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ODEMIRA: HISTÓRIA DO CONCELHO E ESPECIALIDADES LOCAIS

Conhecimento histórico: estudos que existem e lacunas que persistem

ODEMIRA: HISTÓRIA DO CONCELHO E ESPECIALIDADES LOCAIS

No Colóquio «Ignorância e Esquecimento», or- ganizado pela Câmara Municipal de Odemira, em colaboração com a associação GESTO, tendo em vista o planeamento de um futuro Museu de Odemira, o relatório que contemplou o levanta- mento, caracterização e avaliação sintética dos es- tudos de História foi confiado a António Martins Quaresma, o investigador que mais trabalho tem dedicado ao Litoral Alentejano, no seu conjunto, e ao concelho de Odemira, em particular, no qua- dro da Histórica Económica e Social e da História Regional e Local.

Quanto à Geografia, repartiu-se entre os especia- listas de diversos campos disciplinares, nas Ciên- cias da Vida e da Terra, em Território, População e Povoamento e em Paisagem, embora também tenha estado presente nos temas de Antropologia e Etnografia e das Produções (Regadio e Floresta). Em qualquer leitura de uma determinada área, di- fícil é evitar a análise da organização espacial de cada fenómeno em causa.

Vem este esclarecimento a propósito da nomeação de um geógrafo para comentar o trabalho de um historiador. A explicação passará por informar que o historiador se dedica à Geo-História e o geó- grafo à Geografia Histórica, privilegiando ambos as escalas regional e local.

Na elaboração do relatório, a decisão de António Quaresma foi a de antepor ao levantamento bi- bliográfico solicitado uma breve evolução históri- ca do concelho com uma forte componente geo- gráfica, ao explicar as questões do povoamento, da rede de transportes ou da divisão administrativa. Deixando à Arqueologia o que não é da História, optou por iniciar a sua narrativa do território de Odemira no final da Reconquista cristã, traçando depois sucessivos quadros políticos, demográficos,

económicos e sociais, nunca esquecendo o âmbito geográfico, particularmente, o da Geografia física (relevo, clima, hidrografia, vegetação, solos). Mais do que comentar a leitura estabelecida que fixa sólidas imagens baseadas num profundo co- nhecimento de diversos tipos de fontes (textuais, cartográficas, orais), recordarei alguns notórios vazios historiográficos para o território em causa, que a inventariação bibliográfica complementar comprova.

Antes de mais, que sabemos sobre os muitos sécu- los que medeiam entre o fim do Império Romano e a compulsiva colonização por parte dos cristãos do norte, nos meados do século xiii? Quanto se herda de organização de espaço em cada etapa da história do território estruturado em torno e em função do rio Mira e da sua navegação? O que fica da romanização e, particularmente, do espaço ára- be para o espaço cristão?

Sobre a pós-Reconquista e o desenvolvimento e consolidação dos diferentes poderes no espaço te- mos mais elementos (doações, forais, informações sobre aspectos militares ou comerciais) que pos- sibilitam compreender melhor, já no século xvi, os resultados do Numeramento de 1527-1532, empreendimento que permitiu à Coroa uma visão privilegiada do conjunto do País, tendo em vista o seu controlo administrativo, jurídico e económico. O termo de Odemira tinha então 466 vizinhos (perto de 2000 habitantes), mais do que várias das vilas ou núcleos populacionais mais próximos, como Aljustrel (304), Messejana (298), Castro Verde (283), Sines (203), Colos (183) e Milfontes (77), importantes povoações do litoral e do inte- rior do Campo de Ourique, próspero espaço dos rebanhos transumantes. Mas, o que o Numera- mento também distingue é a população aglome- rada da dispersa e, em Odemira, cerca de 275 vi- zinhos (60% da população) reparte-se pelo vasto termo, longe da sede administrativa. O mesmo

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acontece no caso de Milfontes, ainda com maior desequilíbrio. Será esta uma das imagens que per- durará, difundida também através dos viajantes, como sinónimo de abandono, pobreza e falta de desenvolvimento. Grande parte do sul de Portugal transmitirá essa leitura que está longe da realida- de, para a população que vive o espaço.

O grande ausente nos estudos existentes é o tem- po do século xvii e da primeira metade do sécu- lo xviii. Tempo de sucessivos conflitos militares (Guerras da Restauração, da Sucessão de Espanha, Fantástica) e do corso e pirataria na costa. As Me- mórias Paroquiais de 1758 e os relatos dos viajan- tes estrangeiros da segunda metade de Setecentos permitirão reconstituições exemplares, como a de Albert Silbert sobre o Portugal Mediterrâneo. A rede viária descrita por Campomanes na sua

Noticia Geográfica del Reyno, y Caminos de Portu- gal (1762), para o conjunto do País, individualiza

duas importantes ligações terrestres entre Lisboa e Odemira: a primeira, pelo interior, via Moita, Marateca, Águas de Moura, Palma, Alcácer do Sal e Grandola; a segunda, mais litoral, via Moi- ta, Setúbal, Comporta, Melides, Santiago do Ca- cém e Cercal. Elas são complementares da ligação flúvio-marítima, via rio Mira, mas testemunham também a importância administrativa e económi- ca da vila de Odemira e do seu termo. Sobre essa importância e a densa rede viária existente entre a Serra de Monchique e Odemira falará também o Barão de Wiederhold, ao descrever a viagem do Príncipe de Waldeck pelo sul de Portugal, em 1798. Se para o estuário do Arade, o caminho era o de Monchique, para o extremo do Algarve ociden- tal, a estrada era a que por São Teotónio, Odeceixe e Aljezur atingia Lagos.

A primeira metade do século xix, entre as Inva- sões Francesas e a Regeneração é um outro perío- do histórico a necessitar de estudo. É o tempo da ocupação estrangeira, da Guerra Civil e do ban- doleirismo, com estreitas relações entre o interior do concelho e a serra algarvia. Recuperada a paz e estruturado o Estado Liberal, a Carta Geral do Rei-

no, de 1865, coordenada por Filipe Folque, apesar

da sua escala de conjunto (1:500.000), transmite bem o povoamento existente e a densidade da rede viária, testemunho de intensas relações espaciais. As fontes históricas posteriores têm alimentado os muitos estudos sobre a próspera Odemira da se- gunda metade do século xix e início do século xx. Diz-se numa representação da Câmara Municipal

de Odemira à Câmara dos Deputados, em 28 de Janeiro de 1863, transcrita e divulgada por Antó- nio Quaresma:

«Desde 1855 que este Município aproveitando os elementos que lhe concederam e fazendo-os fruc- tificar em benefício de todos os seus habitantes, tem dado largos passos no caminho da prosperi- dade! As vereações que desde então se têm sucedi- do, têm tratado com o maior desvelo de organizar as finanças municipais em termos de estabelecer o conveniente equilíbrio entre a receita e a despe- sa, e de amortizar o grande deficit que vinha do passado. Alargaram-se algumas estradas, fizeram- -se novos caminhos, levantaram-se edifícios para tribunais e casas de retenção, cumpriram-se com escrupulosa regularidade os orçamentos, acaban- do-se com a grande dívida aos empregados mu- nicipais, melhorou-se notavelmente a administra- ção dos expostos, beneficiou-se, ou para melhor dizer-se, constituiu-se em condições próprias o Arquivo municipal, formou-se um código de pos- turas, obteve-se do Governo a criação de algumas cadeiras de instrução primária […] Aos melhora- mentos públicos seguiram-se os particulares, e os esforços dos homens encarregados da direcção das coisas públicas eram eficazmente secundados pe- los dos habitantes de todo o município, primando entre estes os habitantes da Vila, uns alargando e aformoseando os seus prédios, outros levantando- -os de novo e concorrendo todos com igual em- penho para a obra da civilização moral e material destes povos.»

António Martins Quaresma organizou o seu levan- tamento de estudos sobre Odemira em dois blocos: um inventário bibliográfico da história local, que contempla especificamente o concelho mas tam- bém os concelhos limítrofes, sempre que os traba- lhos integram informação sobre aquele, e um outro, arrolando obras não específicas sobre Odemira mas «com especial incidência local e regional, que cons- tituirão “pistas” de ampliação e integração» de no- vos estudos. Como complemento, é facultado ainda ao leitor um minucioso índice temático com 54 en- tradas. A partir dele tiraremos algumas conclusões. O autor tomou a decisão de não incluir informa- ção sobre obras de referência e fontes, sejam elas estatísticas, textuais, cartográficas ou fotográficas, imprensa, relatos de viagem ou prosa memorialísti- ca. Decisão que seguramente não foi fácil de tomar atendendo ao vasto conhecimento que delas tem. A primeira surpresa é a dimensão do universo: 120

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títulos específicos e 24 de enquadramento. A sua dimensão e a sua qualidade serão desiguais mas a maioria constitui uma notável base de trabalho, também para quem planear o futuro museu. Não serão muitos os concelhos não urbanos a contar com um tal interesse por parte dos investigadores. Uma prova mais de que quer a ignorância quer o esquecimento são relativos, no caso de Odemira. Porém, todo este universo só começou a existir no início dos anos de 1980. Antes, apenas o estudo do porto de Vila Nova de Milfontes, por Adolfo Loureiro, no âmbito da obra Portos Marítimos

de Portugal e Ilhas Adjacentes (1909) e a Pequena Monografia do Concelho de Odemira de Área Pais

Falcão (1943), que permanece ainda hoje inédita. No caso de Odemira não foi cumprida a legislação oitocentista que determinava a elaboração de mo- nografias locais, como aconteceu em Santiago do Cacém com a obra do Padre António de Macedo e Silva, Annaes do Município de Sanct-Yago de Cas-

sem desde remotas eras até ao anno de 1853 (1866).

De meados do século xx datam as obras de en- quadramento geográfico e geomorfológico de Ma- riano Feio – Le Bas Alentejo et l’Algarve (1949) e

A Evolução do Relevo do Baixo Alentejo e Algarve

(1952) – e dos anos 60 e 70 as obras marcantes e inspiradoras dos historiadores franceses Albert Silbert – Le Portugal Méditerrannéen à la fin de

l’Ancien Régime (1966) – e Jacques Marcadé – Une Comarque Portugaise – Ourique – entre 1750 et 1800 (1971) e Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas. Évêque de Beja, Archevêque d’Évora, 1770-1814

(1978). Também inspiradores parecem ter sido os artigos de Carlos Pereira Calixto sobre a arquitec- tura e a engenharia militares no litoral alentejano (1979 e 1980).

O boom dos perto de 120 títulos que se publicaram desde 1980 até hoje, sobre o concelho de Odemira, só pode ser explicado pelo trabalho sólido e per- sistente do historiador António Martins Quares- ma, interessado na História Económica e Social, na História Marítima, na História da Engenharia e Arquitectura Militares, na História da Cartogra- fia. A sua extensa bibliografia, entre livros, artigos e comunicações a reuniões científicas, dá conta desse labor. Citaríamos como exemplo: Odemira.

Subsídios para uma monografia (1989), A Barca de Odemira (1993), Vila Nova de Milfontes. História

(2003) e Odemira Histórica. Estudos e Documen-

tos (2006). Todo este conhecimento foi em parte

sintetizado na sua dissertação de doutoramento

recentemente apresentada à Universidade de Évo- ra sob o título: O Rio Mira no sistema portuário

do litoral alentejano (1851-1918). Há que referir

igualmente o seu exemplar trabalho na identifica- ção, salvaguarda e estudo de fontes para a História Local e Regional em torno do litoral alentejano e do concelho de Odemira.

Um outro notável contributo tem sido o de José António Falcão e Ricardo Pereira, no campo da História de Arte e da História da Igreja. Dezenas de monumentos e edifícios classificados foram alvo de identificação, descrição, estudo e levanta- mento fotográfico, por todo o concelho.

Os 54 temas, entre os quais se repartem os estu- dos arrolados, inicialmente identificados de forma muito detalhada por António Quaresma, pode- ríamos reorganizá-los em 10 grandes grupos, re- cordando que muitos deles foram classificados em mais que um tema. Pelas características rurais do concelho, cerca de um quarto (48) diz respeito a diversos aspectos da agricultura e da pecuária, en- quanto que os restritos espaços «urbanos» captam pouca atenção (8), como as questões demográ- ficas (4), menos até que o próprio sector secun- dário (13), onde a indústria corticeira jogou um particular papel. Um peso determinante, também quase um quarto dos títulos, é dado à História Po- lítica (22) e Social (25), sobretudo para os séculos xix e xx. A História da Igreja surge numa estreita ligação com as questões do património e da His- tória de Arte (15), como já referimos a propósito dos autores. Atendendo ao facto de o concelho ter uma extensa faixa litoral e um rio navegável, são relativamente numerosos os trabalhos sobre o rio Mira (15), os portos marítimos, em particular Vila Nova de Milfontes (10) e a pesca (4). Por esse es- paço ser igualmente fronteira marítima, as ques- tões militares estão também muito presentes (21). Para além dos trabalhos dedicados à sede do muni- cípio ou ao concelho como um todo, que represen- tam 32% do universo inventariado, a atenção dada pelos historiadores às diversas freguesias de Ode- mira é bastante desigual: Vila Nova de Milfontes conta com 18 publicações (20%), quase todas da autoria de António Quaresma, Colos com 10, São Teotónio e Santa Clara-a-Velha (Corte Brique, 1) com 7, São Martinho das Amoreiras (Amoreiras- Gare, 2) com 6, Sabóia com 4, Vale de Santia- go com 3 e Relíquias com 1. Na lista são ainda referidas as freguesias de Porto Covo, concelho de Sines e do Cercal, concelho de Santiago do Cacém, João C

ar lo s G ar cia com en rio

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por toda a relação que historicamente apresentam com o território de Odemira. Mas das 15 fregue- sias não urbanas do município, cerca de metade não foram objecto de qualquer estudo exclusivo: Bicos, Boavista dos Pinheiros, Longueira / Almo- grave, Luzianes-Gare, Pereiras-Gare, São Luís e Zambujeira do Mar. Entre estas, as mais recentes e as mais despovoadas mas todas a merecerem estu- dos locais. Recuperando as alcunhas anotadas por Leite de Vasconcelos no concelho, no início do sé- culo passado, não devem ser apenas os mitras, os salatinos e os macacões a serem privilegiados. Mas, por tudo o que analisámos com base no «re- latório» solicitado pela organização do colóquio ao historiador, pelo conhecimento de muitas das publicações referidas e por algum trabalho de campo desenvolvido no concelho, somos de pare- cer que o território em questão não é nem foi ao longo do tempo tão ignorado e esquecido como alguma historiografia defende. Recordando ape- nas a importância da navegação fluvial no Mira como meio de penetração no interior e como via de escoamento da bacia económica controlada por Odemira, compreenderemos a razão da existência do núcleo urbano, pela sua situação topográfica mas, particularmente, pelo seu papel de nó no cruzamento de vias terrestres e flúvio-marítimas de alguma importância, no contexto do Sudoeste peninsular com ligações ao Norte de África, e com relações directas e privilegiadas aos estuários do Tejo e do Sado, ao Algarve ocidental e ao Campo de Ourique.

Diz-se na já referida representação da Câmara Municipal de Odemira à Câmara dos Deputados, em 28 de Janeiro de 1863: «A Vila de Odemira pela sua posição topográfica, pela facilidade de comu- nicações em que se acha com a Capital, pela rique- za que encerra em si, pela importância das suas re- lações comerciais, pelas justas e briosas aspirações dos seus habitantes, e mais que tudo pela prospe- ridade sempre crescente, prosperidade física, inte- lectual e moral com que a mão do Omnipotente a tem largamente dotado no decorrer de oito anos, a Vila de Odemira, dizemos, elevada e beneficiada por todas estas condições de progresso não pode deixar de ser considerada hoje a capital do Campo de Ourique.»

São todas estas relações históricas e geográficas a várias escalas que não podem ser esquecidas na estratégia científica a desenvolver no programa museológico que caracterizará o futuro Museu de

Odemira. Só assim, cada visitante ou cada habi- tante deste espaço poderá tomar consciência do seu lugar no Mundo.

No volume do Guia de Portugal dedicado à Estre- madura, Alentejo e Algarve, datado de 1927, Raúl Proença informa sobre Odemira: «É pov. impor- tante e um dos mais notáveis centros corticeiros do País.» E sobre esclarecimentos concretos para o forasteiro ignorante que chega à vila: «Hot.: João Faustino (R. Direita); António da Silveira Verda- deiro (L. de Miguel Bombarda). Trens de Aluguer: João Serralha (R. de Serpa Pinto). Luz: Petróleo. Água, razoável. Cicerone obsequioso: José João Salgado (R. de S. Sebastião). Especialidades locais: bolos de canudo, alcâncoras e esquecidos.»

Antropologia

Catarina Barata