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O Positivismo Religioso

No documento Ordem e Progresso (páginas 61-66)

ORDEM E PROGRESSO ENTRE OS POSITIVISTAS BRASILEIROS

4. O Positivismo Religioso

O comtismo não vingou inicialmente no Brasil como religião. Como foi destacado em páginas anteriores, ingressou no contexto cultural luso-brasileiro no seio da tradição cientificista pombalina, o que produziu dois efeitos impor- tantes: não se desenvolveu em Portugal como crença religiosa, tendo vingado lá mais como doutrina moral e pedagógica; em segundo lugar, penetrou no Brasil e se consolidou de início como doutrina científica, no seio da instituição que havia herdado, entre nós, o culto à ciência de inspiração pombalina: a Academia Militar. A filosofia positivista obteve aplicação orgânica e duradoura, no contexto da experiência de despotismo que mais se aproximou do ideário pombalino: o castilhismo sul-rio-grandense13. A versão religiosa do comtismo apareceu no Brasil

com a fundação daIgreja Positivista Brasileira (1881), levada a cabo por Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927). Eles consideravam que a versão mais autêntica do comtismo não repousava na vertente cientificista seguida por Émile Littré (1801-1881), mas na variante mística da Religião da Humanidade perpetuada por Pierre Laffitte (1823-1903).

Miguel Lemos salientava que o agente imediato da proclamação da República fora a mocidade do Exército, sob o comando do marechal Deodoro da Fonseca e de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor da Academia Militar. Apesar de o Apostolado não pretender, como frisava o seu diretor, “fazer a apo- logia dos processos insurrecionais”, era necessário, contudo, “honrar o patriota

12 BRITO, Victor de. Gaspar Martins e Júlio de Castilhos (Estudo crítico de psicologia política). Porto Alegre: Livraria

Americana, 1908, p. 51.

13 Cf. VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. “O positivismo em Portugal e no Brasil: semelhanças e diferenças”. Suplemento

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que soube imprimir à revolta um cunho de regeneração cívica e afastar de nós os horrores de uma luta sanguinolenta”14. A partir daí, o outrora inquisitorial

Miguel Lemos, que anos atrás tinha excomungado Benjamin Constant por ter- -se afastado da ortodoxia comteana, passou a tratar com extrema benevolência o antigo insubordinado que tinha chefiado o movimento revolucionário que depôs a Monarquia em 15 de Novembro de 1889. Mas, isso sim, sem deixar de reconhecer que a mocidade militar tinha procurado o esclarecimento à luz do magistério da Igreja Positivista.

A julgar pelo comportamento da geração de militares formada por Benja- min Constant (que estava muito mais próximados positivistas ilustrados do que do Apostolado), poucas foram as lições que a juventude da Academia Militar aprendera, ao contrário do que pretendia o diretor da Igreja Positivista15. Segundo

a acurada análise feita por Paulo Mercadante sobre a ética militar brasileira, o comportamento dos nossos militares, no seu confronto com o Império, esteve pautado pelas normas de uma moral rígida, originária da classe média, e da tendência cientificista da Real Academia Militar, à luz da qual os militares brasileiros tentavam se opor à “pedanteria literária e à capoeiragem política do bacharelismo”, claramente mais aceitas pela sociedade brasileira, bem inclinada à assimilação das manifestações estetizantes. O Positivismo fora, então, valorizado no meio militar como ideologia científica, na linha de Benjamin Constant. Uma adoção heterodoxa, aos olhos do Apostolado16.

Segundo se pode deduzir do relato de Miguel Lemos do seu encontro com Benjamin Constant depois de proclamada a República, o fato equivaleu a uma reconciliação. O diretor da Igreja chegou a “lamentar o tom um pouco hostil, aliás muito legítimo na situação em que nos achávamos então, de algumas frases que hoje nos pareceriam ferir a veneração que devemos ao fundador da nossa república, apesar das divergências que ainda subsistem”17.

É interessante observar a grande semelhança existente entre a proposta que o Apostolado fazia na Nona Circular Anual, para uma organização ditatorial da República, e a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, de autoria de Júlio

14 LEMOS, Miguel, O Apostolado Positivista – Nona Circular Anual, apud Antônio Paim, O Apostolado Positivista e a

República, ob cit., p. 39.

15 Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1.ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 34-40. 16 Cf. MERCADANTE, Paulo. Militares & civis: a ética e o compromisso. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, cap. V

“A estrutura militar e a ética absoluta”, p. 51-59.

17 LEMOS, Miguel. O Apostolado Positivista – Nona Circular Anual, apud Antônio Paim, O Apostolado Positivista e a

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de Castilhos18. Essa proposta ditatorial, cujos pontos altos eram a supressão do

parlamentarismo e a concentração de funções no Executivo, reproduzia o modelo proposto por Comte no seu Sistema de política positiva19. O próprio Miguel

Lemos encarregou-se de salientar a semelhança entre a Constituição castilhista e o modelo proposto pelo Apostolado20. Lembremos, no entanto, como já foi

frisado, que o Apostolado tinha voltado as costas ao movimento republicano que derrubou a Monarquia. Voltou a se afastar da realidade quando o Marechal Deodoro desfechou o golpe de Estado de 3 de novembro de 1891, que fechou o Congresso e converteu o Executivo no Ditador Central tão apregoado pela Igreja Positivista durante a Assembleia Constituinte. O ponto mais criticado pelo Apostolado na ditadura de Deodoro era a “supressão da liberdade, sem que nenhum motivo verdadeiro de interesse público legitimasse tão extrema medida”21.

A ditadura tornara-se insuportável à direção do Apostolado, porquanto não surgida do seio dele. Mas Teixeira Mendes e Miguel Lemos não podiam aspirar a tanto. Outra corrente de inspiração positivista, o Castilhismo, encarregou-se – como vimos – de fazer essa síntese, segundoconsta do item 3 deste trabalho. Os positivistas do Apostolado estavam mais afinados com a ideia de perpetuar a memória religiosa de Comte, surgida ao ensejo do seu Catecismo positivista22.

Buscavam criar uma ortodoxia sob o férreo controle de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, sendo sumariamente excomungados aqueles que divergissem dos dogmas da nova Igreja. Afastaram-se, destarte, dos primeiros intelectuais e militares que se juntaram à Sociedade Positivista do Rio de Janeiro (1879) e que não preten- diam a filiação a uma seita.

A “Ordem” defendida pelos diretores do Apostolado eraa da nova ortodoxia criada por eles. É claro que, no contexto dessa nova ortodoxia, alguns pontos benéficos para a evolução das instituições brasileiras podem ser anotados. Em primeiro lugar, a separação entre Igreja e Estado. Em segundo lugar, o papel

18 Cf. a nossa obra: Castilhismo, uma filosofia da República, 1.ª edição, Porto Alegre: Editora EST; Caxias do Sul: Editora

da Universidade de Caxias do Sul, 1980, p. 73-117.

19 Cf. COMTE, Auguste. La science sociale. (Apresentação e Introdução de Angele Kremer Marieti). Paris: Gallimard,

1972.

20 Cf. LAGARRIGUE, Jorge. La dictature républicaine d´après Auguste Comte. Rio de Janeiro: Tipografia Augusto

Comte, 1937. Neste opúsculo é publicado um artigo de Miguel Lemos, com o mesmo título, em que o diretor do Apostolado destaca as semelhanças entre a Constituição castilhista e o modelo proposto pelo Apostolado.

21 LEMOS, Miguel. O Apostolado Positivista – Undécima Circular Anual (1891), apud Antônio Paim, O Apostolado

Positivista e a República, ob. cit., p. 106.

22 COMTE, Augusto. Catecismo positivista ou exposição sumária da Religião Universal. Lisboa: Edições Europa-América,

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importante atribuído à instrução pública pelo primeiro ministro de Instrução da República, o positivista Demétrio Ribeiro, membro do Apostolado. O “Pro- gresso” viria na trilha da aceitação dos dogmas da Igreja Positivista. Para Miguel Lemos e Teixeira Mendes, a implantação da ditadura positivista deveria ser precedida por amplo trabalho de conversão espiritual aos ideais filantrópicos do comtismo, tarefa de que se desincumbiriam os Sacerdotes da Humanidade, no caso brasileiro, eles mesmos. Os líderes da empreitada material, encarregados de organizar a indústria e as instituições da república ditatorial, deveriam se submeter à pregação dos líderes espirituais.

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VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Castilhismo, uma filosofia da República, 1.ª edição, Porto Alegre: Editora EST; Caxias do Sul: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 1980. Castilhismo

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(Tradução de Patrice Charles, F. X. Willaume e Vicente de Paulo Barretto). Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 611 seg.

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