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RELAÇÕES DE PODER ESTABELECIDOS OUTSIDERS

No documento marinacarvalhofreitas (páginas 34-37)

Conforme apontado anteriormente, Elias e Scotson (2000) elucidam as relações de poder em sociedade a partir de posições que os indivíduos ocupam, sejam estas em grupos, trabalho, família, comunidade. Tais posições foram designadas pelos autores de estabelecidos e outsiders, sendo os estabelecidos os indivíduos detentores das normas, valores e reconhecimento, enquanto os outsiders como sendo os considerados inferiores e não pertencentes a esse grupo.

Os autores realizam uma investigação observando como se dá a relação entre grupos de moradores de três bairros numa pequena cidade inglesa, nomeada ficticiamente de Winston Parva. Eles constatam que um grupo mais antigo estigmatizava o mais novo, colocando-os como “pessoas de menor valor humano”, pois se assumem “como pessoas ‘melhores’, dotadas de um carisma grupal, de uma virtude específica que é compartilhada por todos os seus membros e que falta aos outros” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 19-20), sendo capazes, ainda, de fazer com que os estigmatizados se sintam, eles mesmos, como carentes de tal virtude.

Graças ao poder de coesão do grupo mais antigo, e por meio de aparatos de controle social, “a exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 22). Percebe-se certa correspondência entre o que Elias e Scotson (2000) chamam de “estabelecidos” – um grupo com forte identidade “positiva” – e o que Castells (2001) chama de “identidade legitimadora”. Os outsiders, se e quando organizados, podem se configurar como um grupo que resiste a tal imposição identitária, no que Castells (2001) chama de “identidade de resistência”. Caso obtenham êxito, essa identidade de resistência pode vir a se tornar uma identidade de projeto, visando, quiçá, sua emancipação (FREITAS; ÉSTHER, 2018).

Conforme Elias e Scotson (2000) explicam, a forma de manter tal relação de poder se dava, de um modo mais geral, por meio da recusa dos estabelecidos a qualquer “contato social com eles [os outsiders], exceto o exigido por suas atividades profissionais; juntavam-nos todos num mesmo saco, como pessoas de uma espécie inferior” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 20). Os autores explicam da seguinte forma:

Em suma, tratavam todos os recém-chegados como pessoas que não se inseriam no grupo, como “os de fora”. Esses próprios recém-chegados, de depois de algum tempo, pareciam aceitar, com uma espécie de resignação e perplexidade, a ideia de pertencerem a um grupo de menor virtude e respeitabilidade, o que só se justificava, em termos de sua conduta efetiva, no caso de uma pequena minoria. Assim, nessa pequena comunidade, deparava-se com uma constante universal em qualquer figuração de estabelecidos-outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus membros características superiores; excluía todos os membros do outro grupo do contato social não profissional com seus próprios membros; e o tabu em torno desses contatos era mantido através de meios de controle social como a fofoca elogiosa [praise gossip], no caso dos que o observavam, e a ameaça de fofocas depreciativas [blame gossip] contra os suspeitos de transgressão. [...] o grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características “ruins” de sua porção “pior” [...] Em contraste, a auto-imagem do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar, [...] na minoria de seus “melhores” membros. Essa distorção pars pro toto, em direções opostas, faculta ao grupo estabelecido provar suas afirmações a si mesmo e aos outros; há sempre um fato para provar que o próprio grupo é “bom” e que o outro é “ruim”. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 20-23)

Análoga à concepção de Elias e Scotson (2000), é a teoria de Becker (2008), em seu livro “Outsiders: estudos de sociologia do desvio”, no qual afirma que alguns grupos impõem suas normas, valores e regras como mais verdadeiros que outros grupos. Há uma relativização das normas sociais que passam a definir o que é correto ou não: comportamentos, situações, desvios e rótulos, construções políticas e sociais (BECKER, 2008).

Nesse sentido, a sociedade é composta por diversos grupos, tendo grupos impositores de regras (dominantes) e grupos que entram em divergência com essas normas (desviantes e, assim, tidos como outsiders). Aqueles que formulam determinadas regras acerca do que é certo ou errado, do que é permitido ou não, constituem aqueles que Becker (2008) denomina de “empreendedores morais”. A rigor, são dois tipos de empreendedores morais: o criador de regras e o impositor de regras. Para o autor, eles muitas vezes se veem como verdadeiros cruzados, pois consideram sagrada sua missão de fazer com que o mundo funcione corretamente, impondo sua compreensão e visão de mundo particular a todos os demais, sejam eles cientistas, psiquiatras, governantes e assim por diante (BECKER, 2008). Como se pode perceber, dependendo da configuração das relações de poder, esses empreendedores morais podem exercer uma influência maior ou menor nas relações sociais.

Além disso, essas ações giram em torno de objetivos específicos que os grupos têm e como forma de manutenção das relações de poder. Isso ocorre quando os grupos/indivíduos que não se adequam a essas regras passam a ser julgados e rotulados como desviantes. "Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele" (BECKER, 2008, p. 27). Desse modo, "aquele que

infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsiders" (BECKER, 2008, p. 15). Tal é a concepção de Goffman (2008) e Elias e Scotson (2000).

Partindo desse princípio de uma construção de regras sociais, há uma adesão maior de alguns grupos a padrões de comportamentos e convenções, aprendizados específicos. Nesse sentido, como exemplo, há carreiras consideradas convencionais, bem como carreiras consideradas desviantes e estigmatizadas. "O comportamento normal das pessoas em nossa sociedade (e provavelmente em qualquer sociedade) pode ser visto como uma série de compromissos progressivamente crescentes, com normas e instituições convencionais" (BECKER, 2008, p. 38).

Assim, para pensar o desvio, é necessário pensar que há uma não adesão a esses comportamentos convencionais e que, nesse sentido, o grupo impositor busca colocar esses atos de não adesão como infrações públicas, que são julgadas (MOURA, 2009). Segundo Becker:

Cumpre ver o desvio, e os outsiders que personificam a concepção abstrata, como uma consequência de um processo de interação entre pessoas, algumas das quais, a serviço de seus próprios interesses, fazem e impõem regras que apanham outras – que, a serviço de seus próprios interesses, cometeram atos rotulados de desviantes. (BECKER, 2008, p. 168)

É importante colocar também que os comportamentos desviantes são comportamentos que alguns indivíduos reprovam, enquanto outros valorizam, devendo ser levada em consideração qual perspectiva social foi construída e conservada (BECKER, 2008). O autor reitera a necessidade de haver contato com os sujeitos estudados para que não haja apropriação de conceitos pré-estabelecidos, bem como afirma a necessidade de relativizar as avaliações morais, entendendo os estudos dessas relações como estudos das formas/manifestações de poder na sociedade (BECKER, 2008).

Outra forma em que as relações de poder estabelecidos-outsiders podem se manifestar é através de assédios: moral e sexual. O assédio moral é conceituado por Silva (2011, p. 100) “como uma prática inoportuna e abusiva, que atinge, em regra, a integridade física e moral do trabalhador, por meio de condutas de perseguição repetitivas e prolongadas nas quais o agressor tenta inferiorizar a vítima, hostilizando-a e depreciando-a”.

Freitas, Heloani e Barreto (2008) definem o conceito de assédio moral como:

uma conduta abusiva, intencional, frequente e repetida, que ocorre no ambiente de trabalho e que visa diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um indivíduo ou um grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo a sua dignidade e colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional. (FREITAS; HELOANI; BARRETO, 2008, p. 37)

Para que seja considerado assédio, existem ainda alguns fatores caracterizadores, como: “conduta abusiva, repetição ou sistematização dos atos, dano a integridade psíquica ou física de uma pessoa, bem como a consciência do agente assediador” (SILVA, 2011, p. 110). Porém, não há consenso na literatura no que se refere à quantidade de vezes em que o assédio foi praticado. Alguns autores defendem a repetição na conduta para que seja considerado assédio (FREITAS; HELOANI; BARRETO, 2008; HIRIGOYEN, 2014), enquanto outros afirmam que “uma violação pontual, seja ela física ou discursiva, pode impactar de maneira mais perniciosa para o sujeito do que pequenas violências sucessivas, cabendo ao próprio avaliar aquilo que mais o vitimiza, ou seja, o faz sentir-se violentado” (BICALHO, 2008, p. 12).

O assédio sexual é definido por Dias (2008) como um ato de violação de direitos, previsto pela Constituição Federal Brasileira de 1988, em que a vítima não desejou a situação, bem como teve sua dignidade afetada. Avila (2008) aponta que a diferença entre o assédio moral e o sexual é que, no segundo, há uma ação que envolve uma possível satisfação sexual por parte do assediador e que pode constranger a vítima. Ainda para essa autora, não se deve considerar assédio sexual como crime apenas casos que envolvem relações de poder e submissão, mas também casos entre pessoas em um mesmo nível hierárquico (AVILA, 2008). Segundo a Cartilha Assédio Moral e Sexual elaborada pelo Comitê Permanente pela Promoção da Igualdade de Gênero e Raça do Senado Federal (2017-2019, p. 13):

O assédio moral não se confunde com o assédio sexual. O assédio de conotação sexual pode se manifestar como uma espécie agravada do moral, que é mais amplo. O assédio sexual caracteriza-se por constranger alguém, mediante palavras, gestos ou atos, com o fim de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o assediador da sua condição de superior hierárquico ou da ascendência inerente ao exercício de cargo, emprego ou função. Há, portanto, uma finalidade de natureza sexual para os atos de perseguição e importunação. O assédio sexual pode se consumar mesmo que ocorra uma única vez e mesmo que os favores sexuais não sejam entregues pelo assediado.

Pode-se perceber que a relação estabelecido-outsider é, fundamentalmente, uma relação de poder, jamais uma característica natural ou biologicamente determinada, como grupos estabelecidos tentam fazer parecer, quanto à questão de gênero, raça/cor e diversidade sexual.

No documento marinacarvalhofreitas (páginas 34-37)