• Nenhum resultado encontrado

Capítulo III: Libertarismo de esquerda e a rectificação: a aplicabilidade da restrição

III.5. Restrição e rectificação: Passado

A aplicação da restrição igualitária à apropriação, uso e transferência dos recursos coloca inúmeros obstáculos à possibilidade de rectificação de injustiças. Tal como em Nozick, o facto de se colocarem restrições iniciais não acompanhadas de princípios ou mecanismos de rectificação que esclareçam a forma como as posses poderão ser restituídas ou voltem a não ser possuídas, dificulta a compreensão da historicidade das teorias libertárias.

Para se aplicar a restrição seria necessário especificar de forma mais detalhada o momento ou a situação que marca o início da história das posses, o que não acontece nem na proposta de Nozick, nem na de Vallentyne. Nozick coloca o estado de natureza, ou seja, o estado em que todos os recursos naturais eram não possuídos, como a base de comparação que permite aferir se o proviso estaria ou não a ser cumprido, o que como já foi referido (Cf. supra I.1.) dificulta o apuramento da justiça das posses.

Por seu turno Vallentyne não especifica um momento, indicando apenas que a restrição se cumpre enquanto não for desrespeitada a igualdade inicial de oportunidades

36

7. Gifts and Bequests

37Cf. “ (…) any resources that agents own at the time of their death are abandoned assets and become part

64 de bem-estar. Assim, pressupõe que existe um momento inicial em que essas oportunidades são avaliadas e igualizadas, mas não é claro qual é esse momento, uma vez que a existência individual é antecedida e precedida da existência de outros indivíduos cujo momento inicial de partilha igualitária das posses já ocorreu ou ocorrerá. Ainda que aborde a justiça intergeracional, não esclarece qual a situação em que a partilha igualitária dos recursos naturais se dá. O cálculo deverá ter em conta o número de indivíduos, mas o número de gerações contemporâneas conduzirá a alguma indeterminação que aliada às dificuldades já identificadas no cálculo da parte de recursos naturais que caberá a cada um constituirá uma das maiores fragilidades desta proposta.

Todavia, a sua proposta acaba por ser mais detalhada e pragmática do que a de Nozick, pois admite que o conjunto de posses e recursos está sujeito a alterações e mudanças ao longo dos tempos. À medida que os indivíduos vão alterando ou melhorando, bem como destruindo ou dizimando os recursos, o cálculo poderá ser revisto, mas ocorrerá num mundo em que existem inúmeros indivíduos de gerações diversas. Assim, alguns deles poderão ter gasto a justa parte dos recursos que lhes foi “atribuída” inicialmente, pelo que ao recalcular as oportunidades iniciais encontrar-se-iam numa de duas situações: ou teriam que compensar por terem gasto mais do que o novo cálculo lhes atribui, ou veriam a sua parte de recursos aumentada. No primeiro caso, o valor a restituir seria o da diferença entre o que gastaram/usaram a mais e aquilo que seria a sua parte. Vallentyne esclarece que esse valor teria que ser, de qualquer forma, deixado para as gerações vindouras, uma vez que a restrição igualitária estabelece esse dever, alterando-se apenas o momento em que a compensação seria feita (V 15, 19-20)38.

No entanto, se se tiver em conta que actualmente as gerações contemporâneas são cada vez mais, graças ao aumento da esperança média de vida, seriam vários os momentos em que teria que existir essa igualização de oportunidades, o que acarretaria uma constante alteração do conjunto de posses de cada indivíduo e uma constante intervenção nos seus projectos de vida que poderia ser encarada como ilegítima tendo em conta as expectativas iniciais com que os indivíduos os delineariam. Contudo, Vallentyne é claro que essa igualização deve ser feita apenas quando for

38

65 circunstancialmente possível e eficaz39, não sendo necessário que as gerações tenham todas o mesmo valor total de recursos disponíveis inicialmente. Rectificar por injustiças ocorridas durante a vida dos indivíduos não parece, então, apresentar dificuldades na perspectiva de Vallentyne, uma vez que o cálculo de recursos e da parte que deverão deixar para os outros é feita durante a sua vida. Se um indivíduo usar mais do que a sua parte, deverá uma compensação aos outros. Contudo, esse uso excessivo deve ser avaliado tendo em conta o que é deixado pelo mesmo indivíduo, pois poderá, por si só, compensá-lo, como por exemplo, deixando “tecnologia, conhecimento ou melhorias nos recursos naturais”40 (V 15, 31).

Por outro lado, defende que os progenitores deverão suportar, se lhes for possível, a parte de recursos naturais que permitam aos indivíduos existir com igualdade inicial de oportunidades de uso e apropriação desses recursos. Mas, simultaneamente, indica deveres das gerações anteriores em deixar uma parte igualmente valiosa de oportunidades iniciais de uso e apropriação aos vindouros, ou seja, mesmo aqueles que não tenham procriado acabam por ter que compensar o uso que fizeram dos recursos naturais, contribuindo para um fundo comum que proporcionará a igualdade inicial de oportunidades àqueles a quem os progenitores não o conseguiram fazer. As limitações que coloca às transferências, sobretudo doações e heranças também acabam por simplificar o processo de rectificação de injustiças, pois não atribui aos descendentes qualquer direito especial sobre as posses dos seus antepassados a menos que tenha ocorrido uma quasi-herança ou uma doação intergeracional que não coloque em causa a igualdade inicial de oportunidades.

Porém, se a injustiça tiver ocorrido no passado, não estando a vítima viva, não se esclarece como poderá ser feita a rectificação. Ainda assim, tendo em conta a sua teoria poder-se-ia assumir que a rectificação poderia ser feita se houvesse toda a informação disponível, sendo a compensação devida direccionada para o fundo comum e não para qualquer descendente, que, como defende, não tendo qualquer direito à herança, também não terá à “restituição” de bens por ocasião da rectificação. Quanto à rectificação exigida por posses ou bens que tenham sido, por exemplo, roubados de uma comunidade, inviabilizando ou dificultando o processo de crescimento e

39

Cf. V 44, 46: “The extent to which such compensation should be provided is a contingent matter and is determined by how efficiently they promote equality of initial opportunities for advantage.” (Conclusion)

40“Second, even those whose are using more than their fair share of natural resources may leave adequate

compensation for the members of future generations. The value of resources that they add to the world for all to use—technology, knowledge, and improvements to natural resources (e.g., trees or fish) in the commons, for example—may compensate for their excess degradation or depletion.” (8. Conclusion)

66 desenvolvimento daqueles indivíduos, Vallentyne também nada esclarece. Aliás, admite que a história da humanidade é rica em injustiças e que por isso a distribuição e os direitos de posse actuais não terão resultado de processos justos, eventualmente na sua maioria. Todavia, sugere que, tendo em conta o desconhecimento do passado e da especificidade de cada uma das situações que poderão ter originado as injustiças, se estabeleça um prazo em que se poderá reivindicar a rectificação da injustiça. Vallentyne sugere os 100 anos como um prazo rectificativo, mas admite não haver na teoria libertária qualquer fundamento teórico para sustentar esta proposta (V 2E, 13)41.

Ao não estabelecerem um princípio rectificativo ou mecanismos de rectificação que se baseiem nos seus pressupostos, autopropriedade, proviso e liberdade, os libertaristas, Nozick e Vallentyne, minam as suas teorias pois não esclarecem como se poderá fazer a transição para um sistema libertário, com as rectificações e compensações que teriam que ocorrer no sistema distributivo de posses. Vallentyne acusa Nozick a este propósito de apenas “ esboçar um quadro, mas o trabalho duro consiste em articular e defender um conjunto específico de direitos”42

(V 6, 26), o que na sua proposta libertarista de esquerda também não faz. No caso de uma teoria em que a justiça das posses depende daquilo que aconteceu no passado, a sua dificuldade em abordar a justiça rectificativa poderá constituir o seu calcanhar de Aquiles.

41

5.2 Historical Principles and the Real World

42“Nozick sketches a framework, but the hard work is in articulating and defending a specific set of

67