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Acupunctura em Odemira: dois séculos de arqueologia

2.3. Sempre o mar que nos chama

Celtas, fenícios, gregos a tomaram Piratas argelinos a queimaram Diz-se até que viveram mastodontes Onde hoje é Vila Nova de Milfontes (Alexandre de Matos in Mantas, 1929)

E eis-nos de novo, como os pómices de muralhas vitrificadas que desceram o Mira até às praias, de regresso ao mar do Sardão, de onde partimos no final do século xviii na companhia do bispo Cená- culo na ascensão até à Cola. Em meados da década de 1980, os concheiros pré-históricos do litoral do Mira cuja presença Abel da Silva Ribeiro assina- lou no final do séc. xix, começaram finalmente a ser estudados em projectos de investigação con- tinuados, um século depois dos seus congéneres dos vales do Tejo e Sado, clássicos da arqueolo- gia portuguesa de 1860-1960. Tal facto deve-se à continuação dos «trabalhos de praia» paralelos aos trabalhos de campo dos Serviços Geológicos nas décadas de 1970 e 80, pelo inevitável G. Zbys- zewski, acompanhado por Veiga Ferreira, Carlos Penalva e Luís Raposo, sobre a Pré-história antiga e a questão do Mirense e Languedocense costeiro/ Mirense, como era na altura chamado (Zbys-

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zewski, Leitão e North 1971; Zbyszewski et al. 1972; Zbyszewski, Ferreira e Penalva, 1978; Zbyszewski e Penalva, 1979; Zbyszewski e Penalva, 1986). E também da continuidade para sul das pesquisas sobre o Neolítico do litoral alentejano do Gabine- te da Área de Sines (Silva e Soares, 1981), com os arqueólogos do Museu de Arqueologia e Etnogra- fia de Setúbal, Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, a formarem o Centro de Documentação Arqueológica da Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina111. Como estes, com conexão local ao incontornável Antó- nio Martins Quaresma, historiador e cicerone de todos quantos vinham estudar a Pré-história de Vila Nova de Milfontes, equipas de universidades norte-americanas e de Lisboa, chefiadas por José Morais Arnaud, Lawrence Strauss e David Lubell, realizavam múltiplas intervenções em concheiros do solo arenoso de Odemira, no âmbito dos seus próprios projectos de investigação sobre o Meso- lítico. Projectos que, sobrepostos no tema (con- cheiros do Meso e Neolítico), no espaço (litoral do Alentejo) e no tempo (meados/fins da década de 1980), resultaram no que se poderia apelidar de

a grande corrida dos concheiros de Odemira, nem

sempre dentro do mais saudável espírito de com- petição (e.g. Lubell et al. 2007). Diversas escava- ções foram realizadas neste concelho, em jazidas de concheiros dos períodos Mesolítico (Vidigal, Fiais, Medo Tojeiro, Montes de Baixo) e Neolítico (Vidigal112, Praia das Galés/Malhão, Água da Moi- ta, Medo Tojeiro113) (Fig. 22). A produção biblio- gráfica directa e crítica resultante é ampla e maio- ritariamente anglófona114.

São os concheiros palco privilegiado da investi- gação pré-histórica, que cruzam as análises da arqueologia, paleobotânica, arqueozoologia, pa- leodietas, climatologia e geomorfologia. As acu- mulações de material conquífero de moluscos marinhos (daí a sua designação) repetidamente consumidos juntamente com outra fauna terres-

tre e marinha no mesmo local com lareiras, há 8/7/6 mil anos antes do presente (sigla BP – be-

fore present), formaram depósitos mais ou menos

rápidos de cinzas e conchas. Com a lenta concre- ção dos carbonatos das valvas, agregam-se como uma «cápsula do tempo» resistente que embala e preserva os restos orgânicos da decomposição e dispersão; posterior cobertura rápida destes depó- sitos antropogénicos por dunas móveis contribuiu também muito para o excelente grau de conser- vação destas jazidas tão antigas. Todavia, os com- plexos processo de formação e transformação (de- flação, erosão diferencial, bioturbação) da dezena de concheiros antigos existentes ao longo dos 100 km de litoral entre Sines e Sagres dificultam sobre- maneira a leitura estratigráfica e interpretação dos dados neles obtidos. Isto conduziu a um aceso e prolongado debate científico no último quarto de século115 sobre a chamada «fronteira móvel» entre o Mesolítico e o Neolítico (nos 7.º e 6.º milénios BP no sudoeste peninsular), ou seja, os modos e motivos da transição das sociedades nómadas de economia recolectora assente no trinómio peça- -caça-recolecção, às subsequentes já sedentariza- das, praticantes de economia agro-pastoril de pro- dução de alimentos (cultivo e pastoreio), processo que é designado por neolitização.

No seu essencial, a discussão assentou em dois modelos propostos em 1982 por J. Morais Arnaud (2002: 72) para explicar a neolitização no Sudoeste português, ainda hoje actuais e pertinentes: • modelo A «difusionista» ou «colonial» – entrada de colonos vindos por via marítima portadores das inovações do Neolítico (pedra polida, cerâmica, agricultura, pastoreio) que estabeleceram encla- ves em franjas do litoral marginais aos territórios estuarinos explorados pelos grupos de caçadores- -recolectores; posterior aumento demográfico dos grupos de agricultores-pastores teria conduzido à absorção das comunidades de caçadores-recolec- tores e expansão da agricultura para o interior;

111 Cujos inventários patrimoniais de 1989 e 1993 arrolavam 51 sítios arqueológicos apenas no concelho de Odemira, a maioria identificados por

primeira vez.

112 Este sítio, na margem sul do Barranco do Queimado, no limite noroeste do concelho de Odemira, passou a pertencer desde 1989 ao concelho de

Sines.

113 Pelo meio, um ou outro «concheiro» medieval, que o mar sempre foi ganha-pão, como por exemplo Angra das Melancias/Foz dos Ouriços ou

Praia das Galés 2, este com datações de radiocarbono de período islâmico (cf. Silva, 1993: 3 n.º 18B) que as cerâmicas corroboram.

114 Silva, Soares e Penalva, 1985; Strauss, 1988; Lubell, Jackes e Meiklejohn, 1989; Strauss e Vierra, 1989; Arnaud, 1990; González Morales e Arnaud,

1990; Strauss, Altuna e Vierra, 1990; Strauss, 1991; LeGall et al., 1992; Soares, 1992; Vierra, 1992; Arnaud, 1993; Silva e Soares, 1993; Arnaud, 1994; Bicho, 1994; Soares, 1995; Vierra, 1995; Vierra 1995a; Soares, 1996; Silva e Soares, 1997; Soares, 1997; Zilhão, 1998; Arnaud, 2000; Bicho, 2000; Soares e Silva, 2003; Cardoso, 2004; Carvalho, 2007; Carvalho, 2007a; Lubell et al. 2007; Carvalho, 2009; Carvalho, 2010; Reis, n.p.

115 Mas que parece ter esmorecido nos últimos 10 anos, não só com a diminuição dos trabalhos de campo, mas também como que por exaustão de

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Figura 21 – Povoado de fosso de Palheirão Furado (Bronze

Antigo): foto aérea de falso infravermelho e planta topográfica do povoado de fosso contra o mar.

• modelo B «evolucionista« ou «autóctone» – ar- ticulação entre as populações de caçadores-re- colectores dos vales interiores e as do litoral na exploração de amplos territórios em padrão de mobilidade sazonal, verificando-se uma progres- siva neolitização adaptativa através de aprendi- zagem das formas de produção de alimentos e de novos artefactos por trocas a longa distância de via marítima que favoreceu a neolitização: primeiro no litoral, e depois atingiu o interior pela mão dos mesmos grupos da costa.

O modelo autóctone foi adoptado por J. Soares e C. Tavares da Silva (Silva et al. 1985; Soares, 1995, 1996, 1997), que advogam, partindo de modelo teórico assumidamente marxista, a passagem do estádio Mesolítico ao Neolítico através de um gra- dual processo de adopção da agricultura e pasto- rícia, consequente e consequência da dependência exclusiva e excessiva na caça, recolecção e pesca por parte das comunidades que frequentaram o litoral sudoeste no 7.º milénio a.C.. O processo, argumentam, terá sido alavancado por uma cres- cente instabilidade no equilíbrio entre demografia humana e ecossistemas por ter ocorrido, no final do Mesolítico, um aumento populacional fruto da intensificação da exploração dos recursos naturais dos estuários que terá conduzido à progressiva de- gradação dos ecossistemas mais generosos. Essa intensificação económica e aumento populacio- nal seria visível na existência de alguns grandes acampamentos-base ocupados todo o ano, onde se explorava um espectro largo de recursos (caça, pesca, recolecção), de que o concheiro de Fiais é o melhor exemplo conhecido no vale do Mira116. A par, existiram ocupações curtas especializadas na captação sazonal de determinados recursos específicos nos concheiros nas arribas do litoral, recorrentemente frequentados nos períodos equi- nociais de maior amplitude de marés. O processo teria também conduzido à necessidade de cons-

tituição de armazenamento alimentar de média/ longa duração, incompatível com a mobilidade exigida pelo tradicional modo de vida nómada dos caçadores-recolectores. Os grupos humanos deste território, progressivamente maiores, teriam passado, assim, a um estádio proto-produtor espe- cializado na exploração de ecossistemas mais ricos (os interfaces terra-rio-mar) consequente à seden- tarização, o que exigiria formas mais evoluídas de complexificação e hierarquização social, também despoletados pela constituição e necessidade de gestão de reservas alimentares. Nesse cenário, a adopção do modo neolítico de produção de ali- mentos teria sido precoce no litoral sudoeste (em meados do 7.º milénio a.C., apenas séculos mais tarde no vale do Sado e Estremadura). O que seria explicável, portanto, de duas formas: resultado das dinâmicas i. interna – intensificação económica e complexificação social inter-relacionadas com a demografia crescente no final do Mesolítico; e ii. externa – a facilidade de circulação de pessoas, ideias e artefactos ao longo da planície litoral, des-

116 O esplêndido concheiro de Fiais (Monte das Lágrimas, Boavista do Pinheiros) foi um «acampamento de caçadores de veado», a 3 km a oeste de

Odemira e a 10 km do mar, no limite oriental da plataforma costeira, habitado em permanência e onde se detectaram estruturas de cabanas. Foram obtidas datações radiométricas para 7100 a 6100 BP. O registo faunístico mostra a presença de peixe, moluscos estuarinos e marinhos (lamejinha, ostra, berbigão, lapa), e o local onde se esquartejaram animais exclusivamente caçados, como javali (14%), corço (10%), veado (70%) ou auroque (boi selvagem) (6%). Um fragmento de crânio humano – o mais antigo resto osteológico humano do vale do Mira – recuperado na escavação (facto corroborado pela informação oral de terem sido encontrados ossadas humanas ou enterramentos na construção do Monte das Lágrimas, na zona do concheiro de Fiais) aponta para a presença de um enterramento no local, como conhecido em outros concheiros dos vales do Sado e Tejo. A itinerância de subgrupos desde este acampamento seria sazonal, até outros locais junto ao mar dedicados à captação de recursos específicos, como Vidigal, onde se praticou pesca de raia e tubarão e apanha de lapas, mexilhão, púrpura; ou Medo Tojeiro, sem peixe mas com apanha de ouriço do mar, perceve, mexilhão, lapas, búzio, burrié (Arnaud, 1994: 292, 295; Arnaud, 2002: 64, 70, 73-74; Silva et al. 1985; Silva e Soares, 1997; Zilhão, 1998; Cardoso, 2002: 149; Lubell et al. 2007; Carvalho, 2009). No vale do Mira, nenhum sítio mesolítico foi ainda identificado a oriente de Fiais. Desde a última década, este último sítio, verdadeiramente excepcional, foi ocupado por agricultura intensiva de regadio em estufas (como que uma vitória final muito tardia do neolíticos domesticadores de plantas – actualmente já com manipulação genética em laboratório – sobre um sítio expoente do Mesolítico no sudoeste português), o que muito irremediavelmente tem destruído a jazida.

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Figura 22 – Sítios do Mesolítico e Neolítico do litoral alenteja-

no (in Arnaud, 1994) Ac up un ct ura em O demira: do is s éc ulos de a rq ue olog ia Jo rg e V ilhe na

de e até costas mediterrâneas da Península onde a neolitização foi mais precoce, sem que existisse verdadeira migração de populações, mas sim os- mose cultural ou aculturação.

Em direcção diferente, intermédia, apontam as in- terpretações dos dados obtidos nas escavações de Fiais, Vidigal e Medo Tojeiro feitas pelas equipas norte-americanas de Lubell et al. (2007) e Strauss (1991, et al. 1990). Defendem que existiu, desde logo, uma grande diversidade dos modos de vida dos grupos mesolíticos nos 7.º e 6.º milénios BP, que adoptaram ou refutaram, caso a caso, os novos modos de produção de alimentos e de artefactos (cerâmica, pedra polida, eventualmente recebi- dos como itens de prestígio) que caracterizaram o Neolítico. Argumentam que, apesar do incre- mento populacional, a exploração dos ecossiste- mas estuarinos foi ainda sustentável, durante o desenrolar da transgressão flandriana (10–6/5 mil anos BP) quando o nível do mar se elevou, dan- do origem aos actuais estuários, possivelmente um pouco mais extensos e produtivos dado que no período Atlântico o mar pode ter subido mais que o actual, amplificando o efeito do recuo das marés117. Nesse cenário menos dramático, a adop- ção de determinados modos de produção alimen- tar e elementos de cultura material neolítica terá apenas resultado no ampliar um pouco mais o es- pectro já largo da satisfatória economia estuarina do mesolítico, pela adição muito lenta, filtrada e quase imperceptível de uma nova gama de recur- sos alimentares e tecnologias. Consequentemente, não se terão verificado alterações substanciais nos padrões de ocupação e exploração do território do litoral do Sudoeste entre o 5.º e o 4.º milénios a.C., em cujos sítios coexistem artefactos líticos meso- líticos ou neolíticos (micrólitos geométricos) com novos elementos, como a cerâmica. A vida quoti- diana ter-se-á mantido então por muito tempo ba- seada numa economia essencialmente predadora (objectivamente, não existem para esta região da- dos sobre domesticação de plantas ou animais) de tipo mesolítico, adiando o estádio Neolítico Pleno. Note-se a total ausência no baixo vale do Mira do fenómeno tipicamente neolítico do megalitismo, que se conhece em toda a envolvência regional em Sines, Santiago, Ourique, Monchique e Aljezur. A tese difusionista antagónica, de vertente colo- nial, foi mais recentemente valorizada por João

Zilhão (1998) com base em investigações desen- roladas na Estremadura e Algarve ocidental e es- pecialmente crítico das interpretações avançadas por Silva e Soares. Análises antropológicas e dados faunísticos e isotópicos sobre as paleodietas ali- mentares assinalam concordantemente marcadas descontinuidades entre as populações mesolíticas e neolíticas, visíveis também na cultura material e nas práticas funerárias (contra, especialmente para o Algarve, v. síntese em Carvalho, 2009: 51-52). Com

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isto, Zilhão defende que terá acontecido a chegada repentina do «pacote neolítico» (pedra polida, cerâ- mica, cereais, ovicaprinos) quando aportaram entre 7500 e 7250 BP a certas zonas do litoral português grupos migrantes de colonos vindos por via maríti- ma do Mediterrâneo espanhol (costas valenciana e andaluza). Prefeririam estabelecer-se no litoral dos maciços calcários do Barlavento algarvio e da Estre- madura, cujas fisionomia e geologia mais mediter- râneas lhes eram familiares. Este processo não teria atingido os principais estuários, de forte propensão à sustentabilidade do modo de vida mesolítico, nem as costas, como o litoral do Alentejo, divergentes do padrão de paisagem «mediterrânea» procurado pelos colonos neolíticos. Numa fase subsequente, após 7000 BP, a expansão das populações neolíticas terá absorvido os derradeiros grupos mesolíticos de caçadores-recolectores remanescentes nos vales do Sado e Tejo, processo que terá sido anterior em alguns séculos no litoral do Alentejo (Zilhão, 1998; Arnaud, 2000).

A análise do próprio autor dos modelos, J. M. Ar- naud (1990), acerca do conjunto de informação recolhida nessa década de escavações acabou por se inclinar mais para a hipótese da imigração de co- lonos neolíticos por via marítima (modelo A), mas em menor escala do que inicialmente suposto, dada a maior adequabilidade do modo de vida mesolíti- co às populações estuarinas/costeiras. Isto teria sido um travão à plena neolitização cujos indicadores ar- queológicos (provas de domesticação de animais e plantas) que atestam a presença de uma economia inteiramente agropastoril não ocorrem antes do fi- nal do Neolítico. Argumenta o mesmo investigador que para um melhor conhecimento da questão da fronteira móvel da neolitização no Sudoeste, serão necessários um refrescamento geracional dos in- vestigadores, mais e melhores escavações, datações e estudos especializados de tecnologia e uso de utensílios líticos, antropologia física, geomorfolo- gia, paleobotânica e arqueozoologia (Arnaud, 2002: 73-74). Estes últimos tópicos são importantes, tan- to para a Arqueologia em si mesma, como para um dos aspectos mais importantes com que ela pode contribuir: saber quais as respostas comportamen- tais, económicas e tecnológicas, das populações do período pós-glacial a um mundo, como hoje, em processo de mudanças climáticas. A proximidade do mar determina o clima vigente na bacia do Mira até 50 km para o interior, à longitude da Cola. O

oceano (e, com ele, o clima) atingiu os parâmetros actuais entre 3000 e 5000 anos atrás, finalizando um processo começado no início do Holoceno, 10 mil anos BP. O nível do mar, que se havia situado até 120-140 m mais abaixo, no último máximo gla- ciário (18 000 BP), com a linha de costa, de águas de menos de 4º C (onde passavam, até Marrocos, icebergues), a situar-se a dezenas de quilómetros à frente da actual, no rebordo da plataforma con- tinental, então planície litoral emersa varrida por ventos frios e onde desaguava um Mira de caudal muito maior. Um primeiro momento moderado de avanço no mar, fruto da fusão das calotes polares e gelos de montanha, deu-se até ao nível –100 m nos dois milénios seguintes, seguido de uma estabiliza- ção até ao início do tardiglaciar, quando entre 13 e 10 000 BP a subida foi muito acelerada, até aprox. –40 m. A fauna e flora alteram-se, com o fim da vegetação rasteira dominante e o surgimento das primeiras florestas, maioritariamente de pinus. Em 11 mil BP e no milénio seguinte, novo avanço do frio polar faz regredir a floresta, reconstituir cam- pos dunares na plataforma litoral muito fria, árida, ventosa, e descer o mar a –60 m. Depois de 10 000 BP, no Holocénico Antigo, a temperatura oceâni- ca (como determinada por colunas de sedimentos marinhos colhidos ao largo da costa do Alentejo) sobiu e assim o mar rapidamente atingiu em dois milénios o nível –15 m, constituindo os actuais es- tuários, como o Mira e Odeceixe, na forma de rias flandrianas que se preencheram de sedimentos, verdadeiros braços de mar entre um litoral rocho- so sem areias (ainda retidas na parte terminal dos rios). A subida do mar abrandará após 8 mil BP, no Holocénico Médio (8-3 mil BP) até atingir o nível actual, com alternância de fases ligeiramente mais frias e secas ou mais quentes e húmidas. Análises polínicas feitas no NO alentejano (Carvalhal, lagoas de Melides e de Santo André) e Algarve, confirma- das pelas referidas colunas de fundo marinho (a prof. de 3135 m) frente ao Alentejo, demonstram ao longo do Holocénico Antigo e Médio a progres- siva florestação (em substituição da vegetação baixa tardiglaciar) de tipo mesomediterrâneo de Pinus e

Quercus (incluindo Q. Suber), com estes a prospera-

rem mais. Como a flora, a fauna modifica-se subs- tancialmente ao longo destas oscilações climáticas, factor determinante para a vida das comunidades que se concentraram nos estuários formados num litoral holocénico climaticamente mais suportável

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e ecologicamente mais rico e variado (Dias, 2004; Carvalho, 2009).

O Mira e o seu litoral imediato adquirem um papel de destaque na investigação produzida depois de 1980 sobre a transição do Paleolítico ao Neolítico na parte ocidental da Península, figurando como principal palco da investigação a par do Tejo e do Sado, do barlavento algarvio e da costa da penín- sula de Lisboa, tanto mais que no litoral norte e em grande parte do interior do país o processo é ainda mal conhecido (Arnaud, 2000).

Nesse mesmo contexto, o Mirense readquiriu um protagonismo próprio, dada a paradoxal e ana- crónica situação de indefinição sobre a sua crono- logia, funcionalidade e significado existentes ainda em 1980. A sua afinidade com o Languedocense definido por Breuil turvou a perspectiva dos inves- tigadores, na medida em que o Mirense andou cola- do aos solavancos temporais por que aquela indús- tria passou ao longo do século xx, até se estabelecer que pertence a tempos holocénicos, entre 8000 e 5500 a.C (Silva e Raposo, 1984; Raposo, 1989). Já o tecno-complexo Mirense, depois de estabelecidos os critérios morfológicos e tipológicos que o defi- nem, autonomizou-se como uma indústria lítica com perfil técnico-morfológico único (Fig. 23). No espaço, é característica do litoral sudoeste peninsu- lar entre o Sado e o Guadiana, com maior expressão nos segmentos de costa Sines-Zambujeira do Mar, da ponta da Carrapateira e de Sagres. Esse horizon- te integra, além dos chamados machados mirenses (cuja forma tem gume largo, convexo ou recto, por vezes, côncavo, talão estreito ou de flancos esma-