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3 O SUBGÊNERO TERROR

3.3 IDENTIDADES DE SEU TEMPO

É em meio a esse período fértil para as ficções de terror que se inicia o ápice das carreiras conjuntas de Mojica e Lucchetti, que foram alimentados por esses materiais que chegavam ao Brasil para suprir uma crescente demanda por narrativas de terror entre as décadas de 1950 e 1960. Momento em que a indústria cultural brasileira passava por transformações que criaram o cenário propício para que ambos se estabelecessem como dois mestres do terror no país. Portanto, para compreender os processos que levaram a tal resultado, é importante ponderar sobre o impacto desses produtos culturais na formação de seus imaginários e também na construção das suas obras autorais, individuais e conjuntas, que são objeto desta dissertação. Como será contextualizado a seguir, até a popularização dos quadrinhos de terror norte-americanas no Brasil pouco se produzia desse gênero aqui. Sendo assim, foi necessário um período para que essas narrativas pudessem ser apreciadas e incorporadas ao imaginário da geração de leitores e autores locais em formação entre as décadas de 1930 e 1950. Um deles foi o escritor Rubens Lucchetti, que se trata de um aficionado não somente do terror, mas particularmente da literatura pulp e seu subgênero mistério-policial. O impacto dessa cultura em sua pessoa foi tão intenso que ele confessa uma familiaridade com as ficções de língua inglesa que chega a contaminar sua própria autoimagem.

[...] eu não me considero um brasileiro. Eu acho que sou um inglês, eu não sei, aqui dentro do Brasil. Porque eu já comecei na igreja protestante. Não fiz nenhuma viagem ao exterior, não conheço nada, mas está muito enraizado em mim esse tipo de coisas ... Quando eu vejo um beco, umas escadarias, aquela coisa meio úmida, aquilo me traz uma lembrança que eu não sei de onde. Isso desde garoto. (FERREIRA, 2008, p. 83).

Nesse depoimento, dado à jornalista Jerusa Pires Ferreira em 1999, o roteirista já se encontrava num momento da carreira em que revisitava por meio de novas versões alguns de seus trabalhos anteriores. Obras que escrevera sob encomenda protagonizadas pelos monstros clássicos e pelo detetive Sherlock Holmes, entre outras referências que foram parte de sua formação enquanto apreciador de cultura vinda de fora. Ao longo desta dissertação esse “Lucchetti de identidade estrangeira da década de 1990” é alguém que pode soar contraditório com o discurso do “Lucchetti da década de 1960”, empenhado em criar um terror genuinamente brasileiro, que será abordado no capítulo 5. Contradição que se enquadra dentro das questões

sobre a identidade cultural dentro da pós-modernidade33 propostas por Stuart Hall.

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas… A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2016, p. 13).

Justamente essa constante falta de identificação do artista com o contexto em que se encontra inserido serve de ponte para um diálogo com o Zé do Caixão, personagem que também não se sentia encaixado no mundo que habita. Segundo os modelos de identidade propostos por Stuart Hall essa crise de identidade do roteirista o definiria como um “sujeito pós-moderno”, com identidade “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2016, p. 13). Dentro desses conceitos é possível conceber que no caso específico de Lucchetti a influência por ele recebida por meio da globalização é o que gera a sua concepção de nacionalidade fragmentada. Uma identidade deslocada construída via hibridismo cultural.

Sensação de deslocamento que Lucchetti justifica em seus relatos biográficos ao dizer que não encontrava em seu ambiente familiar reciprocidade quanto à sua afinidade com literatura, gibis e cinema pois recorda que, “quando menino eu gostava de viver isolado e era um pouco egoísta” (LUCCHETTI, 2001, p. 10). Atitudes provavelmente motivadas pela falta de interesse por parte dos pais e maior parte dos amigos em compartilhar seu fascínio pela cultura de massa e também por seus primeiros escritos. Seus relatos pessoais também atestam que encontrou identificação no refúgio proporcionado pela crítica, agressão e estranhamento que são inerentes ao terror anglo-saxão que, para King (2003), traz embutido também um código moral forte. Ler e escrever sobre esses temas era uma atitude de “resistência cultural” possível para um menino criado em um ambiente religioso de cidade de

33 Segundo Stuart Hall (1992), na segunda metade do século XX, quando passa a prevalecer o

pensamento racional e científico, iniciou-se uma modernidade tardia onde o sujeito foi deslocado de sua identidade e o indivíduo descentralizado, o que o liberou de tradições e estruturas estáveis. Esse processo de globalização provoca a sobreposição e deslocamento de identidades nacionais, sendo impossível mantê-las intactas.

interior, fato que refletiria em toda sua carreira nos livros, quadrinhos e cinema, moldando sua visão sobre como criar narrativas de terror.

Criado num ambiente oposto ao isolamento cultural vivido por Lucchetti, o outro protagonista desta dissertação cresceu num ambiente familiar onde, mesmo sem recursos financeiros, a arte e o espetáculo faziam parte do cotidiano familiar. José Mojica Marins era filho único de pais que se empenhavam para que ele realizasse seus sonhos de ser cineasta desde a infância. Ao estudar a biografia de ambos transparecem perfis diversos: o da introspecção do futuro escritor em contraste com o cineasta que buscava sempre ser o centro das atenções por onde passasse. Apesar de suas diferenças fundamentais, ambos seguiram artisticamente caminho paralelos propiciados pela indústria cultural acessível nos impressos e pelo cinema. Acontece que, mesmo consumindo materiais similares aos de Lucchetti, Mojica, apresenta um discurso mais comedido quanto a sua fascinação pela cultura estrangeira. Tanto que, apesar de confessar sua admiração particular pelos intérpretes dos monstros da

Universal, prefere atribuir o resultado do Zé do Caixão mais a méritos próprios.

Eu não vejo influência na realidade, no personagem. Nem pelo cinema que eu vivia, vendo fitas de grandes ícones do nosso cinema que é Bela Lugosi, Lon Channey, Boris Karloff. Mas eu não vejo que nada disso que tenha me sugestionado. Eu acho que eu, realmente eu, quando parti para o cinema de terror (veio através de um sonho, de um pesadelo) eu acho que isso já tava dentro de mim porque eu, já de garoto, já tinha feito umas fitas de terror. Eu gostava de fazer o medo, de ver as pessoas sentir o medo.34

Em contraste com seu roteirista, Mojica parece se aceitar como parte e produto de seu ambiente, pois várias vezes ao longo da carreira defendeu a necessidade do cinema brasileiro em explorar mais o seu próprio potencial: “Tudo bem, vocês podem gostar de vampiro, de Frankenstein, de múmia, mas não imita os gringos. Procura fazer o nosso cinema. Nós temos lendas fantásticas. A nossa macumba é forte demais. Então mexe com o que é nosso: terror tupiniquim! E os gringos vão te apoiar.”35 Como ele mesmo fez, quando em 1964 inaugurou o terror no cinema

brasileiro com o filme À Meia-Noite Levarei a sua Alma. Como resultado de um processo de antropofagização do qual Lucchetti se tornou parte fundamental em 1967,

34 Depoimento dado ao programa TVFATO em 23 de janeiro de 2010. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=5lukFod2OrA>. Acesso em: 6 maio 2019.

35 Depoimento dado ao programa Banca de Quadrinhos em 29 de janeiro de 2009. Disponível

hibridizaram suas bagagens culturais importadas com seus referenciais locais que, se não subvertiam, traduziam aqueles signos em algo original que será abordado mais detalhadamente. Mas ao se propor a criar uma obra calcada em suas culturalidades de forma a manter diálogo com os modelos da indústria cultural estrangeira, posteriormente inclusive se tornando reconhecido por isso fora do país, o cineasta encontrou uma maneira como indivíduo de interagir com a sua sociedade. Por conseguir mediar culturas através dessa postura, Mojica se enquadra em outro modelo de identidade de Hall (2016). Ele seria um “sujeito sociológico” por conseguir traduzir em seu trabalho as complexidades inerentes às contradições do mundo moderno. Contradições que a biografia de Mojica evidencia em seu diálogo com a cultura popular e com a cultura de elite, que será evidenciado adiante. Hibridismo, tradições culturais distintas se fundem de maneira criativa pois é justamente na aparente contradição de identidades desses artistas e nas tensões decorrentes dessas diferenças, que O Estranho Mundo do Zé do Caixão encontrou seu lugar de destaque na cultura nacional. Feito conseguido não sem enfrentar obstáculos internos e externos nesse processo, em particular a censura vinda dos setores conservadores que regiam o cenário político e social do Brasil daquela época.

Figura 20 – Rubens Francisco Lucchetti (esquerda) e José Mojica Marins (direita)

Fonte: Romero (2014); Martins (2017).