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As identidades e suas múltiplas facetas

As reflexões acerca das constituições identitárias são importantes para compreender a relações sociais na Marcha das Margaridas. Hall (1999) chama atenção para a complexidade deste conceito e acrescenta que no pensamento moderno as identidades foram “descentradas” ou deslocadas, assim como ocorre com muitos fenômenos sociais. Daí, o risco de adotar neste trabalho formulações conclusivas ou verdadeiras. Os questionamentos sobre a existência de uma identidade universal entre as mulheres fundada pela cultura, influenciados pelo pensamento pós-estruturalistas ou pós-moderno, possibilitam estabelecer conexões teóricas e políticas.

Hall (1999) se refere a três concepções de identidade: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O primeiro baseia-se na idéia de um indivíduo centrado, unificado, dotado de razão cujo “centro” emergia com o seu nascimento e se desenvolvia, permanecendo essencialmente idêntico. A noção do sujeito sociológico desdobra-se com a complexidade do mundo moderno, conforme a tomada consciência de que o núcleo interior do sujeito não era autônomo e nem auto-suficiente, mas formado na

interação com o seu “eu” e a sociedade mediados pela cultura.

Ao manter uma suposta essência, o sujeito vai se modificando na relação com o mundo externo, onde estão presentes a cultura e as outras identidades existentes. Nesse processo, há um preenchimento de espaço entre o mundo pessoal/privado e o mundo público, ligando o sujeito a uma estrutura. Projetar os sujeitos coletivos nas próprias identidades culturais é dizer que os valores e significados passam a ser internalizados, constituindo “parte de nós”, ou seja, das identidades coletivas. Isso contribui para alinhar os sentimentos subjetivos aos lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural (Hall, 1999). O sujeito pós-moderno surge no lugar do sujeito previamente determinado, de identidade unificada e estável para recompor-se em várias identidades, em geral, contraditórias e não resolvidas. Neste sentido, a identidade

é definida historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu’. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas (Hall, 1999, p.13)

O processo de construção identitária é marcado pela continuidade, pela mudança, pela permanência e ruptura, pelo coletivo e singular, pelo previsível e aleatório, pela sorte e outros elementos. As ciências são incapazes de tornar inteligíveis as condutas humanas enquanto continuarem em modelos lineares, deterministas e não aleatórios. Para Guattari & Rolnik (1999), os afrontamentos sociais não estariam apenas restritos a uma ordem econômica e política, mas também, nas diferentes maneiras pelas quais os indivíduos compreendem sua existência e nas inúmeras possibilidades de desvios e reapropriações.

Para subsidiar as discussões acerca da constituição de identidades, recorro a três tendências explicativas dos estudos de gênero apresentadas por Bento (2003, 2006): a

universal, a relacional e a plural. Na perspectiva universalista, os estudos sobre os

gêneros, no primeiro momento, elaboraram explicações para a subordinação da mulher, subsidiados pelo pensamento moderno. A obra de Simone de Beauvoir – O Segundo sexo - demarcou esse momento, ao afirmar que “não se nasce mulher, torna-se mulher” e apontando para a idéia da desnaturalização da identidade feminina. Ressalta ainda que, desnaturalizar não significa desessencializar. Ao contrário, situar a mulher numa posição inferior ao homem, por um condicionante biológico, é um posicionamento sob viés universalista, que reforça a essencialização dos gêneros.

A perspectiva relacional nos estudos de gênero, nos anos 1990, acrescentou outras variáveis para reconstruir a concepção universal de mulher. As contribuições de Scott (1995) sobre o conceito de gênero residem em utilizar o gênero como categoria analítica. A noção de conhecimento situado e o potencial metodológico deste conceito permitiram o uso de gênero como elemento constitutivo das relações sociais, pressupondo um exercício constante de historicização das experiências engendradas das mulheres. A categoria gênero rejeita concepções que separam os sexos entre si. Muniz (2004) reitera a idéia de Scott, ao afirmar que o potencial político de gênero para a história é visível se pensarmos o uso de tal categoria/conceito na análise das condições sociais de produção.

Na concepção plural, as identidades são pensadas de forma fragmentadas. A problematização inter-relaciona gênero, sexualidade e subjetividade numa permanente construção de significados múltiplos. A desnaturalização, o múltiplo, a legitimidade das sexualidades divergentes e das histórias das tecnologias para a produção dos supostos “sexos verdadeiros” ganham status próprio, embora vinculados aos estudos de gênero (Bento, 2006). O desdobramento de várias questões identitárias, a partir da metade da década de 1980, nos estudos de gênero passaram a envolver outras variáveis de análise como o corpo, sexualidade e os estudos das masculinidades. Para esta autora, (Ibdem) são os estudos queer17. Embasada na perspectiva foucaultiana, o corpo é visto como um texto, possibilitando pensar sexo e gênero enquanto construções sociais e discursivas, sustentadas pela repetição e pelas categorias historicamente produzidas e hierarquizadas, por meio de suas práticas discursivas18 (Foucault, 1988).

Além dos teóricos pós-estruturalistas, as reflexões sobre a constituição da identidade das mulheres como trabalhadoras rurais contaram com o aparato teórico da antropóloga Regina Novaes, em seu livro De Corpo e Alma: catolicismo, classes sociais e

conflitos no campo (1997) ao retratar as relações humanas no Brasil rural, com destaque

para o processo de construção da identidade de classes influenciadas pela religiosidade19.

17 Os estudos queer habilitam os/as travestis, as drag queens, os drag kings, os/as transexuais, as lésbicas, os

gays, os bissexuais e todos aqueles/as designados pela literatura médica como sujeitos transtornados, enfermos e perversos, enfim, os sujeitos que constituem suas identidades nos mesmos processos que os considerados “normais” (Bento, 2005).

18 Para Foucault (1997), as práticas discursivas são um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre

determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições do exercício da função enunciativa”.

19

Existem inúmeros estudos sobre o campesinato brasileiro, de intelectuais como Antonio Cândido (1964), Octávio Velho (1972), Maria Izaura Pereira de Queiroz (1976), Beatriz Heredia (1979), Klaas Woortmann (1988) e Elen Woortmann (1995) e outros.

Para Novaes (1997), a formação da identidade do trabalhador rural [sic] remonta ao termo “camponês”, que foi designado pelos comunistas em condições históricas das Ligas Camponesas, como pode ser visto no Capítulo 3. O termo foi influenciado pela experiência européia e adotada pelas forças denominadas progressistas e desenvolvimentistas em referência a uma realidade vivenciada na Europa. No caso brasileiro, os comunistas identificaram resquícios feudais e elegeram os trabalhadores como protagonistas de uma revolução.

O uso da categoria camponês extrapolou o ambiente político-partidário e passou a ser adotada pela Igreja Católica ao tratar da questão agrária. Em determinados momentos foi citada pelos proprietários de terra, empresários e, posteriormente, foi adotada pela academia. Atualmente, as categorias camponês e campesinato são utilizadas pelos movimentos sociais e por muitos(as) pesquisadores(as) como oposição à categoria latifúndio e ao modelo de desenvolvimento pautado no agronegócio.

A denominação trabalhador rural tornou-se sinônimo de trabalhador sindicalizado, de categoria profissional e foi definida pelo Estado autoritário, a partir do espaço geográfico (Novaes, 1997). A Igreja Católica vale-se de uma utopia cristã pré-existente entre os/as trabalhadores/as e transforma esta utopia em fio condutor da luta em identidade mobilizadora, a partir da conjugação de alguns fatores: ação da hierarquia, presença de agentes pastorais, a religiosidade, interesses e enfrentamentos sociais concretos.

Assim, se constituiu uma identidade político-religiosa, fundada no ideal de serem os(as) trabalhadores(as) o povo de Deus em busca de terra prometida. Esse ideário se faz presente em diversos movimentos sociais até hoje, aliás, alimenta e move suas lutas, faz parte da mística do movimento. A religiosidade, a natureza e a cultura estão entrelaçadas e são retratadas nas músicas, nos atos públicos e nas mais diversas expressões do campo. A identidade se constrói na configuração de um conjunto de contradições, oposições e alianças com que um determinado grupo social se depara em situações objetivas de crise e rupturas de relações sociais (Novaes, 1997).

Se as lutas travadas pelos movimentos feministas foram e são fundamentais para a constituição das mulheres como sujeitos políticos e contribuíram para sua visibilidade, como analisar a constituição da identidade de um sujeito coletivo, como a Marcha das Margaridas? Isto significa considerar pelo menos dois aspectos: o primeiro deles diz respeito ao reconhecimento da autonomeação mulheres trabalhadoras rurais, reafirmá-

los no sentido de reconhecer a sua trajetória de lutas em prol dos direitos políticos e à forma como estes sujeitos se autodenominam. Isto não significa ausência de diferenças, como pode ser visto no Capítulo 4. Em segundo lugar, a não opção por designá-los como

margaridas deve-se ao fato de não se tratar de uma categoria legitimada pelas próprias

mulheres e ainda pouco presente em seus discursos.

A problematização acerca dos elementos constitutivos de identidade remete às reflexões sobre o exercício do poder, considerando que, o conceito de gênero desdobra-se nas concepções sobre poder. De acordo com Foucault (2004) os poderes dispersos são parte constitutiva das relações sociais e funcionam como uma teia. Ao tecer as redes, esses poderes criam contradições que as isolam entre si. Foucault reporta-se aos mecanismos de inteligibilidade não estabelecidos num ponto central e único, definido por regras, disciplina e organizações próprias, visto que “o poder encontra-se em todas as partes e isso não significa que abarca o todo, pois ele provém de todos os lugares” (Foucault, 1988, p.89).

Nesta perspectiva, o poder representa a multiplicidade de correlação de forças e não um sistema geral concentrador de um grupo exercido sobre outro e nem tampouco, a soberania do Estado, na forma da lei (Foucault, 1988).

Na tentativa de apreender quais os poderes mais imediatos e locais que estão em jogo na Marcha das Margaridas recorro ao questionamento posto por Foucault (1988) de como esses discursos se materializam e lhes servem de suporte. Deste modo, a relações de poder que perpassam a Marcha das Margaridas estão presentes nas disputas cotidianas e os lugares ocupados pelas mulheres trabalhadoras rurais, considerando que são espaços conquistados e não destinados a elas. Ao estabelecerem relações diretas com o movimento feminista e realizar uma interlocução que dialoga com uma plataforma política feminista, os movimentos de mulheres trabalhadoras rurais buscam modificar o próprio exercício de poder.