• Nenhum resultado encontrado

Identificação e assimilação dos “modelos” históricos de reação estética em

No documento Download/Open (páginas 146-151)

CAPÍTULO II CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E DO

6 Atividade de reconhecimento das ZDPs dos alunos sobre o conceito de composição

7.3 Identificação e assimilação dos “modelos” históricos de reação estética em

Os modelos da relação estética em relação à realidade têm sido historicamente confirmados por meio das obras de arte. Ao identificar e assimilar estes modelos, as crianças passam a dominar a “linguagem” da arte, isto é, passam a se apropriar dos procedimentos utilizados pelo artista para expressar sua atitude em relação ao mundo. (DAVYDOV, 1988, p. 120)

Esta análise tem a finalidade de clarificar aspectos do desenvolvimento dos alunos na identificação e assimilação, na imagem, de reflexos da realidade social, ou, em outras palavras, da forma como se materializam significados, impressões, visões de mundo, atitudes e sentimentos do artista e de seu tempo por meio da arte. Para Vygotsky (2010, p. 33), o artista combina as imagens da fantasia não à toa e sem propósito, amontoando-as casualmente, como num sonho ou delírio. “As obras de arte podem exercer essa influência sobre a consciência das pessoas apenas porque possuem sua própria lógica interna”. Essa lógica é reconstruída pela imaginação a partir de elementos da realidade, e estes elementos permitem a contextualização da obra em seu contexto de produção e também de recepção. Ao assimilar o percurso criativo do artista por meio da leitura da obra o aluno compreende o microcosmo de um contexto sócio-histórico-cultural e simbólico, ao mesmo tempo em que ressignifica a obra a partir de seu próprio olhar. Em sintonia com esse pensamento, Buoro (2002, p. 32) nos diz que ao ler uma imagem, “o olho do leitor percorre, no tempo e no espaço, um caminho ao longo do qual são geradas significações e são construídos sentidos”, e afirma que o artista,

(...) mais do que dar existência aos documentos de uma época ou de uma história de vida, ele produz objetos de arte e, ao fazê-lo, comunica uma experiência que o transcende, tanto quanto transcende tempo e espaço, universalizando-se.

Ler e interpretar um objeto de arte é, portanto, penetrar nesse universo, que não é um universo hermético, indecifrável, mas um universo que pode ser compreendido e expandido por meio dos signos que o compõem.

No dia vinte e quatro de setembro a professora iniciou lembrando que na aula anterior os alunos fizeram a leitura de obras de dois períodos históricos diferentes, Renascimento e Modernismo, onde deveriam destacar os elementos da composição, respondendo diversas questões para análise das obras, de acordo com suas percepções. Informou que nesta aula as imagens seriam projetadas no data show e os grupos apresentariam o resultado dessa leitura. Lembrou que as anotações que fizeram sobre a análise serviriam para auxiliar na apresentação. A seguir projetou as obras “O nascimento de Vênus”, de Botticelli, e “O lago”, de Tarsila do Amaral, e o primeiro grupo foi convidado a apresentar sua análise das obras.

O primeiro grupo demonstrou muita resistência para iniciar a apresentação, porém, através da mediação da professora eles iniciaram, sempre utilizando como suporte as anotações que fizeram durante a análise das imagens. A professora demonstrou elevado grau de paciência e simpatia diante do ritmo dos alunos, mediando suas falas e procurando ampliar suas colocações para além do que foi anotado nos questionários. Os alunos fizeram a comparação das duas obras, destacando os elementos luminosidade, textura, linhas.

AE – Vamos descrever e comparar as duas obras?

E4 – Na primeira obra (Botticelli) tem uma mulher nua segurando os seios, e colocando os cabelos na parte íntima dela; tem um homem, com uma mulher, ela tá segurando na costela dele, e uma mulher com um pano tipo querendo encobrir a parte sem roupa.

E12 – Na segunda obra (Tarsila) tem uma paisagem bem diferente, não parece real.

E4 – A primeira também não parece real.

As falas dos alunos não demonstraram a percepção de que estas representações artísticas relacionam imaginação, realidade, mitos e tem sua lógica interna para criar o efeito estético, que não dependem de ser ou não representações do mundo real. Na obra de Botticelli as formas dos objetos apresentam uma semelhança maior com os objetos reais, devido ao período histórico em que foi construída, mas não podem ser consideradas como simples representações da realidade. A composição foi elaborada com base na interpretação visual do artista sobre histórias mitológicas construídas pela imaginação humana. Na obra de Tarsila a artista abstrai a representação da paisagem natural, “brincando” com a composição das formas e cores da natureza. Neste sentido poderiam ser exploradas, pela mediação da professora, as relações que o artista estabelece entre o mundo real e o universo da fantasia e da imaginação para a elaboração da obra, a forma como o artista transcende o seu tempo histórico por meio

da criação artística, visto que uma obra pode ser apreciada em qualquer tempo mesmo considerando as diferenças sociais e culturais do seu contexto de produção e recepção.

A dificuldade em explorar a historicidade dos objetos artísticos parece ser um limite da formação da professora, e neste sentido entendemos que o estudo da Teoria Histórico- Cultural e Desenvolvimental, realizado antes do início da aplicação do plano de ensino, não foi suficiente para o domínio do método. Esta foi uma das fragilidades que destacamos no contexto da escola investigada para a aplicação experimento. Consideramos que a superação dessa fragilidade seria possível mediante uma formação mais sólida da professora, que aliasse as especificidades de sua área de atuação aos conhecimentos didáticos e pedagógicos necessários à atuação docente. Libâneo (2011, p. 12) faz um importante apontamento sobre esta questão, ao dizer que:

Para que um professor transforme as bases da ciência em que é especialista, em matéria de ensino, e com isso oriente o ensino dessa matéria para a formação da personalidade do aluno, é preciso que ele tenha, pelo menos: a) formação na matéria que leciona; b) formação pedagógico-didática na qual se ligam os princípios gerais que regem as relações entre o ensino e a aprendizagem com problemas específicos do ensino de determinada matéria, aspecto também denominado “conhecimento pedagógico do conteúdo”; c) o conhecimento das características individuais e sociais dos alunos; d) o conhecimento das práticas socioculturais e institucionais e suas formas de atuação na aprendizagem.

Dentre as exigências apontadas pelo autor como necessárias para a formação do aluno, percebemos que alguns aspectos se mostram mais frágeis e outros mais fortalecidos na atuação da professora. Por exemplo, no que se refere à formação pedagógico-didática que possibilite as conexões necessárias entre o ensino e a aprendizagem com as questões específicas da área de arte, nossa colaboradora demonstra carência de maior domínio; por outro lado, desenvolve um trabalho claramente consciente das características individuais e sociais dos alunos, a consideração de seus motivos, assim como um engajamento com as questões da instituição escolar, revelando seu posicionamento político e interesse pela qualidade do ensino.

Na sequência da tarefa a professora prosseguiu com os alunos na análise dos aspectos compositivos dos trabalhos, perguntando sobre o equilíbrio dos elementos nas duas obras. O aluno E2 demonstra uma compreensão mais ampliada em relação ao conceito de equilíbrio, conseguindo perceber, a distribuição harmônica dos elementos compositivos na imagem.

E2 – Acho que tem harmonia, as coisas estão bem distribuídas no quadro. Estão bem divididas.

Notamos que o avanço da turma acontece de modo bastante heterogêneo, e aqui voltamos a ressaltar que suas ZDP são diferentes em função de suas histórias de vida, suas relações anteriores com a arte e o ensino de arte. Após a aula dialogamos com a professora no sentido de pensarmos tarefas mais coletivas nas próximas aulas, promovendo a colaboração entre os alunos. De acordo com as premissas de Vygotsky o par mais experiente puxa o menos experiente, mas, por outro lado, o ambiente social é rico em promover aprendizagens mútuas e contínuas entre pessoas de diferentes níveis de desenvolvimento. Segundo Ramos e Schapper (2010, p. 32)

A demarcação de que o par mais experiente “puxa” o aprendizado do outro é unilateral, não trazendo o movimento de transformações e mudanças ocorridas no companheiro tido como mais capaz. O desenvolvimento em espiral em que o sujeito passa por um mesmo ponto a cada nova resolução é um movimento dialético. Assim, em cada espaço de interação vivenciamos transformações e mudanças independente se na cena enunciativa somos considerados mais ou menos experientes.

O segundo grupo apresentou as obras “Retirantes”, de Portinari, e “Virgem e a criança com Sant’Ana”, de Leonardo da Vinci.

AE – Vocês conseguem identificar o tema desta obra? (Portinari) E7 Parece que tem gente passando fome.

E8 – Parece que tá no cemitério.

E1 – Professora, eu vi uma história assim, que falava das pessoas que não tinha condições de comida, de roupas, e eles viajam para outro lugar em busca de melhores condições.

AE – E como você consegue relacionar essa história com a obra? Por que a imagem faz você lembrar isto?

E1 – É professora, porque tá tudo triste, sem cor, sem vida.

A professora relacionou a obra de Portinari com a realidade existente no Brasil do desemprego e da fome, e explicou que o artista, ao criar, traz para a obra os seus sentimentos e percepções em relação ao mundo onde vive. Neste sentido, ele pode denunciar injustiças sociais, a pobreza, o desemprego, como pode também optar por representar um mundo alegre, diferente da realidade em que vivemos. Tudo depende do modo como o artista vê o mundo e deseja representa-lo na arte.

AE – Vocês acham que no Brasil tem pessoas nesta situação que está sendo representada na obra de Portinari?

EE – Então o artista representa a realidade por meio da obra?

E3 – Representa pelas formas, também pelas cores, igual nessa obra aí, que ele quis mostrar o desemprego e a fome.

AE – E a outra obra? Que sensações ela transmite? E6 – Nessa já tem mais vida, parece mais alegre. AE – De qual obra vocês gostam mais?

E8 – Acho que obra de Portinari não está bem representada, porque está no deserto, num lugar sujo. A segunda obra parece mais com a realidade, tem mais natureza.

E9 – A segunda obra (Leonardo) é mais bonita porque tem mais cor, é mais real.

E7 – A primeira obra é mais feia porque não tem muita vida, tem gente morrendo.

Segundo Davydov (1988, p. 122), ao se apropriarem dos modos de percepção estética elaborados nas obras de arte, os alunos se apropriam dos modos de relação do artista com sua realidade:

Ao descobrir as diferentes peculiaridades artísticas destas obras, os alunos, de certa forma, percorrem com o artista todas as etapas da criação do quadro, ainda que se movam numa seqüência inversa (oposta): da forma em que o conteúdo da pintura está realizado para sua idéia.

No contato significativo com as imagens artísticas, por meio das atividades de leitura e produção mediadas pelo professor, vão se estruturando nas crianças estilos de relações entre a cor, forma, ritmo e os demais elementos visuais, assim como as motivações sociais, culturais e subjetivas que envolvem os processos criativos do artista.

Nas falas dos alunos observamos o movimento na apreensão do conceito de composição artística como uma construção simbólica que reflete a realidade, elaborada pela imaginação criadora de um sujeito inserido na história. Contudo, ainda se nota a tendência à interpretação da obra baseada na apreciação das cores e na imitação da natureza, como na fala “A segunda obra (Leonardo) é mais bonita porque tem mais cor, é mais real”. Esse julgamento da obra, segundo Rossi (2009, p. 71) denota um domínio incipiente na apreciação estética: quanto menor a criança, ou a familiaridade com a leitura estética, menor é a possibilidade de isolar o julgamento de sua percepção imediata, e o julgar se confunde com o gostar, de onde deriva que os juízos se baseiam na beleza e no realismo da obra. Contudo, mesmo em fases mais avançadas de desenvolvimento estético, segundo estudos da autora, não deixamos por completo de julgar a obra baseados em nossas experiências, conferindo-lhe noções de valores em que acreditamos. Neste sentido, o julgamento da leitura estética não é apenas complementar, mas “constitutivo do processo que origina nossa compreensão estética,

que, por sua vez, é constituinte da construção de nossa própria compreensão como seres humanos”. (ROSSI, 2009, p. 71). Essa noção de desenvolvimento estético coaduna com as premissas de Davydov (1988, p. 20), referindo-se às ideias marxistas, de que “a consciência estética está relacionada à esfera da apropriação subjetiva da realidade”. Assim, as obras de arte se constituem em “modelos” de reação estética em relação à realidade, agregando significados e sentidos que podem ser compreendidos, interpretados e reconstruídos pela interação com a obra.

Mesmo não apreciando a obra de Portinari, por sua beleza, por exemplo, os alunos reconhecem nela um modo de relação de seu criador com a realidade e agregam sentidos de questionamento, de denúncia e sensibilização, sentidos estes, capazes de habilitarem-nos a compreender mais profundamente a sua própria realidade e a formar o instrumental afetivo, cognitivo, psíquico necessário para atuarem nessa realidade.

7.4 Percepção e aplicação dos princípios compositivos da imagem artística no cotidiano

No documento Download/Open (páginas 146-151)

Documentos relacionados