• Nenhum resultado encontrado

A escassez de doutrina internacionalista de autores brasileiros sobre o tema da competência repressiva universal motivou esta breve análise sobre a posição do país

162 quanto ao assunto. Em geral, percebe-se que, quando investigam a posição do Brasil quanto à punição de responsáveis pelo cometimento de crimes internacionais contra os direitos humanos, os acadêmicos tendem a caracterizar a postura do país, devido ao seu passado ditatorial448, como indulgente449. As comunicações mais recentes do Itamaraty que tratam das negociações internacionais sobre a competência repressiva universal revelam uma tentativa de superar a antiga imagem, por meio da aprovação de documentos favoráveis ao instituto. Examinaremos, a seguir, o conteúdo destas comunicações.

Após intensos debates450 entre delegações europeias e africanas, em julho de 2009, a proposta da Tanzânia, de que a Assembleia Geral das Nações Unidas incluísse em sua agenda o tema do alcance e da aplicação da competência repressiva universal, foi acolhida451. Em seguida à apresentação do primeiro relatório452 da Secretaria-Geral da organização sobre o tema, a avaliação brasileira foi a seguinte: os Estados que submeteram comentários453 reconheceram a existência da competência repressiva universal e a entenderam como um mecanismo complementar da justiça internacional penal454. Para o Brasil, os pontos que deveriam ser analisados com base nos dados apresentados são de três ordens: o primeiro afirma que ainda há divergências significativas para a aplicação do instituto, como a exigência da presença do acusado; o segundo

163 da competência repressiva universal, como sua subsidiariedade, sua sistematização e seu conceito455.

Em instrução456 encaminhada à missão nas Nações Unidas, entende-se pela possibilidade de o Brasil apoiar a criação de grupo de trabalho para o estudo do tema. Tal grupo deveria concentrar-se, inicialmente, na busca da definição de um conceito para a competência repressiva universal. Depois deste passo, caberia a análise do instituto quanto aos seus aspectos ratione materiæ e ratione personæ e ao seu caráter subsidiário. Em relação ao aspecto ratione personæ, que trata das pessoas que seriam julgadas com base no instituto, é categórica a afirmação de que o Brasil confirma seus compromissos internacionais quanto ao fato de a imunidade não dever impedir a investigação de certos crimes, mesmo quando se trata de altos funcionários do Estado. O texto ainda admite a possibilidade de que o Brasil venha a exercer a competência repressiva universal, caso haja tratado internacional que o especifique.

No último documento457 que discorre sobre as intervenções brasileiras na discussão do tema da agenda da Assembleia Geral, transcreve-se o discurso proferido. O texto destaca o fato de a competência repressiva universal ser um assunto que remete a questões sensíveis e também declara que o objetivo do instituto é julgar indivíduos considerados responsáveis por crimes internacionais cuja gravidade, além de chocar a consciência de toda a humanidade e de desrespeitar regras de ius cogens, os torna violações não só às leis nacionais, mas também ao sistema legal de todas as nações.

A investigação da documentação da chancelaria brasileira evidencia dois aspectos que representam claras mudanças em relação à antiga postura leniente observada por alguns acadêmicos. O primeiro aspecto reside no fato de, no plano internacional, o país manifestar-se favoravelmente à discussão do tema. O segundo aspecto relaciona-se à compreensão que o Brasil demonstra sobre a competência repressiva universal: a afirmação de que o assunto traz à tona temas sensíveis e de que as imunidades devem ser relativizadas diante de crimes internacionais parecem compatíveis com o que a maior parte da doutrina pensa sobre o instituto.

455 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, op. cit., Telegrama ostensivo n. 3732. 456 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Despacho telegráfico ostensivo n. 1176, de

11 de outubro de 2010, para a Missão do Brasil junto à Organização das Nações Unidas.

164 Esta postura internacional mais favorável à competência repressiva universal infelizmente não corresponde ao andamento da questão no plano interno. O recente julgamento do Supremo Tribunal Federal458 que manteve a lei de anistia brasileira

165 de genocídio, o instituto só pode ser exercido se o suposto responsável for brasileiro ou domiciliado no Brasil. Para os crimes previstos em tratados, exige-se que: o agente esteja no território nacional; o crime seja punível no país onde ocorreu (dupla incriminação); ao agente seja possível à extradição; não haja bis in idem; o agente não tenha sido perdoado. Sobre a tortura, especificamente, o art. 2º da Lei nº 9.455, de 07 de abril de 1997, dispõe que basta a presença do agente em local sujeito à jurisdição brasileira.

Do estudo da competência repressiva universal no Brasil percebe-se que atualmente não há coordenação entre o que ocorre no plano interno e no plano internacional, nem entre o que estipula cada um dos três poderes. A postura internacional do país está mais avançada do que sua jurisprudência e sua legislação. Aquela, ao manifestar-se contrariamente à revisão da lei de anistia, confirmou a existência de um impedimento a que o Brasil promova a persecução penal dos agentes de crimes internacionais que ocorreram em nosso território; esta não avança no mesmo ritmo que os compromissos internacionais estabelecidos por tratados ratificados pelo Brasil determinam. O descompasso quanto à competência repressiva universal como postura e como lei não representa apenas um desconforto político, vez que a falta de harmonia pode implicar a responsabilidade internacional do país pelo descumprimento de normas internacionais461.

Documentos relacionados