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O objetivo desta parte do trabalho é realizar um aprofundamento na temática sobre diferença cultural. Para tanto, discutiremos agora sobre a identidade e seus processos de mudança durante a transição da era moderna, pois tratar, discutir sobre diferença cultural implica falar sobre identidade. Para tratar-se sobre a diferença, discutir-se sobre identidade é condição sine qua non. Conforme Costa (2003), identidade e diferença são inseparáveis, dependendo uma da outra. Elas são produzidas em conjunto na trama da linguagem, e a identidade e a diferença são construídas dentro de um mesmo discurso.

As questões sobre identidade estão sendo discutidas amplamente na teoria social. O que se discute especificamente é que a velha ideia de identidade estabilizada, definida, está em declínio. Novas identidades surgem fragmentando o indivíduo moderno. Chamam a isso de crise de identidade.

Desde o final do século XX, a sociedade se depara com uma mudança estrutural, pois vêm ocorrendo fragmentações nos elementos culturais que se referem a gênero, classe, sexualidade, raça e etnia. Esse sentimento de mudança atinge diretamente o sujeito, podendo caracterizar-se como uma crise de identidade.

Hall (2006) apresenta três concepções diferentes de identidade: identidade do sujeito do iluminismo, identidade do sujeito sociológico e identidade do sujeito pós- moderno. Para ele, a primeira, do iluminismo, se caracteriza pelo sujeito centrado, unificado, dotado da capacidade de razão, de consciência e de ação. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa. A segunda, do sociológico, se caracteriza pela consciência de que o sujeito não é autônomo e auto-suficiente, mas formado na relação com os outros, q ue medeiam à cultura.

Essa concepção advém da ideia de interação entre o eu e a sociedade, sob a perspectiva dos interacionistas simbólicos12. Nesse sentido, o sujeito permanece

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Concebem a vida social como interações mediadas simbolicamente. O simbólico não é result ado da interação do sujeito consigo, nem do sujeito com o objeto, mas do sujeito constituído e do sujeito projetado pela linguagem. O sujeito está em si e está no outro em interação, construindo a realidade. Os primeiros interacionistas simbólicos foram George Hebert Mead, Hebert Blumer e Charles Cooley.

com seu eu, mas é constantemente influenciado pelo mundo cultural externo, numa relação de reciprocidade, em que os dois são estáveis e, por isso, previsíveis e unificados.

Na terceira concepção, a identidade do sujeito é caracteriza pela instabilidade e fragmentação, composto não de uma, mas de várias identidades. A chamada identidade pós-moderna do sujeito não é fixa, essencial ou permanente. O sujeito assume diferentes identidades em diferentes momentos, e elas vão sendo constituídas historicamente e não biologicamente.

A partir dessas concepções sobre identidade, é importante ressaltar que, de acordo com os ECs, campo teórico que fundamenta esta pesquisa, os conceitos de cultura, identidade e diferença não podem ser utilizados de forma essencializada, porque, se assim for, ao invés de contribuírem para a construção de uma sociedade não discriminatória, acabam fazendo o contrário, reforçando essas práticas, forjando a imagem do ―outro‖ como detentor de uma essência fixa: ―O outro é outro gênero, o outro é a cor diferente, o outro é a outra nacionalidade, o outro é o corpo diferente‖ (SILVA, 2000, p. 97).

Muitos teóricos — entre eles Laclau (1990), Harvey (1989), Giddens (1990), Bauman (2003) e o próprio Hall (2006) — discutem sobre a era pós-moderna. Para eles, de uma forma geral, as sociedades atuais são sociedades de mudanças constantes, rápidas e cambiantes. Baseando-nos nesses teóricos, podemos dizer que a sociedade atual é caracterizada pela mudança, especificamente pelo processo de mudança conhecido como globalização e seu impacto efetivo sobre a identidade cultural.

Nessa perspectiva, o sujeito, antes detentor de uma identidade unificada e estável, está tornando-se fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. O próprio processo de identificação, através do qual nós projetamos nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

Esse processo caracteriza um sujeito pós-moderno, concebido como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se móvel, sendo formada e transformada continuamente nas relações e nas formas pelas quais somos representados e interpretados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Ela vai se constituindo e se definindo historicamente, e não biologicamente.

Para Laclau (1990), as sociedades da modernidade tardia, são caracterizadas pela diferença, são perpassadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de identidades. É como se o sujeito assumisse identidades diferentes em diferentes momentos. Essas identidades, muitas vezes contraditórias, movimentam-se em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações ficam continuamente deslocadas. Para Hall (2006), se sentimos que temos uma identidade desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda da história sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do "eu‖. Nessa direção, Hall afirma ainda que "a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia" (2006, p.13).

As transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de apoios estáveis que se davam nas tradições e nas estruturas. Antes se acreditava que essas eram divinamente estabelecidas, não estavam sujeitas a nenhum tipo de mudança.

Movimentos importantes na nossa história contribuíram para a emergência dessa nova concepção de sujeito: a Reforma e o Protestantismo, que promoveram e buscaram um maior desprendimento entre os indivíduos e a Igreja; o Humanismo Renascentista, que colocou o homem no centro do universo ; as Revoluções Científicas, que conferiram ao homem faculdade e a capacidade para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da natureza ; o Iluminismo centrado na imagem do homem racial, libertado do dogma e da intolerância, e diante do qual se estendia a totalidade da história humana, para ser compreendida e dominada. Na história da filosofia também há grandes contribuições, pois parte dela é voltada para as reflexões dessa concepção de sujeito, seus poderes e suas capacidades.

A emergência de noções de individualidade, no se ntido moderno, pode ser relacionada ao colapso da ordem social, econômica e religiosa da Idade Média. No movimento geral contra o feudalismo, houve uma ênfase na existência pessoal do homem, no seu lugar e na sua função numa rígida sociedade hierárquica. Houve uma ênfase similar no protestantismo, na relação direta ou individual do homem com Deus, em oposição a essa posição, descrita antes pela Igreja.

Ainda no século XVIII, tínhamos os processos de vida centrados no indivíduo, chamado ―sujeito da razão‖, no entanto, à medida que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, elas adquiriam uma forma mais coletiva e social. A partir daí, as teorias clássicas, baseadas nos direitos e consentimentos individuais, foram

obrigadas a dar conta das estruturas do todo e das grandes massas. Além desses, dois outros importantes eventos contribuíram para a articulação do sujeito moderno: o primeiro foi a biologia darwiniana, a partir da qual o sujeito foi biologizado com base na natureza; e o segundo foi o surgimento das novas Ciências Sociais.

O estudo do indivíduo e de seus processos mentais se tornou objeto de estudo especial e privilegiado na psicologia. Já a sociologia trouxe uma crítica ao individualismo racional do sujeito cartesiano, desenvolveu uma explicação alternativa do modo como os indivíduos são formados subjetivamente através de sua participação em relações sociais mais amplas e, inversamente, do modo como os processos e as estruturas são sustentadas pelos papéis que os indivíduos neles desempenham.

Nesse sentido, Hall (2006) destaca cinco grandes contribuições ocorridas na teoria social e nas Ciências Humanas, no período da modernidade tardia13, cujo maior efeito foi o descentramento final do sujeito cartesiano. A primeira contribuição refere-se ao movimento marxista; a segunda, à teoria freudiana; a terceira diz respeito ao trabalho desenvolvido por Ferdinand Saussure; a quarta corresponde aos estudos de Michel Foucault; e a quinta contribuição foi o impacto do movimento feminista, tanto como uma crítica teórica, quanto como um movimento social.

O movimento feminista, porém, teve uma relação mais direta com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico. Ele abriu para a contestação da política, da família, da sexualidade, da divisão doméstica do trabalho, do cuidado com as crianças e enfatizou a forma como somos formados e produzimos sujeitos, ou seja, ele tornou política a subjetividade, a identidade e o processo de identificação, como homens, mulheres, mães, pais, filhos e filhas. Posteriormente, o que começou como um movimento dirigido à contestação da posição social das mulheres expandiu-se para a formação das identidades sexuais e de gêneros.

É no posicionamento de Hall (2003) que nosso trabalho se apóia para discutir sobre identidade do sujeito. Isso significa que, para a realização desta pesquisa, identidade cultural foi considerada como se estivesse sempre em estado de transição, resultante do diálogo entre diferentes tradições culturais e misturas do mundo globalizado, podendo ainda ser chamada também de identidade híbrida

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(HALL, 2006). Ou seja, para fins deste trabalho, identidade é construída socialmente e desenha escolhas políticas dos vários grupos de que nós, seres humanos, fazemos parte, sendo essas escolhas variantes de acordo com os interesses destes grupos.