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Num encontro sobre «Ignorância e esquecimen- to» não há como contornar a questão da memória uma vez que a própria definição da palavra esque- cimento é feita por oposição a esta. No dicionário da língua portuguesa a definição de esquecimento é: «Ato ou efeito de esquecer ou esquecer-se, falta de lembrança ou memória.»

Assim, pareceu-nos bem, numa comunicação em que se pretende refletir sobre o papel da autarquia no tema «Ignorância e esquecimento», abordar a relação do poder local com a memória.

A memória aparece definida no mesmo dicionário da seguinte forma: «Função geral da conservação de experiência anterior, que se manifesta por hábi- tos ou por lembranças; tomada de consciência do passado como tal; lembrança, recordação.» A memória constitui-se como um elemento es- sencial do que se costuma chamar identidade in- dividual ou coletiva. A questão da memória dos membros de um determinado território apela para a vertente coletiva deste conceito. A memó- ria coletiva é um elemento fulcral na identidade e sentimento de pertença de uma determinada população a um território; para além de uma con- quista, ela é também um instrumento e um objeto de poder.

Não é possível separar, em termos práticos, a me- mória e a preservação do exercício do poder. Estes processos, sejam eles voluntários ou não, indivi- duais ou coletivos, de curta ou longa duração, são sempre seletivos e sociais, pelo que se trata sempre de processos complexos e eminentemente políticos. A busca de identidade é uma das características das sociedades e a memória coletiva é posta em jogo, de forma importante, na luta das forças so- ciais pelo poder. Como refere Jacques Le Goff, «Tornar-se senhores da memória e do esqueci- mento é uma das grandes preocupações das clas- ses, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esqueci-

mentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (Le Goff, 13)».

No caso do Município de Odemira, não temos co- nhecimento de qualquer manifestação formal de interesse por esta questão antes do período demo- crático. Mas no pós-25 de Abril, a consciência do desaparecimento dos modos de vida ditos tradi- cionais e a legitimação do novo poder democráti- co abriram as portas ao interesse pela questão da memória.

Na realidade, foi precisamente pelos anos 70 do século passado que o modo de vida rural, conhe- cido como tradicional, no concelho de Odemira, começou a ver profundamente alterados os seus modelos. Se Odemira conheceu um aumento de população entre os anos 20 e 50 do século passado, desde a década de 60 que, acompanhando a reali- dade do resto do país, sofreu uma enorme sangria populacional tendo perdido, entre os anos 60 e 80, cerca de 35% da sua população.

Remontando ao período pós-25 de abril, lembre- mos que os primeiros presidentes de câmara, elei- tos democraticamente, tomaram posse em janeiro de 1977 num contexto pós-revolucionário único e irrepetível que foi caracterizado por uma grande participação das populações no processo de cons- trução de um novo país em que tudo de bom e justo parecia possível.

Odemira viveu esses anos de uma forma muito in- tensa, como aliás se viveu intensamente em todo o país. Foram os anos da reforma agrária, das coo- perativas de trabalhadores, das comissões de mo- radores, da alfabetização de adultos e de muitos outros movimentos cívicos, como por exemplo o dos médicos à periferia, movimento que trouxe a Odemira aquele que viria a ser o seu primeiro Presidente de Câmara eleito democraticamente – o Dr. Justino Abreu dos Santos.

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aparece a coleção de objetos etnográficos que ain- da hoje se encontra na Câmara Municipal. Esta coleção não foi recolhida com base em nenhum critério científico. Pelo contrário, ela foi solicita- da à população, com o intuito de criação de um museu municipal, onde caberia aquilo que esta lhe entregasse como testemunho da cultura local. A notícia da vontade de criação de um museu municipal correu em comissões de moradores e outras reuniões de caráter popular, começando a chegar ao Município as peças que os doadores entendiam serem dignas de apresentação num museu.

Trata-se, assim, de uma coleção sem qualquer tipo de sistematização e sem informações adjacentes às peças que a constituem. Tem inúmeras peças re- petidas e engloba uma grande quantidade de arte- factos que vão desde os objetos relacionados com o trabalho e a vida doméstica (a grande maioria das peças que a constituem) até peças considera- das raras ou exóticas.

Não é de espantar que o trabalho e o mundo do- méstico tenham uma importância tão grande nes- ta coleção. Vários estudos de antropologia revelam que o trabalho se constitui como um fator iden-

titário da maior importância, sobretudo entre as populações mais pobres – as chamadas populações trabalhadoras –, aquelas que, naquela época, esta- vam no auge da sua energia e tinham finalmente a visibilidade que ansiaram durante tanto tempo. O estudo desta coleção, passados quase 20 anos, revelou o contexto de recolha que referimos, per- mitindo mostrar uma parte da história recente deste concelho. Neste estudo revelou-se a impor- tância da figura e da personalidade do Presidente de Câmara de então, veio à tona todo um perío- do histórico, bem como um enforme político que privilegiou uma determinada noção de povo e o universo camponês.

Esta coleção etnográfica constitui-se como o primei- ro momento de uma relação institucional entre o po- der local e a memória; uma coleção que privilegiou o trabalho e o mundo doméstico como elementos identitários das pessoas deste território, numa época em que esse era também o ambiente geral.

Após a revolução de 25 de Abril de 1974 viveu-se, em todo o país, um retorno ao tradicional e ao po- pular como forma até de legitimar uma revolução que em nome desse povo tinha sido levada a cabo. Foi um momento áureo de interesse e divulgação

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da etnografia portuguesa e o Município de Ode- mira não foi alheio a todo este processo - antes o incorporou de forma espontânea e, diria mesmo, visceral.

É também neste primeiro mandato democrático que o Município adquire a Moagem Miranda Lda. Razões de ordem prática mas também de memó- ria e identidade estão por trás desta aquisição. Esta moagem, a maior e mais antiga do conce- lho, tinha fechado em 1973. Tinha ainda no seu interior a maquinaria e constituía uma referência, aquilo a que chamamos um marco de memória para o concelho. Este era, na altura, um território eminentemente agrícola em que a cerealicultura marcava fortemente a paisagem e era ainda fonte de trabalho sazonal para uma parte significativa da população, quer nas mondas quer nas ceifas. Corria o ano de 1979 e pensava-se já na possibilida- de de vir a criar, no futuro, um museu naquele edifí- cio. O executivo de então era composto por elemen- tos que conheciam por dentro a realidade daquela fábrica e tinham a noção do papel que ela desempe- nhara na economia e vida das gentes locais. Se antes do 25 de abril podia não haver ainda a no- ção do desaparecimento do tipo de vida conside-

rado tradicional, depois da revolução os ventos de mudança social lembravam que havia artefactos que estavam a cair em desuso, que não voltariam a ser utilizados e que se perderiam se não fossem guardados. O Município, constituído pelos ele- mentos eleitos localmente de forma democrática, era o legítimo representante do povo e a Câmara a guardiã dos objetos portadores de memórias. A estes se juntam outros elementos de grande sim- bolismo na representação do trabalho e a Moagem do Miranda era disso também representativa. Nos finais dos anos 70 as relações do poder local com a memória enquadraram-se no contexto re- volucionário da época. Aliado à etnografia, o tra- balho era, então, um tema de grande peso e im- portância ideológica.

O trabalho é um elemento essencial da cultura no sentido em que é através dele que o homem trans- forma a natureza e exerce uma ação transforma- dora sobre si próprio e os outros.

Vêm novas eleições, o regime democrático norma- liza-se e as relações com as questões da memória das populações parecem abrandar. Há, de facto, um interregno de alguns anos quando analisamos os elementos que permitem percecionar as rela-

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ções do poder local com a memória.

São já da segunda metade dos anos 80 as primeiras edições de estudos sobre a história e a cultura lo- cais. Interessante referir, na esteira do que se assi- nalou para a década anterior, que o primeiro livro editado pela Câmara é precisamente de cariz etno- gráfico: trata-se do livro Colos – elementos mono-

gráficos de António Machado Guerreiro, publica-

do em 1987; dois anos depois sai o livro Odemira

– subsídios para uma monografia de António Mar-

tins Quaresma e em 1993 A Barca de Odemira do mesmo autor. Por outro lado, algumas solicitações exteriores apelam ao apoio ao estudo da história local – foi o início dos estudos de arqueologia no concelho.

Os estudos de arqueologia, apoiados pela autar- quia, começaram em 1985. Também desta vez as relações do poder local com a memória se inserem num contexto mais global. Ao nível do país, os anos 80 foram os anos da explosão da arqueologia. Marcados pela fundação do IPPC – Instituto Por- tuguês do Património Cultural e pelo lançamento dos serviços regionais de arqueologia, os anos 80 vêm aumentar consideravelmente o número de investigadores no nosso país, de associações de

defesa do património (intimamente ligadas a uma nova produção arqueológica exterior às universi- dades) e por isso, também, a um alargamento dos territórios estudados.

Se os anos 80 são assim tocados pela arqueologia, não ficou de parte também a, na altura recente, ar- queologia industrial. Em 1989, a autarquia adquire o moinho de vento da vila, um exemplar de moa- gem tradicional do séc. xviii e, logo depois, em 1991, o moinho de vento da Longueira, do início do séc. xx. Em 1992 restaura ambos os moinhos e põe-os em funcionamento com a contratação de dois moleiros.

Tal corresponde à noção de que alguns elementos culturais do passado já só sobreviveriam com o apoio direto do Município. A memória deste tipo de atividade, existente no concelho desde o séc. xv, e alguns ainda em funcionamento nos anos 90 do séc. xx, era algo que se considerava um marco de memória relevante, digno de ser especialmente guardado e acarinhado pelo Município. O fim da sua utilidade económica, relacionada mais com o abandono dos campos do que com a própria in- dustrialização, iniciava o interesse na sua manu- tenção enquanto elemento de memória e identi-

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Assiste-se desde finais dos anos 90, mais precisa- mente 98, a um ressurgimento nos apoios dados a investigações arqueológicas, bem como à realiza- ção de algumas escavações. A tal não é alheio o fac- to de ter vindo para Odemira um arqueólogo que tem este território como base da sua investigação. A autarquia tem desenvolvido com este investi- gador uma relação de estreita colaboração. A ele se têm juntado outros jovens arqueólogos que, de alguma forma, têm dinamizado a investigação re- lativa a este território.

Têm sido praticamente anuais os apoios dados à arqueologia tendo a autarquia respondido de forma positiva às solicitações das equipas de investigação possuindo, desde 1999, uma sala de reservas arqueológicas. Não tendo um arqueólogo nos seus quadros, o Município tem-se constituído como um parceiro da investigação arqueológica no território.

O início do séc. xxi aparece marcado por alguma atenção dada ao património edificado: em 2001 le- va-se a cabo o restauro da Necrópole do Pardieiro, um monumento funerário da Idade do Ferro, sito na freguesia de S. Martinho das Amoreiras, único

monumento arqueológico escavado e estudado do concelho.

No mesmo ano, uma prospeção nas paredes inte- riores da igreja da Misericórdia de Odemira, uma igreja do séc. xvi, veio revelar pinturas a fresco de grande qualidade e extensão que, a par do interes- se arquitetónico do edifício, fazem desta igreja um monumento de grande valor patrimonial na região. Para além dos restauros dos moinhos de vento realizados no início da década de 90 e no edifí- cio dos Paços do Concelho (1988-96), estas são as únicas intervenções realizadas ao nível do pa- trimónio edificado pela autarquia. Ao nível da sal- vaguarda, podem-se referir as classificações, em 2006, da Ponte de Santa Clara-a-Velha e, em 2007, dos Marcos da Barca, Moinho de Vento da vila de Odemira e Moinho da Longueira como Imóveis de Interesse Municipal, o que reflete a atenção do poder local nestes elementos de memória do pas- sado.

Em 1998 inicia-se uma outra fase, mais relacio- nada com os levantamentos de terreno e também com o património imaterial.

Nesse ano inicia-se o levantamento das artes e ofícios tradicionais do concelho o que vem a dar

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lugar, desde 1999, a um pavilhão inteiramente dedicado ao artesanato na FACECO – Feira das Atividades Culturais e Económicas do Concelho de Odemira. Torna-se assim visível a riqueza arte- sanal do concelho, bem como se inicia uma dinâ- mica que dará lugar, em 2000, à criação da Asso- ciação de Artesãos local.

Podemos dizer, de uma forma sucinta, que o final dos anos 90 marca o início do interesse do poder local pelo património imaterial. Há como que um retorno à etnografia, desta vez em torno do saber- -fazer local, numa relação muito estreita com a população e os detentores desses conhecimentos. É reconhecido que o património material e imate- rial é inseparável na sua abordagem, eles cruzam- -se e interligam-se, estando intrinsecamente liga- dos na sua génese. O que interessa é salvaguardar a memória das pessoas deste território, e essa me- mória está presente quer no vestígio do edificado e nos objetos, quer nos saberes a eles ligados, nos seus usos, na sua vivência.

Por isso, esta distinção aparece apenas como um conceito operativo orientador de diferentes abor- dagens que têm como pano de fundo comum os contextos geográficos, históricos, económicos e

sociais do território e da população.

Diversas são as fontes que colaboram para o en- tendimento dos fenómenos sociais e culturais – nessa linha foi levado a cabo um estudo sobre a atividade moageira tradicional no concelho. Este estudo, intitulado A moagem de cereais em Odemi-

ra da pré-história à actualidade teve a intenção de

procurar apresentar o resultado de trabalhos rea- lizados por investigadores de diferentes áreas do saber: a arqueologia, a história e a antropologia, procurando apresentar uma visão integrada des- ta atividade ao longo da história, neste território. Para além da edição dos próprios estudos realiza- dos, pretende-se também contribuir para a valo- rização do Cerro dos Moinhos Juntos como ele- mento de memória, fruição e educação do público e valorização urbana da vila de Odemira.

Para o volume Os moinhos de Odemira no séc.

xxi foi levado a cabo, em 2007, um levantamento

dos vestígios dos moinhos existentes no concelho. Esse levantamento foi realizado com o apoio do moleiro do moinho de Odemira nas várias bus- cas no terreno e para ele realizaram-se entrevistas áudio aos 4 moleiros então no ativo. Essas entre- vistas permitiram adquirir conhecimentos sobre a

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tecnologia, a comunicação entre moleiros e entre moleiros e população, os ventos, alterações climá- ticas, tradições profissionais e familiares, etc. Um manancial do chamado património imaterial, re- lacionado com a molinologia e o conhecimento do território, que vem mostrar a importância do envolvimento das populações nestes estudos. Um outro elemento patrimonial e de memória considerado da maior importância pela autarquia, e que se relaciona diretamente com o anterior, é a Moagem Miranda Lda. Como se referiu, foi ad- quirida em 1979 ainda com maquinaria no seu interior para servir de espaço de arrumos (o seu exterior) e com o intuito de vir, futuramente, a ser um museu.

Enquanto marco de memória, esta fábrica foi local de trabalho de centenas de pessoas de Odemira. Ela abriu no final do séc. xix e foi remodelada para descasque de arroz em 1920. Nela passaram diversas gerações de odemirenses com os mais di- versos tipos de profissões a ela ligados. Mais tar- de, nos anos 80, foi Escola Profissional onde, mais uma vez, muitos odemirenses passaram enquanto alunos ou professores. Há menos tempo tornou-se Centro Comunitário, Arquivo Municipal e Ecote- ca, ou seja, um edifício que a muitos traz as mais variadas memórias e que tem sempre estado vivo e ao serviço da comunidade.

A moagem, enquanto tal, fechou em 1973. Em 2009 foram realizadas entrevistas áudio a antigos trabalhadores da fábrica e em 2011 foram gravados vídeos de conversas com estes antigos funcioná- rios: moleiros, motoristas, eletricistas, mecânicos, carregadores, costureiras, contabilistas, escriturá- rios, jornaleiros que trabalhavam nas debulhado- ras; entrevistas que trataram essencialmente das memórias que estes tinham do seu trabalho na moagem, bem como de Odemira no tempo em que eles aí trabalharam ou das suas vidas em geral. O vídeo constitui um repositório de armazena- mento da memória que conjuga, para além da imagem, o som e o gesto, os ambientes onde as pessoas se encontram e a expressividade das emo- ções. Foi possível realizar vídeos com 15 antigos trabalhadores.

Ainda neste âmbito foi encomendado, a uma empresa especializada, um levantamento da ma- quinaria existente no seu interior. Para além dos conhecimentos de técnicas da arqueologia indus- trial, absolutamente necessárias para levar a cabo esta tarefa, também aqui se revelaram importantes

os contributos dos antigos trabalhadores na re- constituição desta mecânica e no entendimento de determinadas conexões.

No domínio dos estudos históricos houve um incremento das edições a partir, essencialmente, de 2006. Nesse ano, no âmbito das celebrações dos 750 anos da vila de Odemira, é publicada uma obra da maior relevância enquanto análise e apresentação de documentação histórica do con- celho: trata-se do livro Odemira Histórica, Estu-

dos e Documentos da autoria de António Martins

Quaresma. Em 1999, também no âmbito de uma comemoração, os 500 anos da vila de Colos, tinha sido editado o livro Colos – Contributo para a sua

história do mesmo autor.

O já referido A Moagem de cereais em Odemira da

pré-história à actualidade, saiu em 2009. Desven-

da esta atividade desde a análise das mós e moa- gem manual entre a pré-história recente e a época moderna (Jorge Vilhena), passando pela cereali- cultura e farinação da baixa idade média à época moderna (António M. Quaresma) e terminando, no séc. xxi, com os levantamentos dos vestígios de moinhos existentes e entrevistas com moleiros (Ana Tendeiro).

No âmbito da literatura oral foram editadas duas obras: Antologia de textos da tradição oral do con-

celho de Odemira – o decimário e a lírica menor

(Carlos Teiga) e outro com uma recolha de len- das, contos e fábulas intitulada A Zorra Berradeira

e outras histórias – literatura oral do concelho de Odemira (Ana Tendeiro).

Vários têm sido, ao longo dos anos, os apoios do Município a festas organizadas pela comunidade,