociedade.

No entanto, para Claude Dubar (2005), isso não significa que a identidade no trabalho seja a única dimensão da identidade pessoal, do que pode ser chamado, não sem precaução, de Si-mesmo. A questão difícil é a da articulação das esferas de atividade na vida pessoal, e a existência (ou não) de uma identificação principal, por si ou pelos outros. Para o autor, neste sentido, uma das teses mais importantes dos últimos trabalhos de François de Singly é a da primazia crescente da vida privada sobre as outras esferas sociais e da importância cada vez mais decisiva do Outro significativo (o cônjuge especialmente), na socialização “secundária” na idade adulta.

Trata-se, portanto, de uma análise propícia aos estudos das transformações na família contemporânea. Nesse sentido, é preciso ratificar que a abordagem de gênero sempre apontou que relações sociais e o conhecimento da realidade social do trabalho e da família só acontecem para as mulheres, quando consideradas as esferas pública e privada de suas vidas e suas implicações. No entanto, no atual contexto, ao que parece, o lugar das mulheres no trabalho e na família, não é tão somente, determinado pelos aspectos sociais e culturais, é também demarcado pelo desejo, o sentimento de pertencimento e identificação dos sujeitos e seus projetos profissionais, familiares e pessoais.

Favoravelmente, François de Singly, traz elementos que podem ampliar as análises sobre os âmbitos psicológicos da dominação e a dimensão da afetividade, ambos fazem com que mulheres conscientes da opressão, da desigualdade da divisão do trabalho doméstico continuem a se incumbir deste trabalho doméstico, colocados por Helena Hirata e Daniele Kergoat (2007).

Para François de Singly, é na e pela relação amorosa que se constroem, junto e livremente, identidades pessoais que são também formas do “Eu conjugal”, asseguram e preservam a construção do “Si-mesmo íntimo”. Por isso, a dupla transação pela qual se constroem (e se destroem) “formas identitárias”, se torna complexa e se desdobra, segundo concirna aos papéis públicos ou à intimidade privada. Tudo se passa como se a subjetividade já não fosse apenas “socialmente construída”, mas também e cada vez com mais autonomia, “intimamente trabalhada”. A questão é saber, quais relações existem na idade adulta, entre as categorias de identificação que provêm das instituições “oficiais”, e as categorias “indígenas” que emergem das interações da vida cotidiana? Tal questão é indissociável do problema das fontes de reconhecimento de si, e também da estrutura das atividades (de trabalho, mas também sexuais, familiares, lúdicas, culturais etc.) na organização da vida social e psíquica.

Nesta perspectiva, a relação entre as diversas esferas de atividade é, portanto, uma questão essencial na construção da subjetividade: o “si-mesmo íntimo”, inclusive (e talvez, sobretudo) nas relações amorosas, se nutre das experiências familiares, profissionais, políticas e outras, e tenta, com a ajuda dos outros (Outro significativo e generalizado), mas também solitariamente, enredá-las. Esse enredamento permite, por si só, a produção compreensiva e narrativa de uma “identidade pessoal” que articula as diversas esferas da existência.

Esta perspectiva é válida para as análises que se propõem a articular as esferas da vida profissional, familiar e pessoal, e que não focalizam tão somente a maternidade, mas priorizam aspectos da conjugalidade; para as que questionam os âmbitos psicológicos da dominação patriarcal numa perspectiva de gênero; e para as que se preocupam em conhecer as relações sociais e interpessoais entre os sexos, fazendo aparecer o sujeito. Ratificando que as identidades sociais e profissionais são construções sociais que implicam a interação entre trajetórias individuais e sistemas, e constituem formas sociais de construção de individualidades, a cada geração, em cada sociedade.

Para fazer aparecer o sujeito não vitimista, nesta tese, apresenta-se como caminho viável, a compreensão da subjetividade socialmente construída e intimamente trabalhada. Um debate que se inicia a partir do conceito de alteridade.

Andrea Zanella (2005) analisa o conceito de alteridade na perspectiva da psicologia (Jodelet), da física (Rolnik), da antropologia, entretanto a autora apresenta elementos interessantes para esta tese, a partir da Teoria de Vygotski e suas análises sobre espaços intrapsicológico entendido como inexoravelmente relacionado ao contexto social, interpsicológico, fazendo, portanto, uma análise sobre sujeito e alteridade na perspectiva histórico-cultural.

Nesta perspectiva, para Andrea Zanella (2005), a constituição do psiquismo humano origina-se das relações sociais, isso implica que através da atividade humana o ser humano transforma o contexto social no qual se insere, e nesse processo constitui a si mesmo como sujeito, constituindo seu psiquismo. O processo de constituição da psique humana é social, já em sua origem é marcado tanto pelas conquistas históricas do gênero humano quanto pelas marcas singulares que socialmente produzimos. E esta (a psique humana), é parte integrante de um processo complexo com duas vertentes: consciente e inconsciente.

A atividade humana caracteriza-se pelo trabalho social e este, mediante a divisão de suas funções, origina novas formas de comportamento, independentes dos motivos biológicos elementares. A conduta já não está determinada por objetivos instintivos diretos [...] O trabalho social e a

divisão do trabalho provocam a aparição de motivos sociais de comportamento. É precisamente em relação com todos esses fatores que no homem criam-se novos motivos complexos para a ação e se constituem essas formas de atividade psíquica específicas do homem. Nestas, os motivos iniciais e os objetivos originam determinadas ações e essas ações se levam a cabo por meio de correspondentes operações especiais. (LÚRIA, 1986, 21- 22 apud ZANELLA, 2005, p.101).

Assim, por ser a atividade humana mediada é que se pode afirmar que a origem da psique humana é social. Nesta perspectiva, para Andrea Zanella, os signos consistem em forma de linguagem e proporcionam a relação entre linguagem e consciência; apresentam-se como responsáveis pelas especificidades do psiquismo humano e sua condição essencialmente mediada, pois são considerados instrumentos psicológicos, como dispositivos sociais para o domínio dos processos próprios ou alheios.

Como instrumentos que reorganizam a operação psíquica na medida em que possibilitam a regulação da própria conduta. Permitem, assim, a inserção do homem na ordem da cultura e o estabelecimento de relações qualitativamente diferenciadas com a realidade: ao invés de diretas e imediatas, estas passam a ser mediadas pelos signos, pela cultura.

A especificidade humana decorre da dupla relação que se estabelece com a realidade: via atividade, o ser humano se apropria da cultura e concomitantemente nela se objetiva, constituindo-se assim como sujeito. Desse modo, a dimensão singular é inexoravelmente constituída e constituidora do social, o que pode ser tematizado como alteridade, como a dimensão de um outro, ou das relações com outros.

Na perspectiva histórico-cultural, a questão da alteridade, ou seja, a dimensão da relação com outro é fundante do próprio sujeito, e a existência de um eu só é possível via relações sociais e, ainda que singular, é sempre e necessariamente marcado pelo encontro permanente com os muitos outros que caracterizam a cultura. Com isso, o sentido emerge como categoria fundamental na explicação, tanto das características singulares quanto coletivas de cada pessoa e ao mesmo tempo em todas, a dialeticidade das relações sociais e sua historicidade estão presentes.

Se o que caracteriza a consciência é o fato de ser semioticamente mediada, a origem social da consciência, a que se fez referência anteriormente, é explicada pela dimensão inexoravelmente social dos signos. Assim, os signos são produzidos coletivamente, particularmente apropriados e, ainda que tornados próprios trazem a marca do contexto, da época e do grupo social em que se originam. Os signos, portanto, relacionam inexoravelmente

sujeito e sociedade, eu e outro. Os signos, como ferramentas mediadoras da atividade caracteristicamente humana, são produzidos socialmente e comportam inexoravelmente tanto uma dimensão coletiva quanto privada, são porta vozes tanto da história social humana quanto das histórias dos sujeitos que os utilizam.

Resumidamente, cada pessoa para Lev Vygotski (2000), é “um agregado de relações sociais encarnadas num indivíduo”, donde se depreende que só há sujeito porque constituído em contextos sociais, os quais, por sua vez, resultam da ação concreta de seres humanos que coletivamente organizam o seu próprio viver. A assertiva é aparentemente simples e ao mesmo tempo complexa, pois remete a um todo, a um agregado anônimo que está visceralmente interligado às relações sociais e que ao mesmo tempo se dissipa em composições múltiplas, em infinitas possibilidades de vir a ser e se objetivam em cada pessoa, que encarnam e marcam a carne que se faz gente, que se faz uma/um, que é indivisível e coerente, portanto, com a sociedade e os indivíduos são reflexivos.

Considerar que cada pessoa é um “agregado de relações sociais encarnadas num indivíduo”, significa afirmar que, ao mesmo tempo há um “eu” e não há. Não há um “eu” originário, descolado dos outros, da realidade, enfim, do que o constitui como humano e como possibilidade de diferenciação. Não há essência, não há a priori. Por sua vez, cada pessoa concreta descola aspectos da realidade a partir do que significa como relevante, do que a emociona e mobiliza, constituindo assim modos de ser que são ao mesmo tempo: sociais, singulares e íntimos.

Por isso, no contexto da sociedade contemporânea e reflexiva, o que se observa são as diversidades de escolhas entre mulheres e homens. Para questionar a tese da vitimização e os aspectos afetivos e psicológicos da dominação-exploração na ordem patriarcal, obrigatoriamente deve-se conhecer como os indivíduos constituem seu modo de ser, o sujeito enquanto construtor de si, em relação consigo, com o outro e como a sociedade, que organiza seu modo de vida. Entretanto, para entender teoricamente este debate, a categoria ideologia nos dá elementos significativos.