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O MUNDO DAS RELAÇÕES SOCIAIS – RELAÇÕES INTERATIVAS 1 Intersubjetividade e compreensão

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO

2 UM OLHAR SOCIOLÓGICO DA EXPERIÊNCIA MUSICAL EM CONJUNTO

2.7 O MUNDO DAS RELAÇÕES SOCIAIS – RELAÇÕES INTERATIVAS 1 Intersubjetividade e compreensão

Para explicar o significado de intersubjetividade, Schütz inicia com o pressuposto de que o mundo da vida diária de cada pessoa não é apenas seu, não é privado, mas compartilhado com seus semelhantes, vivenciado e interpretado por outros. É um mundo comum a todos. É

um mundo historicamente dado, que existiu antes do seu nascimento e que continuará existindo depois da sua morte. Com isso, o termo intersubjetividade diz respeito à interação entre diferentes sujeitos que vivem, compartilham espaço e estão conectados a um sentido cultural comum (SCHÜTZ, 1979).

Do ponto de vista de Schütz, as ações são sociais, uma vez que o conhecimento e o significado são construídos socialmente e dentro de um contexto. Para Vargas (2010), esta é a premissa para compreender e aproximar o conhecimento do mundo social, ou seja, “o reconhecimento do mundo cotidiano como lugar de intersubjetividade e vínculo social”. E, segundo a autora, estas são “Categorias indissociáveis, [pois] as relações intersubjetivas e sociais expressam-se no mundo da vida cotidiana, que é dotado de múltiplos significados atribuídos pelos sujeitos” (VARGAS, 2010, p. 3).

Agindo sobre os outros e sendo afetado por eles, conheço esse relacionamento mútuo, e esse relacionamento implica que eles, os outros, vivenciem o mundo comum, essencialmente de um modo semelhante ao meu. (SCHÜTZ, 1979, p. 160).

2.7.2 Ambiente de comunicação comum

O autor entende como inseparáveis o “estar relacionado com um ambiente comum e [o] estar unido com o outro numa comunidade de pessoas” (SCHÜTZ, 1979, p. 160). Por meio de um ambiente comum a todos os sujeitos que se motivam reciprocamente em suas atividades espirituais, originam-se os relacionamentos de compreensão mútua, de consentimento, ou seja, um ambiente comum de comunicação.

Neste ambiente comum,

[…] a socialidade se constitui através de atos comunicativos em que o Eu se volta para os outros, apreendendo-os como pessoas que se voltam para ele, e todas conhecem esse fato. Entretanto, a compreensão da outra pessoa ocorre apenas por meio da apresentação, sendo que todos têm como dadas “em presença originária” apenas as suas próprias experiências. (SCHÜTZ, 1979, p. 161).

Mesmo dentro de um ambiente comum, cada pessoa tem o seu ambiente particular, seu mundo privado, a partir do qual “percebe o mesmo objeto que o seu parceiro, mas com coloridos que dependem de seu determinado Aqui e seu fenomenal Agora” (SCHÜTZ, 1979, p. 161). Contudo, o ambiente comum de comunicação pressupõe que “a mesma coisa que me é dada agora (num Agora intersubjetivo), com um determinado colorido, pode ser dada a outro do mesmo modo, depois, no fluxo de tempo intersubjetivo e vice-versa” (SCHÜTZ, 1979, p. 161-162).

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2.8 “FAZENDO MÚSICA JUNTOS: UM ESTUDO SOBRE AS RELAÇÕES SOCIAIS”

No artigo originalmente intitulado como “Making music together: a study in social relationship”, Schütz investiga as relações sociais entre músicos intérpretes e como a ação musical acontece por meio das trocas de experiências, que podem acontecer nos tempos interno ou externo, simultaneamente, enquanto estão fazendo música juntos. Através disso, retoma a questão da comunicação e da compreensão do significado, que, no caso da música, acontece por meio da interação entre compositor, intérprete e ouvinte. Tais questões serão abordadas na sequência deste capítulo.

Para iniciar suas ideias, o autor considera que, para os sociólogos, as relações sociais “são todas as ações interdependentes que existem entre os seres humanos, mutuamente ligadas pelo significado que o intérprete atribui às suas próprias ações, e que devem ser entendidas pelo seu ouvinte” (SCHÜTZ, 2006, p. 1).

Schütz busca também em Max Weber uma definição sobre relacionamento social, qual seja a conduta de “uma multiplicidade de pessoas que, de acordo com o seu significado subjetivo, estão mutuamente interessadas umas nas outras e se orientam em virtude desse fato” (2006, p. 22, tradução nossa). Desta forma, Schütz (2006) percebe que é possível estender a definição de Weber ao grupo de músicos e seus ouvintes. Tanto no caso do relacionamento entre músico e ouvinte quanto entre os próprios músicos, há ações interdependentes que se orientam a partir de significados subjetivos compartilhados. A característica que distingue a participação do ouvinte neste processo é o desenvolvimento interno de sua atividade no desenrolar da música, ainda que durante a ação dos músicos.

Outras situações cotidianas também são utilizadas por Schütz (2006) para demonstrar como ocorrem os processos de comunicação e compreensão do significado. Uma delas é o caso de jogadores de xadrez, quando, no movimento de uma peça no tabuleiro, fazem com que seu adversário se conecte aos seus pensamentos, podendo prever sua tática de jogo. Isso é possível pelo conhecimento do “vocabulário”, que, neste caso, pode ser entendido como o nome das peças do jogo, e a “sintaxe” como cada uma das peças utilizadas em conformidade com as “regras do jogo”, que, por sua vez, são conhecidas pelos jogadores ou estipuladas anteriormente.

No caso da linguagem cotidiana ou do uso de símbolos escritos, presume-se que cada parceiro interpreta seu próprio comportamento, bem como o do interlocutor, de acordo com os termos conceituais que podem ser traduzidos e transmitidos ao outro por meio de um sistema semântico comum. (SCHÜTZ, 2006, p. 1, tradução nossa).

Segundo o autor, “a existência de um sistema semântico, seja a ‘conversa dos gestos significantes’ ou ‘as regras do jogo’ ou ‘a linguagem propriamente dita’, deve ser dada no início; portanto, o problema do significado não surge”. Para ele, “a linguagem é o veículo mais importante da comunicação” (SCHÜTZ, 2006, p. 1-2, tradução nossa). Nesta perspectiva, e apoiado nas ideias de Weber, Schütz argumenta que todas as ações, desde as mais simples, têm ou produzem sentido; requerem uma experiência e aprendizado anterior e são sociais. Dentre outras ações sociais exemplificadas por ele, estão a relação entre os tenistas, os esgrimistas, os lutadores, ou mesmo ações cotidianas simples, como andar juntos, dançar juntos ou também fazer música juntos.

No caso específico da música, como mencionado, o processo de comunicação acontece entre compositor e ouvinte, intermediado por um performer solista ou um grupo de músicos. No que diz respeito aos executantes, a ação de cada um é orientada além do pensamento do compositor e pelo seu relacionamento com a audiência, mas também de maneira recíproca pelas experiências no tempo interior e no exterior de seus colegas músicos. Assim como no jogo de xadrez, em que os jogadores necessitam conhecer a função das peças, na música é necessário ao intérprete o conhecimento e a habilidade da leitura musical, e tais códigos musicais são símbolos que servirão como um veículo de comunicação do pensamento musical. Nesse sentido, a notação ou signo musical “é apenas uma instrução dada ao intérprete para produzir, por meio da sua voz ou instrumento, um som com uma altura e duração específicas, acrescentando, em certos períodos históricos, sugestões relativas a ritmo, dinâmica e expressão” (SCHÜTZ, 2006, p. 5, tradução nossa).

Do ponto de vista técnico e de maneira didática, Schütz explica que cada músico possui à sua frente uma partitura; esta contém apenas uma porção do conteúdo musical, que deverá ser traduzida como som que o compositor atribuiu ao seu específico instrumento. Cada músico, por sua vez, precisa considerar o que o outro tem de executar na simultaneidade. Não basta interpretar a sua parte, que, como tal, permanece necessariamente fragmentada, mas é preciso estar atento para a interpretação do outro, que guiará a sua execução (SCHÜTZ, 1979, p. 210). Embora seja um veículo de comunicação, a notação musical não é idêntica à linguagem musical. Ainda que separados por até séculos de existência, para se conectar ao pensamento do compositor, é necessário que o intérprete conheça o contexto em que a obra foi escrita e suas características interpretativas de acordo com o desenvolvimento histórico e cultural da época. Estas características, por sua vez, são construídas socialmente e compreendidas pelo “mundo da vida” como natural e não questionável (SCHÜTZ, 2006).

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liberdade de interpretação do pensamento do compositor está restringida um ao outro. Enquanto tocam, os músicos precisam prever, ao ouvir o outro, “através de pretensões e antecipações, os rumos que a interpretação do outro possa tomar, e tem de estar preparado, a qualquer momento, para ser líder ou seguidor” (SCHÜTZ, 1979, p. 210).

Para explicar a questão da cultura musical e sua elaboração através das relações sociais, Schütz cria uma situação hipotética. Ele propõe que pensemos em um músico que, em dado momento, olhando para a partitura, executa uma sonata, cujo compositor possui menos de dez anos de idade e supostamente é desconhecido pelo intérprete. Além disso, o pianista em questão é tão técnico e perito em leitura musical que não enfrentaria nenhum obstáculo mecânico que pudesse atrapalhar a sua execução.

Refletindo sobre sua hipótese, Schütz (2006) logo adverte que os dois postulados, ou seja, um músico experiente e que desconheça a biografia deste famoso compositor, não podem ser compatíveis. E assim questiona: Será que podemos afirmar que a sonata é realmente desconhecida pelo músico? Assim, logo explica o porquê dizendo que não é possível ser tecnicamente perito sem ter atingido um certo nível de cultura musical que o capacita a ler com facilidade uma peça sem ter nunca estudado uma música semelhante anteriormente. Para o autor, mesmo sem conhecer a música e o compositor, o pianista em questão possivelmente tem um conhecimento da forma musical “sonata”, como definida para este tipo de música no século XIX. Além disso, ele já terá uma gama de conhecimentos sobre temas harmônicos usados nas composições deste período e também do conteúdo expressivo que encontrará (SCHÜTZ, 2006, p. 6).

Em suma, ele vai conhecer o estilo “típico” da composição deste estilo de música, que é necessariamente parte de sua interpretação. Mesmo antes de começar a jogar ou ler o primeiro acorde, o nosso funcionamento refere-se a um conjunto de experimentos, mais ou menos organizados, mais ou menos coerentes e mais ou menos diferentes entre si, constituindo na íntegra uma espécie de pré-cognição da peça musical. Reconhecidamente, essa pré-cognição se refere apenas ao gênero particular ao qual pertence essa peça musical, e não à sua individualidade única e particular. (SCHÜTZ, 2006, p. 6, tradução nossa).

Dito de outra maneira, o intérprete que executa uma música supostamente desconhecida interpretará “a partir de uma situação historicamente determinada – no seu caso particular, autobiograficamente – para o estoque de suas experiências musicais, na medida em que eles correspondam à nova experiência que ele antecipa” (SCHÜTZ, 2006, p. 6, tradução nossa). Assim, o estoque de experiências “liga-o indiretamente a todos os seus semelhantes, no passado ou presente, cujas ações ou pensamentos contribuíram para a construção de seu conhecimento”. Schütz acrescenta que o estoque de experiências vale também para

[…] tudo o que foi aprendido com seus professores, e seus professores de seus professores, respectivamente; tudo o que deriva do desempenho de outros artistas e tudo do que ele se apropria da manifestação do pensamento musical do compositor. Assim, o peso do conhecimento musical – como o do conhecimento em geral – é derivado socialmente. E, no contexto deste conhecimento derivado do social, o conhecimento transmitido por aqueles que alcançaram o prestígio de autenticidade e autoridade ocupa um lugar importante, especialmente se eles são grandes mestres entre os famosos artistas e intérpretes de suas obras, desde que eles sejam considerados autênticos, tão melhor qualificados para se tornar modelos do que o conhecimento de outras origens. (SCHÜTZ, 2006, p. 7).

Uma vez que o músico possui um conhecimento “pré-adquirido”, este funciona como um padrão de referência, uma forma de compreender e interpretar o pensamento do compositor (SCHÜTZ, 2006, p. 7). “A gênese do estoque de conhecimento à mão, com todas as suas referências sociais subjacentes, é, por assim dizer, pré-histórica” (SCHÜTZ, 1979, p. 205). No entanto, a rede de conhecimento socialmente constituída e aprovada situa-se apenas como um cenário para o pianista e também o ouvinte. Enquanto para o músico sua interpretação da obra musical acontece por meio de um código de referência, ou seja, o conhecimento que o intérprete já possui permite uma recriação no campo da consciência, Schütz enfatiza que o mesmo não necessariamente precisa acontecer com o espectador, uma vez que não é necessário o conhecimento do compositor, tampouco do período em que viveu ou outras informações relacionadas à música para que uma pessoa possa compreender o conteúdo musical. Segundo o autor, “a obra de arte, uma vez terminada, existe como uma entidade significativa, independente do conhecimento do espectador sobre a vida pessoal do seu criador” (SCHÜTZ, 1979, p. 206).

O relacionamento social entre compositor e espectador, como é aqui entendido, estabelece-se exclusivamente pelo fato de que o espectador de uma peça de música participa de, e em certa medida recria, as experiências do semelhante – vamos supor, anônimo – que criou essa obra, não só como expressão de seus pensamentos musicais, mas também com intenção comunicativa. (SCHÜTZ, 1979, p. 206).