• Nenhum resultado encontrado

Ideoma e Draoma, a crise na consciência e o progresso

No documento Ordem e Progresso (páginas 43-45)

O PROGRESSO SEGUNDO ORTEGA Y GASSET: O MOVIMENTO DA RAZÃO VITAL

V. Ideoma e Draoma, a crise na consciência e o progresso

Para entender o movimento das ideias e sua particularidade na história da sociedade é importante examinarmos os conceitos Ideoma e Draoma que o filósofo apresenta no parágrafo 26 do livro La idea de principio en Leibniz y la evolución de

la teoria deductiva, obra escrita em Lisboa (1947). Com esses conceitos esclarece o

que afirmara no curso que ministrara muitos anos antes (1932-1933) na Universidad de Madrid. Esse curso foi publicado com o título Unas lecciones de Metafísica. Ali o filósofo mencionava verdades que levamos em conta sem submeter a julgamento, como se lê na terceira lição onde escreveu (1997): “a maior parte das coisas que existem para nós não temos consciência, porém contamos com elas” (p. 41).

Os dois conceitos examinados em La idea de principio en Leibniz se articulam com as noções de crença e de geração na construção da ideia de progresso. A dis- tinção entre Ideoma e Draoma é um aspecto essencial do conhecimento humano para o filósofo. Ele entende as crenças como um tipo especial de ideia. Um tipo diferente entenda-se bem, pois ideia é algo que se refere a aspectos do mundo e podem ser contestadas e debatidas. A ideia nasce do esforço intelectual para explicar como as coisas são e elas podem ser aprovadas ou rejeitadas, conforme coincidam ou não com as reflexões e observações dos outros homens. As ideias traduzem a verdade da ciência ou da Filosofia num dado momento da História. Essa verdade é irrecusável, pois sua credibilidade vem associada aos elementos de demonstração do esforço intelectual.

E no que as crenças se distinguem das ideias? Elas são inconscientes, ou ao menos parcialmente inconscientes, no sentido de que o sujeito não as percebe, mas as acata sem duvidar. O certo é que não são ideias claras, mesmo assim as crenças não geram dúvida. Justo por isso crenças não são colocadas em discussão, nem admitidas, nem contestadas. É por esse motivo que o filósofo se refere a elas como ideias que não temos, mas que nos têm. Em outras palavras vivemos e atuamos nelas, mesmo sem consciência disso.

Entendida a diferença entre ideias e crenças é possível fazer a distinção entre

Ideoma e Draoma. Diz o filósofo em La idea de principio en Leibniz (1994): “uma

crença não é um ideoma, mas um draoma, uma ação vivente ou ingrediente invi- sível dela” (p. 259). Uma teoria, mais especificamente uma teoria filosófica, é um conjunto de ideias (Ideoma) que se sustenta num sistema de crenças (Draoma), cujos elementos não são claros, mas latentes. É essa caracterização que aparece em texto do mesmo livro:

42 ORDEM E PROGRESSO O PROGRESSO SEGUNDO ORTEGA Y GASSET: O MOVIMENTO DA RAZÃO VITAL 43

Uma filosofia é sempre duas: uma constituída pelo que o filósofo quer dizer, é a latente, latente não só porque o filósofo se cala, não nos diz nada à respeito, mas porque tampouco o diz a si mesmo, e não o diz porque ele mesmo não a vê. A razão dessa estranha dupla realidade é uma ação vital do homem, portanto o próprio e ultimamente real em um dizer não é o dito – o que é chamado ideoma – mas o fato de que alguém o diz e com ele atua, faz e se compromete (p. 258-259).

Estabelecida a distinção entre os conceitos, como entender o vínculo que elas mantêm com geração e progresso? A crença é vivida pessoalmente, mas é essencialmente uma verdade admitida por uma geração, é verdade comparti- lhada. Nela vivem os homens daquela geração, à vezes os de outra também. Quando mudam as circunstâncias da vida e a perspectiva com a qual se enxerga os problemas muitas crenças são colocadas sob suspeição e isso provoca um mal estar que pede novas ideias ou explicações. Temos então uma crise que pode ser pequena ou grande e elas ajudam a entender o que se passa numa sociedade, como observam Jayme Salas e Isabel Lavedán (2010): “A distinção entre ideias e crenças ajuda a compreender as crises em que se encontra a cultura ocidental” (p. 183).

As crenças morrem quando muda a circunstância5. Nisso consiste o progresso

do conhecimento, no estabelecimento de outra perspectiva da verdade, que por sua vez não vem só, mas com outras crenças que surgem na ocasião. As crenças são ideias cuja verdade não é submetida à verificação ou demonstração, como explica o filósofo na sequência do seu texto:

Uma filosofia tem embaixo de seus princípios patentes e ideomáticos outros latentes que não são ideomas manifestos na mente do autor, justamente porque são o autor mesmo como realidade vivente porque são crenças em que ele está, em que é, vive e move (idem, p. 259).

Essa forma de explicar o progresso distingue-se do que dito pelo idealismo alemão porque as crenças não são propriamente ideias que se completam numa direção progressiva, mas uma realidade radical, íntima e vivencial sem natureza ideal. É essa raiz vital que quando muda exige outro modo de pensar. Sobre isso comentamos (2012):

5 Numa conferência pronunciada ao final da vida, 1954, intitulada Un capítulo sobre la cuestión de cómo muere una

creencia, Ortega y Gasset explica que as crenças passam por diferentes estágios (1997): “Um mesmo conteúdo de fé

pode atuar em épocas sucessivas de modos diferentes. Sem colocarmos mais fissuras topamos, desde logo, com estes três estágios de uma mesma crença: “quando é fé viva, quando é fé inerte ou morta e quando é dúvida” (p. 721).

44 ORDEM E PROGRESSO O PROGRESSO SEGUNDO ORTEGA Y GASSET: O MOVIMENTO DA RAZÃO VITAL 45

A crítica orteguiana tinha em vista o idealismo de Hegel e Quinet cujas teses popularizaram a crença de que viemos ao mundo para realizar certas formas jurídicas. Ortega y Gasset pensa que a realidade sugere o inverso, ele entende que as exigências históricas é que demandam soluções diferentes (p. 106/107).

É o que permite que um problema filosófico acumule conhecimentos porque reúne a vivência e reflexão de diferentes gerações em resposta aos desafios que a vida traz para cada uma.

Sobre a distinção entre Ideias e Crenças e o significado que ela tem no cará- ter histórico da consciência já foi comentado na Introdução à filosofia da razão

vital de Ortega y Gasset que (2002): “a vida pensada como existência concreta e

o aspecto pré-lógico presente no pensar, a forma como o homem se insere na herança cultural forma um a priori do qual ele se serve para viver e resolver os problemas que o dia-a-dia lhe impõe” (p. 291).

No documento Ordem e Progresso (páginas 43-45)