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Sob o título provocatório de «ignorância e esque- cimento» pretende-se com este colóquio visitar o conhecimento e a memória constituídos sobre um vasto e intrigante território que o rio Mira atra- vessa.

Não se trata de um mero jogo de palavras. A incer- teza prevalece aqui, a começar no próprio espaço de referência, mas também no processo de consti- tuição de conhecimento sobre ele.

Visto e pensado pelo seu avesso; pelo côncavo da ignorância e das memórias obliteradas, temos dele uma perspectiva mais responsabilizadora e mais afim ao espírito destes lugares que parece terem ficado longe e fora dos tumultos da história e das curiosidades.

Parece, mas só por engano. De modo descontínuo, e muito desigual conforme as disciplinas científi- cas, este território suscitou o interesse de investi- gadores e curiosos embora chegue a parecer sur- preendente verificá-lo.

Por aqui passaram botânicos e arqueólogos; geó- logos e etnógrafos; arquitectos e agrónomos e, da sua passagem observadora e interessada, resulta- ram conhecimentos que parecem afinal desapare- cidos, como se o lugar dissipasse no esquecimento o saber que proporcionou e inspirou.

É esse saber que nos propomos reconhecer neste colóquio. Esse saber e a sua dissipação, ou seja, a distância a que ele tem ficado da vida cultural das sociedades que aqui têm vivido, num alheamento recíproco que parece envolver o lugar como uma espécie de amnésia, e que chega a alimentar até o encanto deste fim do mundo, ermo e debruçado sobre um oceano infinito, vazio e mudo.

«Que grande lugar para ser devorado por uma ideia», disse Raul Brandão da ponta de Sagres, aqui a dois passos. Possa o trabalho deste colóquio inspirar ideias assim, capazes de abranger todas as questões que neste lugar têm ficado suspensas, da sua sequência e da sua consequência.

Comecemos pois por este intrigante efeito de «ig- norância e esquecimento» que parece trancar o saber e a ciência que sobre este lugar se têm pro- duzido.

Albert Silbert, na sua obra clássica sobre o Portu- gal meridional no fim do antigo regime, comenta o desacerto territorial que encontra entre o Sul e o tipo de paisagem mediterrânica sobre o qual in- cide o seu estudo. Argumentando a exclusão que decide fazer dos territórios do Baixo Algarve e da Estremadura na sua análise, Silbert aproxima o Algarve da Andaluzia das «huertas», e a Estrema- dura ribatejana e sadina das feições atlânticas do litoral Norte e Oeste. Determina assim o seu «Sul» segundo a paisagem «definida por Max Derrueau sob a designação de planície de clima mediterrâ- nico médio, economicamente caracterizado pela associação largamente predominante do trigo e da criação de ovinos, socialmente notável pelo papel preponderante da grande propriedade» (Silbert, 1966:84).

É neste quadro que irá desenvolver o seu trabalho, abrangendo nesse «Sul» a Beira Baixa e o Alentejo, incluindo neste o seu prolongamento sobre o re- bordo montanhoso interior algarvio, mas, na prá- tica, excluindo quase a faixa litoral do Alentejo, a qual tem uma presença reduzida na obra, e apenas como remota extensão periférica a Ourique. Silbert assinala, aliás, a perplexidade que lhe terá suscitado o estatuto deste território ao comentar a opinião de Pierre Birot sobre o contraste entre Alentejo e Algarve. Para Birot esse contraste não poderia fundar-se em critérios de condições na- turais pois, segundo ele, as vantagens do Algarve sob esse ponto de vista seriam pouco significativas «face a determinada zona do Alentejo». Silbert, interrogando-se sobre que zona poderia ser essa, sugere que ela só poderia ser a «zona costeira si- tuada no sopé das serras de Grândola e do Cercal.

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O clima aí é muito mais húmido que no Algarve (Cercal: 840 mm de precipitação). Mas faltam os solos calcários e a posição da costa é mais desfavo- rável» (Silbert, 1966:84, nota1).

Adiante, referindo-se à estrutura viária do seu Por- tugal mediterrânico, Silbert é explícito ao afirmar que o tráfego da região destinava-se ao Tejo, entre Abrantes e Vila Velha de Ródão, ao Baixo Sado e mesmo ao Baixo Guadiana. Sines e Odemira eram portos secundários. (Silbert, 1966:1035)

A nossa zona de interesse não é pois em Silbert, nem Alentejo, por umas razões, nem Algarve por outras.

Afastada esta zona do perfil mediterrânico algar- vio pela influência atlântica do clima, pela pobreza dos solos e pela dificuldade da costa, tal como es- capava à estrutura viária do território e à paisagem agrária mediterrânica definida por Max Derrueau, também não era uma simples réplica meridional do Noroeste, dele distante e distinto, pela relação histórica com o interior, com as cidades estuarinas e com a estrada natural que pelo litoral as liga. Pensado sobre esses distantes sécs. xviii e xix, este nosso território ficou excluído daquele Sul medi- terrânico, interior e maciço, que vinha faltando à comparação no quadro ibérico com o melhor co- nhecido lado espanhol. Excluído como um rebor- do periférico, de características paradoxais, pouco activo e fronteiro a nada e a ninguém. E não por «ignorância» ou «esquecimento», mas porque a problemática de Silbert assim o ditou.

Ficou todavia assinalada a conjugação de factores paradoxais deste território, facto que Silbert evo- ca aliás logo no início da sua obra ao citar a céle- bre frase de Pequito Rebelo que inspirou Orlando Ribeiro: «Portugal é mediterrânico por natureza, atlântico por posição» (Ribeiro, 1945:58).

E será ainda Orlando Ribeiro quem melhor for- mulará o estatuto particular deste território, atlântico apesar de mediterrânico e litoral embo- ra escassamente povoado, alheio à condição ma- rítima e pouco transitado. Escreveu ele em 1945 que «... não é por acaso que começa, na foz desse rio |Sado| e até ao Cabo de S. Vicente, o segmento menos povoado do litoral» (Ribeiro, 1945:193) e «Do Sado ao Cabo de S. Vicente, na área menos povoada do território português, desenrolam-se arribas e praias de incomparável solidão» (Ribei- ro, 1945:198-9).

Todo este litoral parece pois virado às avessas do restante, também por a ele não ter afluído popula-

ção do interior, nem por ele se terem desenhado estradas e activado circulação. Apenas uma popu- lação que, embora persistente e resiliente, perma- necerá também escassa e dispersa como assinalou Cláudio Torres (Torres, 2012) e uma circulação que se satisfaz com a rede viária antiga, virada para o interior desse Sul agrário mediterrânico que Sil- bert estudou. Uma circulação sem necessidade de percorrer um litoral quase sem portos, sem pesca e sem cidades, tal como ele se revela a Baldaque da Silva nos últimos anos de séc. xix.

Atrás dele esconde-se a bacia do Mira, longo e solitário «ribeiro» a que só as marés dão relevo, e permitem a Odemira centralizar, nos recessos dos seus cerros, a escassa vizinhança que a rodeia. Estamos pois numa periferia do Alentejo que, do seu lado nascente, tinha uma fronteira e por isso história, movimento e tensão; e do seu lado Sul uma cordilheira agreste e monótona mas promis- sora das animadas riquezas do Algarve. Já do seu lado poente, nem fronteira, nem riqueza, e terá ficado assim esquecida, tal como dizemos de um braço inerte que vai pendendo «esquecido» do ombro a que se articula.

Simples periferia sem contraponto, assim terá fica- do este lugar como a mais extrema finisterra deste país do fim do mundo.

É isto o esquecimento: a condição remota, mais o reconhecimento íntimo da irrelevância de si; uma espécie de concordância com a negligência a que se é votado, mas que, ao mesmo tempo, também protege e esconde, e faz destes lugares o sítio onde é possível ir esquecer, ou seja, começar de novo. Este é, aliás, o sentido de uma das sete formas de esquecimento de que fala Paul Connerton (2008)

– a de um esquecimento constitutivo da formação

de nova identidade – e é difícil não pensar aqui no modo como neste território são exaltados hoje os seus espaços desertos, selvagens, todo na- turais, e que são também aqueles que, já isentos de memória, permitem a inauguração radical, o novo nascimento, o presente absoluto. Marc Auge (1998) chama a esta figura do esquecimento, a do «re-começo», sublinhando a ambivalência inscrita na expressão.

E, de facto, entre finais da década de 60 e o co- meço da de 70, numa ruptura surpreendente com o quadro anterior, o polígono industrial de Sines; o perímetro de rega do Mira e a vulgarização do veraneio balnear geraram uma afluência a este território que torna quase irreconhecível a ima-

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gem do ermo litoral que dele prevaleceu até então mas sem anularem a persistente retórica do lugar desconhecido, onde tudo estaria ainda ignorado, e por isso todas as fantasias da descoberta seriam possíveis.

Ora, de facto, não.

Apesar da escassa população e do estatuto perifé- rico, este território mereceu a atenção de cientistas desde cedo, e talvez primeiro dos botânicos, dos arqueólogos, dos geólogos, além daqueles que por dever de levantamento «estadístico» e cartográfico por aqui andaram a identificar, contar, medir. Penso nas páginas entusiásticas de Gonçalo Sam- paio citadas no Guia de Portugal a propósito da flora desta região, e sobre a qual publicara já em 1908, deixando adivinhar não só importantes antecedentes de pesquisa como o eventual papel de Monchique na atracção a estes lugares destas curiosidades científicas.

Penso igualmente nas Cartas Agrícolas de Gerar- do Pery (1882-93) sobre as quais Mariano Feio se debruçou e de que algumas folhas, dadas como perdidas, Maria José Roxo veio a encontrar as mi- nutas, salvando informação preciosa que estava esquecida mas não era ignorada.

Ou ainda nos apontamentos de José Leite de Vas- concellos, ou nos levantamentos de Baldaque da Silva.

De muitos trabalhos, daí até hoje, muito saber terá ficado guardado, mas guardado longe. Outro, que- brado pela descontinuidade, terá acabado esque- cido e, em geral, ignorado como se não existisse. Outro ainda, regressa ciclicamente à evocação do- cumental, mas a todos falta uma dinâmica de in- terpelação recíproca, e falta um meio propício que os torne solicitados, exigidos até, pela vida cultural activa da sociedade onde existem, para se interro- gar e se problematizar neles.

É a ambição deste colóquio ajudar a fazê-lo. Primeiro, promovendo o balanço dos saberes que, de pouco frequentados, parecem denunciar ignorâncias.

Depois, fazendo a experiência de abrir esses sabe- res uns aos outros, procurando figuras de cruza- mento e retomando trajectórias de encontro que tenham ficado interrompidas e esquecidas. Por fim, procurando quadros novos de problema- tização, transversais e mobilizadores, capazes de ultrapassar a «ruminação» fechada das disciplinas e de se ligarem à vida cultural das populações, ac- tivando-a e activando-as. Porque é sobretudo de

um projecto cultural que se trata, coisa que está hoje no centro dos destinos da cidadania, tanto quanto no da ciência, ou seja, no de qualquer pos- sibilidade de futuro.

Com o seu título provocatório, este é afinal um co- lóquio sobre activação de conhecimento.

A ignorância não é um vazio do saber mas a curio- sidade extinta e socialmente inerte que, nem in- trigada, nem problematizadora, nem responsável, dispensa a procura que é a investigação. A igno- rância não é o contrário do conhecimento, mas o da investigação, pois o conhecimento é um pro- cesso activo de procura sobre o intrigante formu- lado como problema, e a investigação a sua atitude própria.

Tomando os termos de uma reflexão de Fernando Gil, ela situa-se «ao lado da ignorância e do co- nhecimento» e essa «sua existência intermédia ad- vém da natureza dos seus objectos: os problemas. São eles que fornecem um terceiro termo entre o não-saber e o saber» (Gil, 2000:177) e é por eles que se activa o conhecimento.

É este o objectivo nuclear deste colóquio: suscitar a vontade intrigada de saber o novo, de formu- lar problematizações, de projectá-las e activá-las publicamente, tornando-as inerentes a uma vida cultural criativa, ou seja, constitutiva da própria sociedade que se pensa nela.

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BIBLIOGRAFIA

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Arqueologia

Jorge Vilhena