• Nenhum resultado encontrado

ii f Projetos de sistematização

A variedade de formas com que a competência repressiva universal é internalizada pelos Estados em suas legislações é analisada por Hans. Segundo a autora, os ordenamentos internos valem-se de tratados e costumes internacionais para incorporarem o instituto. Cada Estado está livre, entretanto, para expandir e alterar as determinações do direito internacional, de forma a adequá-las às suas necessidades, o que levou à aplicação irregular da competência repressiva universal, bem como à falta de uniformidade462.

Apesar de as normas internas belgas, francesas, espanholas e alemãs sobre o tema da competência repressiva universal constituírem o que há de mais avançado sobre o

166 assunto nas legislações estatais, observa-se que, mesmo para elas, ainda são necessárias muitas medidas para torná-las adequadas ao que determinam os tratados e convenções. Nos três primeiros países analisados, reformas legais lamentavelmente restringiram a possibilidade de aplicação do instituto. Na Alemanha, mesmo com a legislação adequada, os operadores do direito continuam inertes devido a obstáculos de ordem política e prática. No Brasil, a internalização das normas está defasada em relação aos tratados e convenções a que o país se comprometeu. Conclui-se que a internalização das normas ainda carece de orientação e harmonização que, conforme Delmas-Marty, podem ser providenciadas por organizações internacionais e pela jurisprudência. Tendo em conta que os julgamentos mais relevantes não evidenciam um sentido determinado, resta investigar o que as negociações internacionais sobre o tema podem acrescentar.

No âmbito das Nações Unidas, além do recente relatório sobre o escopo e a aplicação da competência repressiva universal463 e da inclusão do assunto na agenda da Assembleia Geral, há a análise, pela Comissão de Direito Internacional de dois temas diretamente relacionados à competência repressiva universal: a obrigação de extraditar ou julgar (aut dedere aut judicare) e a imunidade de oficiais do Estado em relação à jurisdição penal estrangeira. Até a conclusão deste estudo, a Comissão não tinha apresentado seu relatório final sobre nenhum dos temas, mas entendemos que quando o fizer, contribuirá para a definição de alguns consensos e até mesmo para a elaboração de algum projeto de texto normativo internacional, que já é ansiosamente aguardado.

A doutrina oferece duas listas de princípios que poderiam servir como guias para o exercício da competência repressiva universal pelos Estados. A primeira delas, mais conhecida, foi elaborada em 2001 com o respaldo da Universidade de Princeton e de outras instituições464 de juristas. Os princípios de Princeton sobre a competência repressiva universal oferecem parâmetros para as dúvidas mais comuns relacionadas ao instituto, ao proporem: seu conceito; a presença do acusado no território do foro como condição; a necessidade da boa-fé do Estado que o aplica; um rol de crimes internacionais sobre os quais a competência repressiva universal recairia; a observância das garantias da jurisdição, do devido processo legal e dos direitos do acusado; a exclusão de anistias

463 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. A/65/181, op. cit. 464 MACEDO, Stephen.

167 contrárias ao direito internacional e de imunidades como impedimentos ao julgamento e à responsabilização penal; critérios para a solução de conflitos de jurisdição; a proibição do bis in idem; e a solução pacífica de controvérsias465. A nosso ver, os quatorze princípios previstos poderiam contribuir para dirimir muitas divergências relacionadas ao exercício da competência repressiva universal, de modo que um futuro tratado que a positive no direito internacional penal não deve ignorar tal trabalho. Para as objeções políticas ao instituto não se vislumbra, entretanto, regras contidas nos princípios de Princeton que auxiliem a superá- las.

A segunda lista de princípios mais mencionada pela doutrina é aquela elaborada em 2002, no âmbito da Africa Legal Aid466. Os princípios de Cairo-Arusha sobre a competência repressiva universal nasceram da percepção de alguns países africanos de que as peculiaridades do continente demandavam que o instituto fosse concebido também a partir de uma perspectiva africana. Deste modo, pretendeu-se incluir considerações relativas não apenas à necessidade de pôr fim à impunidade, mas também a aspectos econômicos, culturais e sociais467. As diferenças em relação aos princípios de Princeton podem ser apontadas quanto ao fato de os princípios de Cairo-Arusha introduzirem dispositivos relacionados a: crimes de gênero; proteção das testemunhas; possibilidade do exercício da competência repressiva universal contra pessoas físicas e jurídicas; crimes com grave impacto econômico, social ou cultural, como a apropriação indevida de recursos públicos; e a necessidade de se evitar a seletividade baseada na raça468. As peculiaridades dos princípios de Cairo-Arusha, a nosso ver, podem dificultar que suas proposições adquiram a concordância de outros Estados, tanto dentro, como fora do continente africano.

Dentre as fontes da competência repressiva universal analisadas neste estudo, pode-se notar uma gradação decrescente em sua contribuição para a consolidação do instituto. Comparadas à doutrina e a jurisprudência, as legislações nacionais e os projetos internacionais de sistematização oferecem menos elementos capazes de auxiliar o fortalecimento e a propagação da competência repressiva universal como mecanismo da justiça internacional penal capaz de implementar a promoção dos direitos humanos.

168

CONCLUSÃO

A partir dos conceitos do direito internacional penal e do direito internacional dos direitos humanos, este estudo dedicou-se à investigação da competência repressiva universal como mecanismo da justiça internacional penal para a proteção e a promoção dos direitos humanos.

O movimento de afirmação dos direitos humanos revelou-se determinante para a reformulação da ordem e do direito internacional. A competência repressiva universal por situar-se no encontro entre paz e justiça, apesar de ser um instituto bastante antigo, também foi modificada pela emergência da comunidade internacional em formação, que passou a vislumbrá-la como um instrumento capaz de auxiliar na dissuasão de violações aos seus valores. A atribuição desta nova função

169 Em relação ao seu desenvolvimento na prática, verifica-se que, desde o caso Pinochet, aumentaram os casos em que a competência repressiva universal foi aplicada. Embora a jurisprudência analisada ainda não possibilite a identificação de uma tendência evolutiva no exercício do instituto pelos tribunais, os processos têm contribuído para definir os aspectos controversos

170 A competência repressiva universal propõe uma reflexão sobre a repressão. Se internamente o Estado que coagia pela justiça era temido e se antes o aparato judicial era percebido como uma maneira de afastar da sociedade os elementos indesejados, o movimento de afirmação dos direitos humanos pode mudar esta percepção. Não se quer mais garantir o indivíduo contra o judiciário, mas sim proporcionar à sociedade ferramentas efetivas para que se implementem as normas realmente fundamentais. A competência repressiva universal, exercida em nome dos valores da comunidade internacional, traz a oportunidade de que a repressão, ao combater a impunidade, seja usada para impedir as graves violações de direitos humanos.

171

BIBLIOGRAFIA

172 _______________ The History of Universal Jurisdiction and its Place in International Law. In: MACEDO, Stephen (Org.). Universal Jurisdiction: National Courts and the Prosecution of Serious Crimes Under International Law. Filadélfia: Penn, pp. 39-63, 2006. _______________ International Criminal Law, vol. III Enforcement, Nova York: Transnational Publishers, 1987.

BASTOS, Lucia Helena Arantes Ferreira. As leis de anistia face ao direito internacional: o caso brasileiro. Tese de doutorado, apresentada ao Departamento de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007.

173 _______________

174 _______________

175 Peter (orgs.). International prosecution of human rights crimes. Nova York: Springer, pp. 149-158, 2007.

176 HALL, Christopher Keith.

177 INAZUMI, Mitsue. Universal jurisdiction in modern international law: expansion of national jurisdiction for prosecuting serious crimes under international law. Utrecht: Intersentia, 2005.

INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION. Final report on the exercise of universal jurisdiction in respect of gross human rights offences

178 LLOPIS, Ana Peyró. La compétence universelle en matière de crimes contre l

179 NDIAYE, Bacre Waly. Prefácio. In: INTERNATIONAL COUNCIL ON HUMAN RIGHTS POLICY. Hard cases: bringing human rights to justice abroad

180 REYDAMS, Luc. Universal Jurisdiction: International and Municipal Legal Perspectives. Nova York: Oxford University Press, 2003 (a).

181 SASSÒLI, Marco. L

182 SULZER, Jeanne.

183

DOCUMENTOS

CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES, Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991.

CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O DIREITO DO MAR, de 1982. Decreto nº 1.530, de 22 de junho de 1995.

CONVENÇÕES DE GENEBRA DE 1949. Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos e Enfermos dos Exércitos em Campanha (I); Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos, Enfermos e Náufragos das Forças Armadas no Mar (II); Convenção Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra (III) e Convenção Relativa à Proteção dos Civis em Tempo de Guerra (IV). Decreto nº 42.121, de 21 de agosto de 1957.

CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE O DESAPARECIMENTO FORÇADO DE PESSOAS. Disponível online: <http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-60.htm> CONVENÇÃO PARA A PREVENÇÃO E A REPRESSÃO DO CRIME DE GENOCÍDIO, de 1948, Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barrios Altos vs. Peru, julgamento de 14 de março de 2001. Disponível online: < http://www.corteidh.or.cr/docs/ casos/artículos/seriec_75_ing.pdf>

184 ESTATUTO DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Decreto 19.841, de 22 de outubro de 1945.

ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, de 1998. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002.

INTERNATIONAL CONVENTION FOR THE PROTECTION OF ALL PERSONS FROM ENFORCED DISAPPEARANCE. Disponível online: <http://www2.ohchr.org/ english/law/disappearance-convention.htm>

INTERNATIONAL CONVENTION ON THE SUPPRESSION AND PUNISHMENT OF THE CRIME OF APARTHEID, Disponível online: <http://www.unhcr.org/refworld/pdfid/ 3ae6b3c00.pdf>.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Agenda of the sixty-third session of the General Assembly. A/63/251/Add.4. Disponível online: <http://daccess-dds- ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/ N09/429/73/PDF/N0942973.pdf?OpenElement>.

_______________ Convention on the high seas. Disponível online:

<http://untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/english/conventions/8_1_1958_high_seas.pdf> _______________ International convention for the protection of all persons from enforced disappearance. Disponível online: <http://www2.ohchr.org/english/law/disappearance- convention.htm>

_______________ Principles of international co-operation in the detection, arrest,

extradition and punishment of persons guilty of war crimes and crimes against humanity. A/RES/3074(XXVIII), 1973. Disponível online: <http://daccess-ddsny.un.org/doc/ RESOLUTION/GEN/NR0/281/46/IMG/NR028146.pdf?OpenElement>.

_______________ Report of the Working Group on Enforced or Involuntary Disappearances. E/CN.4/1990/13, 1990. Disponível online: <http://daccess-dds- ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G90/101/32/PDF/G9010132.pdf?OpenElement>.

_______________ Report of the Secretary-General on the United Nations Organization mission in the Democratic Republic of Congo. S/2000/30. Disponível online:

185 <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N00/238/74/IMG/N0023874.pdf?OpenE lement>.

_______________ Report on the situation of human rights in the Democratic Republic of the Congo, submitted by the Special Rapporteur, Mr. Roberto Garretón, in accordance with Commission resolution 1998/61. E/CN.4/1999/31. Disponível online: <http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/0/8e3dbacbae51ce60802567460034073d? OpenDocument>.

_______________ Resolução do Conselho de Segurança sobre a situação da República Democrática do Congo 1234 (1999). S/RES/1234 (1999). Disponível online: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N99/101/73/PDF/N9910173.pdf?OpenEl ement>.

_______________ Resolução do Conselho de Segurança sobre a situação da República Democrática do Congo 1291 (2000). S/RES/1291 (2000). Disponível online: < http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N00/313/35/PDF/N0031335.pdf?OpenEle ment>.

_______________ The scope and application of the principle of universal jurisdiction: report of the Secretary-General prepared on the basis of comments and observations of Governments. A/65/181, 2010. Disponível online: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/ UNDOC/GEN/N10/467/52/PDF/N1046752.pdf?OpenElement>.

186 _______________ Ministério Das Relações Exteriores. Telegrama ostensivo n. 805, de 11 de outubro de 1999, da Embaixada do Brasil em Santiago.

_______________ Telegrama ostensivo n. 698, de 11 de junho de 2003, da Embaixada de Brasil na Cidade do México.

_______________ Telegrama ostensivo n. 487, de 27 de maio de 2009, da Embaixada do Brasil em Madri.

_______________ Telegrama ostensivo n. 2501, de 02 de setembro de 2009, da Missão do Brasil junto à Organização das Nações Unidas

_______________ Telegrama ostensivo n. 1260, de 01 de outubro de 2009, da Embaixada do Brasil em Londres.

_______________ Telegrama ostensivo n. 3732, de 05 de outubro de 2010, da Missão do Brasil junto à Organização das Nações Unidas.

_______________ Despacho telegráfico ostensivo n. 1176, de 11 de outubro de 2010, para a Missão do Brasil junto à Organização das Nações Unidas.

_______________ Telegrama ostensivo n. 3913, de 15 de outubro de 2010, da Missão do Brasil junto à Organização das Nações Unidas.

REPÚBLICA FRANCESA. Loi n° 2010-930 du 9 août 2010 portant adaptation du droit pénal à l'institution de la Cour pénale internationale. Disponível online:

<http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT00022681235&date

Texte=>

187 judicial, por la que se modifica la Ley Orgánica 6/1985, de 1 de julio, del Poder Judicial. Disponível online: < http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/lo1-2009.html>. THE UNITED NATIONS WAR CRIMES COMMISSION, Law reports of trials of war criminals, vol XV, 1949. Disponível online: < http://www.loc.gov/rr/frd/Military_Law/ pdf/Law-Reports_Vol-15.pdf>

Documentos relacionados