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Capítulo IV: Igualdade e Rectificação

IV.1. Igualdade inicial de oportunidades de bem-estar: o cálculo

Tal como o libertarismo de direita de Nozick, também o libertarismo de esquerda defendido por Vallentyne tem como principais preocupações os direitos de propriedade primeiro de si mesmo e depois dos recursos externos. Garantida a autopropriedade como direito natural de todos os indivíduos, o libertarismo, sendo uma teoria histórica, ocupa-se dos direitos de propriedade dos recursos externos. Assim, ao contrário dos teóricos distributivos que assumem a cooperação social e a divisão dos seus frutos como prioritários, os autores libertários consideram que antes de qualquer divisão ou redistribuição é necessário estabelecer as condições da apropriação original, ou seja, os critérios de uso e apropriação dos recursos não possuídos. Segundo eles, às teorias distributivas falta estabelecerem a história das posses, pois ao tomarem a distribuição actual e ao aplicarem-lhe um determinado padrão distributivo, alterando-as, estão por um lado a presumir como legítimos os direitos de propriedade de alguns e por outro a desrespeitar os direitos legítimos de propriedade de outros. Não tendo em conta o passado, acusa Vallentyne, aquelas teorias, como a de Rawls, acabam por não ter em conta que poderão apenas estar a prolongar injustiças cometidas na aquisição original (V 32, 212-4).

Os teóricos distributivos assumem ainda que há um direito dos indivíduos a determinadas condições, ou pelo menos, a determinados resultados distributivos independentemente da história das posses e de quem tem legítimo direito a elas. Ora, tal pode conduzir à percepção, já denunciada por Nozick, de injustiça, pois os mais favorecidos verão parte das suas posses serem redistribuídas para se garantir esse resultado ou padrão final de distribuição. Vallentyne contrapõe a este igualitarismo de resultados o seu igualitarismo de oportunidades iniciais de bem-estar, afirmando que não são as distribuições finais, mas as condições iniciais de apropriação e uso que poderão originar a injustiça.

Se estas condições iniciais forem justas, o que delas resultar, respeitando-se a restrição igualitária, será justo, independentemente das desigualdades que sejam criadas devido às opções, decisões dos indivíduos num mercado livre. A cooperação social

68 parece não constituir, assim, para Vallentyne um problema, uma vez que se presume que essa cooperação e a distribuição de benefícios dela resultante será consequência da liberdade de acção dos indivíduos e de acordos estabelecidos entre eles.

Desta forma as desigualdades distributivas não serão, tal como para Nozick, motivo para qualquer acção redistributiva. Contudo, para Vallentyne, ao contrário de Nozick, as desigualdades iniciais deverão ser objecto de intervenção no sentido de as rectificar ou compensar. A restrição igualitária é o mecanismo que permite fazê-lo, embora outras medidas sejam propostas pelo libertarista de esquerda, para promover a igualdade inicial de oportunidades. Os recursos não possuídos são considerados como tendo que ser partilhados de forma igualitária por todos. Como já referido, tal não significa uma propriedade conjunta, mas que a cada um caiba uma parte justa de recursos a usar e/ou apropriar. A justiça da parte deriva do cálculo dos recursos naturais disponíveis para os indivíduos existentes, tendo em conta as oportunidades iniciais de bem-estar graças ao seu uso e apropriação, pelo que todos os recursos (incluindo os internos) terão que ser considerados nesse cálculo e partilha. “Ao contrário da concepção de partes iguais, aqueles cujos dotes internos iniciais proporcionem oportunidades efectivas de bem-estar menos favorecidas têm direito a uma parte maior dos recursos naturais”1

(V 11, 17), defende Vallentyne. Aquilo que os indivíduos possuam inicialmente pelo processo de transferências quasi-heranças também terá que ser contabilizado no cálculo inicial.

Quanto às diferenças que resultam de características naturais, não dependentes da acção humana, Vallentyne também considera que são relevantes para a partilha inicial dos recursos. Contrariamente a Nozick2 considera que o facto de alguém ter disponíveis menos ou piores recursos naturais cria o dever de compensação daqueles que, por condições naturais, tenham acesso a mais e melhores. Assim, dá o exemplo de duas ilhas com recursos naturais distintos, sendo que uma claramente favorece as oportunidades iniciais do seu habitante em relação ao outro ilhéu. Existe ainda um recurso natural – peixe – que não estando ligado a nenhuma delas, pode servir de compensação para a situação menos favorável da segunda ilha. O habitante da ilha mais rica em recursos naturais não terá qualquer direito a reivindicar parte do peixe, uma vez que aquilo que é significativo é o conjunto total de recursos naturais e a sua partilha

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“Unlike the equal share view, those whose initial internal endowments provide less favorable effective opportunities for wellbeing are entitled to larger shares of natural resources.” (4. Natural Resources:

Liberty Rights to Use and Moral Powers to Appropriate) 2

69 igualitária. As diferenças serem naturais é irrelevante e terá que ser contabilizada a totalidade de recursos existentes (V 15, 16)3, pelo que a compensação pelas situações naturalmente desiguais ocorrerá inicialmente para igualizar as oportunidades iniciais. Para que tal aconteça a totalidade dos recursos naturais não deve ser contabilizada como estando adstrita a um determinado território, mas deve ser tomada como global, pelo que a partilha deverá ser feita tendo em conta o número total de indivíduos existentes no mundo. Tal como a ilha mais rica, poder-se-ia deduzir que nenhum país tem direito aos seus recursos naturais sem compensar os outros pela sua posição naturalmente beneficiada. Vallentyne defende a arbitrariedade das fronteiras nacionais, embora lhes reconheça alguma utilidade em termos administrativos, pelo que os recursos externos e o fundo de compensações gerado (fundo social) deverão ser globais, tal como as medidas de igualização das oportunidades iniciais (V 47, 17)4.

Esta arbitrariedade das fronteiras nacionais na contabilização dos recursos naturais é um ponto de vista interessante se tivermos em conta as desigualdades de desenvolvimento e crescimento existentes entre os países, bem como a forma injusta como o seu uso e apropriação foram sendo feitos ao longo da história. No entanto, mantém-se o problema de como rectificar, no momento actual ou no futuro, as injustiças decorrentes das efectivas desigualdades iniciais de oportunidades dos indivíduos, cujo uso e apropriação de recursos depende também do local onde tiveram a sorte, ou o azar, de nascer e/ou viver e daquilo que aconteceu ao longo da história dos seus países e do tipo de relações estabelecidas com outros países. Se as fronteiras forem consideradas arbitrárias do ponto de vista da posse dos recursos, não há lugar a rectificação quando esta for exigida por um país a outro. Não são as comunidades que detêm direitos de posse dos recursos, mas os indivíduos. Assim, a rectificação de injustiças passadas deparar-se-ia com outra dificuldade: se a história de determinadas posses tiver sido até agora comunitária e injusta qual o mecanismo para repor a justiça das posses, atribuindo-as aos indivíduos? A esta questão Vallentyne respondeu5 que apenas se poderá exigir compensação a alguém, a um indivíduo, e não a um povo ou etnia, pelo que só há direitos e deveres de rectificação se os indivíduos forem contemporâneos. Admitiu, contudo, que a sua resposta carecia de mais reflexão, podendo ser-lhe retribuída a acusação que faz a Nozick: “A discussão de Nozick destes assuntos

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3. Our Core Case

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6.1. The Significance of National Boundaries

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A resposta de Vallentyne à questão foi dada nos II Encontros de Ética e Filosofia Política promovidos pela Universidade do Minho no dia 20 de Março de 2013.

70 [prevenção e rectificação de injustiças] é muito esquemática e deixa uma grande variedade de questões importantes por resolver” 6

(V 6, 25).

A forma como o cálculo de recursos naturais se concretiza, qual o momento em que as oportunidades iniciais são avaliadas ou como se contabilizam, por exemplo, os recursos internos e a forma como influenciam as oportunidades de bem-estar são algumas das questões a que Vallentyne considera crucial dar uma resposta, embora mantenha a discussão e o debate abertos7,8. São questões essenciais para uma teoria rectificativa, uma vez que a sua resolução permitirá determinar a legitimidade do uso e apropriação por cada indivíduo nos vários momentos da história das posses.