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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO

3 FORMAÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE

3.1 DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL

3.1.1 Identidade profissional docente

Em meados dos anos 1980, a partir da publicação de um livro intitulado O professor é

uma pessoa, de Ada Abraham (1984), acontece uma mudança de paradigma, onde a literatura

pedagógica é invadida por obras e estudos sobre a vida dos professores, as carreiras e os percursos profissionais, as biografias e autobiografias docentes ou o desenvolvimento pessoal dos professores, cujo principal objetivo estava em recolocar os professores no centro dos debates educativos e das problemáticas da investigação. Com esta virada, estamos no cerne do processo identitário da profissão docente. Algumas questões, como, por exemplo: “Como é que cada um se tornou o professor que é hoje? E por quê? De que forma a ação pedagógica é influenciada pelas características pessoais e pelo percurso de vida profissional de cada professor?”, revelam, mesmo em tempos de racionalização e uniformização, o que cada um continuou a produzir no mais íntimo da sua maneira de ser professor (NÓVOA, 1992, p. 15-16)”.

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Na perspectiva do processo identitário3 dos professores, Nóvoa destaca os três AAA que

sustentam esta prática. O primeiro deles, A de adesão, uma vez que ser professor implica a adesão a princípios e valores, assim como prevê um investimento nas potencialidades das crianças e dos jovens. O segundo A, de ação, pois na escolha das melhores maneiras de agir misturam-se decisões de foro tanto profissional quanto pessoal, onde cada professor vai optar por um método e técnica que se adeque à sua maneira de ser. E, em terceiro, A de

autoconsciência, acreditando que tudo se decide no processo de reflexão do professor sobre

suas ações.

A construção de identidades é um processo complexo que necessita de tempo para refazer identidades, acomodar inovações e assimilar mudanças.

A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor. (NÓVOA, 1992, p. 16).

Em 2012, na USP, foi realizado um seminário internacional sobre processo identitário que, através dos debates e conferências realizadas durante três dias de encontro, resultou em um livro intitulado Identidades. Logo no prefácio os organizadores alertam para o fato de que o processo contemporâneo de transformação social “vem colocando em xeque formas mais tradicionais de identificação coletiva, estimulando sua redefinição e gerando novas perspectivas” (SALLUM JR., 2016, p. 12). Assim,

[…] as identidades sociais vêm se multiplicando de forma acelerada, na medida em que os indivíduos que a reivindicam desdobram-se em agentes de várias coletividades de pertencimento. […] Vêm se acentuando os sentimentos de que participamos de uma comunidade global com fronteiras geográficas e culturais mais tênues, em função, sobretudo, da disseminação de novos modos de comunicação e de sociabilidade. (SALLUM JR., 2016, p. 12).

Atualmente o termo identidade tem sido muito usado, uma vez que raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade e religião, entre tantos outros marcadores, são considerados identidades. O termo “identidade social”, ao ser explorado no Google, resulta em milhões de páginas pelo mundo. No entanto, há pouco mais de meio século, esses termos não eram usados

3 A problematização sobre o processo identitário, tendo como referencial Antônio Nóvoa, já foi definida na

da forma como são hoje para tratar dessas características sociais compartilhadas pelas pessoas (APPIAH, 2016, p. 17).

Em 1950, a identidade de alguém era aquilo que o distinguia, não o que o ligava aos outros. Vejamos a diferença: um relatório policial diria que “a vítima é do sexo masculino, negra, heterossexual, pertencente a uma determinada associação católica,

mas sua identidade permanece desconhecida”. (APPIAH, 2016, p. 17).

O foco desta pesquisa não está em aprofundar epistemologicamente o termo identidade, mas situar o leitor quanto ao seu uso e emprego no contexto de profissionalização do professor.

Mesmo com tantas mudanças sociais, a formação docente parece não acompanhar todas essas transformações. No entanto, são os próprios professores que poderão entender e indicar as possíveis e necessárias mudanças para o futuro da educação (VAILLANT; MARCELO GARCÍA, 2012).

No entanto, enquanto muitos estudos afirmam que alguns docentes contribuem mais que outros para o desenvolvimento acadêmico de seus estudantes, sabemos que não é fácil identificar nem as capacidades, nem as características, nem as práticas específicas dos docentes na sala de aula que têm mais probabilidade de melhorar o aprendizado dos estudantes. (VAILLANT, MARCELO GARCÍA, 2012, p. 17).

No que diz respeito à ação e ao saber dos professores, Nóvoa pontua que são as misturas de vontades, de experiências, de acasos que consolidam as rotinas e os

comportamentos com os quais cada professor é capaz de se identificar (NÓVOA, 1992, p.

16). Mesmo sendo difícil listar capacidades básicas para uma boa docência devido aos diferentes contextos, situações, países e particularidades, ainda assim, por meio da revisão bibliográfica, existe um conjunto de capacidades docentes que influem nos conhecimentos apreendidos e adquiridos pelos estudantes. Tais capacidades têm a ver com duas grandes dimensões principais: a dimensão cognitivo-acadêmica, que diz respeito a formação acadêmica e capacitação contínua, bem como suas estratégias pedagógicas, e a dimensão

vincular-atitudinal, relacionada à transmissão de valores morais e éticos inerentes ao

exercício docente e imprescindíveis ao social e pessoal dos estudantes. São exemplos dessa segunda dimensão componentes como: motivação, liderança, empatia, espírito empreendedor, boa disposição, atitude positiva, estimulação intelectual, compreensão e controle emocional (VAILLANT; MARCELO GARCÍA, 2012).

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3.1.2 “Pelo viés da racionalidade técnica”

Ainda hoje existe uma insatisfação generalizada em relação à qualidade da formação dos docentes na imensa maioria dos países. A dúvida está na suposta incapacidade das universidades e institutos de formação docente diante das atuais necessidades da profissão. Tais críticas se referem à organização burocratizada da formação, ao divórcio entre a teoria e a prática, à excessiva fragmentação do conhecimento que se socializa e à escassa vinculação com as escolas (MARCELO GARCÍA; VAILLANT, 2009).

Sabe-se que, até o final do século XX, a formação de professores era realizada em escolas profissionais da universidade moderna, dedicadas à pesquisa, através do modelo da

racionalidade técnica. Schön explica que, neste modelo, acreditava-se que, por meio da

aplicação da teoria e da técnica derivadas de conhecimento sistemático e preferencialmente científico, os profissionais solucionariam problemas instrumentais, selecionando os meios técnicos mais apropriados para propósitos específicos. No entanto, na prática profissional, os problemas do mundo real não se apresentam aos profissionais com estruturas bem-delineadas, sua tendência é não se apresentar como um problema, mas por meio de estruturas caóticas e indeterminadas, e é o próprio profissional que definirá o problema, bem como os aspectos importantes a observar (SCHÖN, 2000).

Shön apresenta a seguinte situação:

Uma professora de aritmética, ao escutar a pergunta de uma criança, conscientiza-se de um tipo de confusão e, ao mesmo tempo, de um tipo de compreensão intuitiva para a qual ela não tem qualquer resposta disponível. E porque o caso único transcende as categorias da teoria e da técnica existentes, o profissional não pode tratá-lo como um problema instrumental a ser resolvido pela aplicação de uma regra de seu estoque de conhecimento profissional. O caso não está no manual. Se ele quiser tratá-lo de forma competente, deve fazê-lo através de um tipo de improvisação, inventando e testando estratégias situacionais que ele próprio produz. (SHÖN, 2000, p. 17).

A partir deste caso bastante comum no ambiente de ensino, o autor explica que essas zonas indeterminadas da prática, como a incerteza, a singularidade e os conflitos de valores, vão além da racionalidade técnica. “Quando uma situação problemática é incerta, a solução técnica de problemas depende da construção anterior de um problema bem-delineado, o que não é, em si, uma tarefa técnica”. Por outro lado, são exatamente as tais zonas indeterminadas que configuram a prática profissional (SHÖN, 2000, p. 17).

Dentre as principais críticas encontradas no modelo de ensino baseado na racionalidade técnica, está a separação entre teoria e prática na preparação profissional; a prioridade na

formação teórica em detrimento da prática; a concepção da prática como mero espaço de aplicação de conhecimentos teóricos, além da premissa que, para ser um bom professor, basta o conhecimento específico do conteúdo que vai ensinar (PEREIRA, 1999).

Alarcão (1996) tenta ilustrar o modelo apresentado a partir de uma cena televisiva portuguesa intitulada O veterinário da província: “– quando, deitado sobe uma vaca prestes a parir e sem saber o que fazer, o jovem veterinário passa mentalmente em revista todas as figuras dos livros de obstetrícia por onde tinha estudado”. Deste modo, a autora relaciona a cena acima com a experiência dos estagiários recém-formados dos cursos de licenciatura. Segundo ela, isso provavelmente acontece porque não houve uma preparação para lidar com situações novas, ambíguas, confusas, para as quais nem as teorias aplicadas nem as técnicas de decisão e os raciocínios aprendidos fornecem soluções lineares (ALARCÃO, 1998, p. 14). Embora muitas práticas pedagógicas tenham sido incluídas e melhoradas desde a constatação da autora na formação de professores, ainda hoje observa-se uma certa queixa de estudantes sobre o sentimento de despreparo ao ingressarem no magistério. E, nesse sentido, ainda hoje muito se discute sobre o preparo e a entrada dos professores na escola básica.

Também nesse sentido, Marcelo García e Vaillant contribuem afirmando que “Universidade e escola devem dialogar para que a formação inicial docente fale a linguagem da prática”, mas não uma prática apoiada na mera transmissão, uma prática profissional comprometida com a ideia de que todos nós somos trabalhadores do conhecimento” (MARCELO GARCÍA; VAILLANT, 2009, p. 64).