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Identidade Ambivalente

No documento marinacarvalhofreitas (páginas 100-102)

4 APRESENTAÇÃO DOS DADOS E DISCUSSÃO

4.3 CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS

4.3.3 Identidade Ambivalente

Quando as pessoas se defrontam predominantemente com uma estigmatização e consequente discriminação mais sutil, isto é, com comportamentos que dão margens a outras interpretações que não o preconceito, aliados a uma identificação menor com as pautas sobre as relações de poder entre grupos discutidas na universidade, e uma pertença grupal construída em outras bases, desenvolve-se uma configuração identitária ambivalente. Nessa configuração, sabe-se que existe algo que não está adequado e que os inferioriza, mas as possibilidades de confronto direto ficam muito diminuídas.

A situação é experienciada como ambígua e os sentimentos são ambivalentes. Há um desconforto com o comportamento, mas ao mesmo tempo há dúvida se a leitura que se faz está adequada.

Parece que, por exemplo, vai formando grupinhos, sabe. Um professor abre um projeto de pesquisa, ele só chama homens pra estar junto com ele. Não são coisas claras, sabe, mas a gente vai percebendo que acontece... (Teresa)

É claro que existem pessoas negras e pessoas negras. De diferentes classes sociais, de diferentes famílias, com família, sem família. Enfim, de diversas formas. Mas, de modo geral, a sociabilidade da pessoa negra ali na faculdade é um pouco limitada. É complicado falar sobre isso porque a gente acaba entrando num âmbito de um nível de racismo que é muito subjetivo e estupidamente negado. Se você chega e fala pro seu coleguinha de classe: “Você está sendo racista” (eu nunca faria isso, porque eu sou orgulhoso), mas assim, falar: “Você tá me excluíndo porque eu sou preto”, a pessoa vai sentir a maior ofensa do mundo. Cara, tipo assim, o círculo de amigos de uma pessoa branca é sempre majoritariamente branco dentro do espaço universitário. Existe um não querer estar perto, preferir não estar junto. É muito subjetivo... Por isso

que eu falo: é muito complicado falar sobre essa questão. Ainda mais pra quem não observa essas rejeições pequenas que acontecem muito, o tempo inteiro. Desde o seu primário até agora, sabe? Agora é um pouco mais mascarado porque as pessoas são meio desconstruídas, né. Então acontece isso. Mas de modo geral existe uma certa segregação, uma certa distinção sim. Mas é muito complicado explicar isso. (Luiz) É uma coisa no dia a dia mesmo, muito espontânea que eu sinto. No lidar. Até mesmo professores que tentam ser mais desconstruídos no meu curso, em relação a diversidade e tal, soltam uns comentários que não cabem mais, tipo “isso aqui tá um samba do criolo doido”, umas coisas assim. (...) Comentários querendo ou não espontâneos, mas que são carregados de visões preconceituosas, avaliação. Isso é recorrente. (Teresa)

O preconceito parte de um sistema de atitudes duais: explícitas, que são conscientes e objetivas, e implícitas, muitas vezes realizadas automaticamente. Esse preconceito implícito trata-se do preconceito sutil (MYERS, 2012), que não é objetivo como o outro e, por isso, gera reações nas vítimas como as citadas nos relatos acima.

Segundo Myers (2012), em seu livro Exploring Social Psichology, o preconceito sutil está atrelado às cognições implícitas, àquilo que você sabe sem ter consciência que sabe. O fato do sujeito ter se desenvolvido culturalmente desde novo a partir de valores e normas solidifica algumas associações sobre o que é respeitoso e admirável e sobre o que não é. Ainda de acordo com o autor, outros autores como Devine e Sharp (2008), Banaji (2004), Fazio (2007), Greenwald (2000), dentre outros, confirmam que o preconceito e os estereótipos carregados de avaliação podem ocorrer sem as pessoas terem consciência deles (MYERS, 2012).

Nesse sentido, o preconceito sutil ocorre de diferentes maneiras e é muito difundido ao longo do tempo, principalmente nos tempos atuais em que as questões como diversidade, minorias e preconceito são frequentemente trabalhadas. Trata-se de atitudes estigmatizantes e discriminatórias que objetivam esconder as intenções de quem está realizando, rejeitando suposições que são raciais ou de gênero, por exemplo (MYERS, 2012). Esse preconceito sutil pode aparecer em reações exageradas no que se refere às minorias, como críticas em excesso em casos de falhas, contato físico mais exagerado que o comum (no caso de gênero) e afirmações acerca da dificuldade de seus rendimentos acadêmicos sem conhecimento prévio sobre isso (CROSBY; MONIN, 2007), como se pode observar nos relatos a seguir:

Então assim, a partir do momento em que eu percebi, e eu... não sei, acho que sou muito ingênua, no início eu não me tocava sabe?! Ah... ele me abraçava, e estava tudo bem. Até que começou a ficar uma coisa estranha, vocês sabem o que eu estou falando né?! Ficou... diferente, você sabe quando uma pessoa está te tocando com respeito, quando há consenso e quando tem alguma coisa estranha no meio do caminho, né?! (Maria)

Hoje em dia ninguém faz nada de forma direta. Hoje em dia as coisas estão muito mais difíceis até de você denunciar por conta disso. Às vezes a pessoa fala uma coisa com você, mas você não pode tomar uma providência correta, porque aquilo que ela falou não é o suficiente. É o mínimo ainda pra legislação que a gente tem, pro meio judicial que a gente tem pra recorrer. (Márcia)

Parece que é um lugar (curso de exatas) que a gente não é bem-vinda, sabe, é um ambiente que não é pra mim. Tanto que eu não vou lá sem precisar e por exemplo, uma amiga minha precisou ir buscar um certificado lá e ela não foi sabe, falou “eu não vou lá não”, não pega, sabe. Porque é um ambiente que a gente parece que a gente não é bem-vinda mesmo sabe. (Teresa)

O preconceito sutil, embora não evidente, pode gerar consequências psicológicas graves às vítimas (MYERS, 2012). Uma dessas reações consiste na ambivalência e nos sentimentos contraditórios apontados nesse tópico. A identidade ambivalente surge, então, a partir dessas contradições vivenciadas que fazem com que os sujeitos se sintam desconfortáveis, porém paralisados: eles veem e sentem as estigmatizações; mas, em função da dúvida e da sutileza dos preconceitos, acabam não fazendo nada frente às ações sofridas.

Eu acho que eu não bato de frente, no sentido direto. Mas eu me questiono dentro de mim, “quem é a Teresa, o que eu acredito, o que eu construí até agora?” Mas eu acho que hoje eu não tenho isso de forma tão clara. Mas isso é diário né, vai acrescentando todo dia um pouco na nossa identidade. (Teresa)

Embora o preconceito sutil, assim como o explícito, sejam colocados pelos autores como algo obtido da infância e habitual de muitas pessoas, essas atitudes podem ser drasticamente modificadas através da educação, visando novos hábitos e práticas que podem transformar todo o contexto (DOVIDIO; KAWAKAMI; GAERTNER, 2000).

No documento marinacarvalhofreitas (páginas 100-102)